sábado, 6 de outubro de 2018

O aceno definitivo de Drummond - Alcides Villaça


O aceno definitivo de Drummond


* Por Alcides Villaça

Farewell'' surge (e por que só agora?) como o aceno definitivo que nos faz Drummond, caminhante desencantado, antes de desaparecer atrás da última ladeira. O poeta sempre estimou figurar-se numa estrada, numa rua, num caminho, como um ''gauche'' paralisado pela pedra-enigma, ou disfarçado num mítico e desengonçado elefante de fabricação própria, ou como o filho que um pai virgiliano conduz pelo reino dos mortos, ou como o divagante desistido das ofertas miraculosas da máquina do mundo.

Este belo livro não pretende ser o ''tour de force'' expressivo dessa trajetória, nem traz a revelação essencial poupada para a hora extrema. Já nos anos 60, com a melancolia da maturidade e os primeiros desprendimentos da velhice, o poeta firmara certa indisposição para prosseguir na luta com as palavras. O último poema de ''Lição de Coisas'' (1962) – livro marcado pela revisitação dos temas e por algum experimentalismo formal – fechava-se com este terceto, no qual Drummond se dirigia à sempre esquiva Forma de todas as formas, para assim resignar-se:

''E não encontrar-te é nenhum desgosto
pois abarrotas o largo armazém do factível
onde a realidade é maior do que a realidade'' (''F'').

De fato: no livro seguinte (''Boitempo & A Falta Que Ama'', 1968) e nos demais, Drummond já não se empenharia em debater-se nas contradições mais fundas do sujeito ou em tensionar ao máximo a linguagem; passou a alargar generosa e detalhadamente os quadros das antigas percepções de menino e adolescente e a tratar do amor, das pessoas e das circunstâncias com o descompromisso de quem mais avalia a cena do que quem nela atua.

Adeus discreto ''Farewell'' poderia lembrar de imediato a família dos ''Boitempo'', mas agora todo memorialismo surge no registro grave de quem se dispõe à despedida definitiva, soturna e sem tragédia – como convém ao poeta de ''Claro Enigma'', que ora reafirma, de modo irrecorrível, o postulado schopenhaueriano da unificação universal do sofrimento. Não, ''Farewell'' não tem nem terá buscado ter, como conjunto, a pegada dos grandes livros dos anos 40 e 50, quando o poeta nos desvelava, em cadências, imagens e reflexões de beleza inexcedida, os custos da hesitação individual entre buscar objetivamente pertencer ao mundo intimamente condenado ou deixar-se engolfar em treva própria, refratária à mundanidade – na atração alternada pelo mito íntimo e pela história, pelo lirismo e pelo argumento, pela metáfora e pelo conceito.

Mas a luz definitivamente crepuscular que este livro faz incidir sobre todos os momentos anteriores oferece-lhes uma nova perspectiva de interpretação, tanto quanto podem ser eles essenciais a quem busque interpretá-los. O sentido deste adeus é discreta mas cerimoniosamente remetido à significação integral da caminhada; é a face última, que encerra uma sucessão de ''personae'' figuradas pelo caminho: o menino furtivo e imaginoso do sobradão e dos campos de Itabira, o adolescente rebelde dos internatos, o boêmio ''gauche'' e modernista da conservadora Belo Horizonte, o burocrata federal fabricante de símbolos sociais insustentáveis, o amargo e introspectivo Orfeu na nova ordem mundial, fria e cinicamente pacificada, o memorialista-cronista que volta a ''ser menino'' no direito conquistado da velhice.

Em ''Farewell'', o caminhante ao fim da linha carrega como relíquias algumas imagens obsessivas: as da múltipla Greta Garbo amada na tela, das pinturas dos grandes mestres, da senhorial e vasta casa paterna, das velhas e manipuladas fotografias, da aparição fantasmática da amada – o tesouro fragmentário que foi possível acumular em estoque que ora ao Nada se oferece:

''Quero a última ração do vácuo,
a última danação, parágrafo penúltimo
do estado – menos que isso – de não ser''.

Despedindo-se, Drummond aciona seu materialismo derradeiro (até onde um grande poeta possa ser materialista) com a consciência de quem, havendo-se inaugurado como um ''gauche'', sabe enfim que a melhor máscara tem pouca serventia diante da morte.

O leitor de ''Farewell'' transitará por poemas de valor desigual, mas haverá de se deter em muitos, como ''Unidade'', ''A Casa do Tempo Perdido'', ''A Ilusão do Migrante'', ''Aparição Amorosa'', ''Arte em Exposição'', ''Bordão'', ''Imagem, Terra, Memória'', ''Invocação Irada'', ''O Peso de Uma Casa'' – e em quantos mais recupere, pela linguagem lírica, a beleza construída e comungável. Linguagem lírica: esse discurso poético que pode revelar ao próprio criador uma imagem sua, logo reconhecida como a imagem de muitos.

O discurso poético de Drummond pautou-se quase sempre, e aqui também, por uma falsa antieconomia sintática, na qual os supostos acessórios tornam-se pontos decisivos para a cadeia substantiva das imagens.

A obsessão em voga pela síntese extrema, pelo mínimo de palavras, pela usura de nomes (curiosamente agenciada por quem prega as vantagens do consumo supérfluo), ignora que a relação de síntese poética que conta se dá entre as palavras materialmente apresentadas e o alcance da significação que irradiam. Por vezes, a verdade construída no plano artístico rende-se a outra, que nenhum homem pode construir.

A força particular de ''Farewell'' está em transcender, aqui e ali, o trunfo puramente estético do criador mais potente, para instalar-se no plano limiar da morte, de onde ilumina o já-perfeito. E o que ilumina? Alguns ''topoi'' da poesia drummondiana recebem, neste livro, a última demão de luz, antes da sombra final. O leitor reconhecerá essas derradeiras atualizações: a figura inaugural do ''gauche'' culmina na de ''O Malvindo''; as origens familiares e provinciais reinterpretam-se em ''A Ilusão do Migrante'', ''Imagem, Terra, Memória'' e ''O Peso de Uma Casa''; todos os cabarés mineiros vingam-se da hipocrisia oficial em ''Cabaré Palácio''; a condição de poeta-funcionário (magistralmente avaliada na crônica ''A Rotina e a Quimera'', de ''Passeios na Ilha'') sintetiza-se em ''Escravo em Papelópolis''; a pequenez do indivíduo diante do mundo grande torna-se cósmica em ''Noite de Outubro''; a especulação das palavras está em ''Verbos''... E que mais? O fundamental: a revisitação e o adeus às instâncias maiores, o Amor e a Morte.

Qualquer impasse romântico desses dois temas fundadores está decididamente afastado por um Drummond que deseja ''Não mais o sonho, mas o sono limpo/ de todo excremento romântico''.

Mas entre o desejar e o alcançar essa duvidosa paz sem nome, há que passar o poeta pela degradação da carne – o tema mais forte do livro. Aquele a quem já deprimia a ameaça das dentaduras duplas, na casa dos 50, vê agora o corpo descumprir os velhos pactos do desejo e arruinar-se na exalação da velhice, na ''envilecida carne sem defesa''.

Ainda aqui, no entanto, a oscilação de base entre o idealismo e o realismo, marca de brasa dessa poesia, deixa um vestígio pungente: a ruína do corpo ainda está habitada, e de dentro sai a voz para o alto:

''Ó minh'alma, dá o salto mortal e desaparece na bruma, sem pesar!
Sem pesar de ter existido e não ter saboreado o inexistível.
Quem sabe um dia o alcançarás, alma conclusa?''.

Vestígio apenas resistente, é certo; somam-se mais intensamente os momentos da plena escatologia, nos quais a ironia acusa seu poder de autoflagelação

(''aquela ferida que inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?''),

o chamar pelo outro faz-se inócuo

(''Resposta nenhuma.
A casa do tempo perdido está coberta de hera
pela metade; a outra metade são cinzas'')

e as experiências repetidas reciclam o mesmo absurdo

(''Como (...) suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?'').

A unidade do mundo enfim se confirma nessa fatalidade de existir que une flores, pedras e animais; entre estes, não nos consola ''sequer o privilégio de sofrer''.

O sentimento amoroso dividiu-se, na formação do homem e na obra do poeta Drummond, entre a plenitude gozosa do prazer natural e o desejo do sublime, que aporta na melancolia. Referências um para o outro, o corpo que experimenta e o espírito que investiga contracenam duramente em toda a poesia drummondiana. Em ''Farewell'', o drama ainda se reencena, deixando-se resumir nos acordes em surdina do ''Bordão'':

''Em torno de um bordão organiza-se o espírito. (…)
Nada ocorre de belo, nada ocorre de mal
fora da sonoridade do bordão''.

As inflexões desse bordão organizam também o livro: as meditações cósmicas contraponteiam com muitos objetos de amor, a começar pela amada, fonte de consolo e tormento, e enlaçando a terra mineira, uma criança, um gato, um tucano morto, uns cavaleiros, uma tanajura.

Pragas do pieguismo num discurso assim polarizado, conduzido com determinação de mestre, as metáforas ganham um lastro reflexivo que só lhes aprofunda a beleza, ao mesmo tempo em que as restrições da avaliação crítica irrompem do fundo da experiência poética. Devemos à inteligência e ao lirismo da poesia de Drummond essa particularíssima projeção da afetividade singular nos quadros da vida social permanentemente avaliada, com o que soube o poeta afastar as pragas do pieguismo chocho ou o formalismo autossuficiente, voltando-se para as contradições do sujeito moderno com o justo rigor de quem se identifica na negatividade e na ironia que lhe competem.

A iminência da morte não ajudou Drummond a vencer a última batalha, pois as mais terríveis palavras da poesia não dão notícia do silêncio puro, se o querem qualificar. Tudo o que ressoa como expressiva ausência é ainda obra delas, que cantam e desmentem seu poder de anulação.

A pasta de poemas organizados em ordem alfabética sob o título de ''Farewell'', guardada na gaveta, repõe com força propriamente material a questão agônica do poema ''Nudez'', de ''A Vida Passada a Limpo'' (1955):

''Minha matéria é o nada.
Jamais ousei cantar algo de vida''.

A força da negação poética é diretamente proporcional à sua afirmação enquanto forma. O poeta mineiro bem o sabia, e por isso enfrentava também a força das interrogações, que lhe abriam caminho para novas negativas, numa cadeia dialética de paixões e desistências, de empenhos e braços caídos.

O livro-despedida, surpreendendo-nos quase dez anos depois de sua morte, encerra a última ironia de quem viveu essa separação projetando um reencontro de vingativa e profunda beleza. O fato também pode sugerir que nenhuma grande obra poética fica exatamente ''completa'': continua a refazer-se, menos pelo acréscimo de alguns originais insuspeitados do que pelas necessidades do público, que a confirmem como importante para a vida.

Efeitos muito objetivos sobrevêm à publicação de ''Farewell'': as futuras antologias devem prever espaço para novos poemas, os leitores mais jovens têm nas mãos o livro novo do morto consagrado e os leitores mais velhos reconhecem a voz nas novas modulações. O poeta tornou-se ele próprio uma ''Aparição amorosa'', a quem poderíamos devolver palavras desse poema:

''Já nem distingo mais se és sombra
ou sombra sempre foste, e nossa história
invenção de livro soletrado
sob pestanas sonolentas''.

Poderíamos, mas não devolvamos. Há uma tarefa a que toda beleza incita, que é prosseguir reinventando-a. A cada vez que se encontra uma forma própria dessa reinvenção, a ironia se livra da sombra do cinismo e se ilumina na praça como poesia furtada da morte.




* Poeta e professor de Literatura.

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