segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Altamira, de asas e horizontes - Elizabeth Sigoli



Altamira, de asas e horizontes


* Por Elizabeth Sigoli


Quando o raio de sol incidiu sobre o cano do rifle de Altamira, fincado sorrateiramente em sua janela, um reflexo argênteo, ágil, projetou-se na calçada da praça. Era um sinal e todas as mulheres sabiam o que ele significava. Altamira estava ansiosa. Vislumbrava com gana o momento do ataque. Já há algum tempo os moradores da aldeia de Sabíria só se preocupavam em servir à sua volúpia de guerra. Em todas as casas as mulheres tinham estocado um punhado de armas, formando um arsenal improvisado. Os meios mais rudes de luta tinham sido revividos. E a terra exalava um odor de fêmea e sangue.

Vingança era o que clamavam os gestos calculados daquelas mulheres, durante os dias em que elas se preparavam para a luta. As mais moças deslizavam furtivamente como gatas, espalhando mensagens. As velhas ficaram encarregadas de preparar a munição e cuidar da manutenção das guerreiras. Mãe Catalina era uma espécie de conselheira. Qualquer idéia que as outras tivessem chegava logo ao seu conhecimento para discussão e julgamento em grupo. Sempre fora esse o papel da mãe Catalina na aldeia. Ainda nos bons tempos, ela era consultada até para indicar, após estudos prolongados, os melhores dias para a colheita.

Altamira, mulher-cobra, também era figura de destaque no exército. A ela estavam confiadas todas as decisões de caráter prático. E ainda que o gênio dessas duas mulheres fosse completamente diferente, elas se davam muito bem, acatando-se com respeito mútuo, que transbordava de seus olhares firmes. Mãe Catalina era uma matrona estabelecida à custa de uma prole numerosa e de um marido frágil, que tinha medo do mundo. A mulher o amparara sempre, com sua voz vibrante, cheia de coragem para enfrentar aquela vida que não era fácil. Nos últimos anos, já não viviam juntos, porque Mãe Catalina decidira que não poderia mais ficar tomando conta de tamanho homem. E concentrara-se na tentativa bem-sucedida de formar uma boa vizinhança na aldeia, espalhando também um sentimento de segurança. E incitando a combatividade em todas as pessoas acomodadas.

Sua figura tosca, resplandecente, clamava por justiça. E era nesse ponto que sua personalidade tinha algo em comum com o gênio consciencioso de Altamira. A mulher-cobra jamais tivera homem algum. Animal selvagem que era, assustava a todos com sua liberdade e instinto sem fronteiras. Nenhum macho ousava levantar os olhos para encarar abertamente aquela diva réptil. Mas, nas reuniões do conselho da aldeia, todos ouviam com respeito suas sábias e imperativas palavras. E então prestavam-lhe um culto de admiração. Foram essas duas fêmeas, possuídas pela paixão existencial, que rebentaram em protestos contra a passividade dos cidadãos de Sabíria, numa das últimas reuniões do conselho. Uma espécie de sessão coletiva, na qual eram apreciados os problemas dos moradores da aldeia.

Nessa noite, mãe Catalina proclamara um estado de discussão feroz.
- Porque, se continuarmos protestando apenas com a língua, a invasão vai começar mais cedo do que esperamos. Já estamos cansados de saber que eles querem nossas terras com o afinco da possessão. Conhecemos claramente suas intenções de nos expulsar daqui, simplesmente porque não querem dividir conosco os lucros que irão obter com a extração do urânio encontrado em nossa região. E nós, em troca, despejamos sobre eles um punhado de inúteis palavras! À guerra, conterrâneos!
- Daqui a uma semana, eles voltarão. E, se os homens da aldeia não tomarem nenhuma providência para enfrentar a situação, eu me proponho a formar um exército com as companheiras que me apoiarem.
  • Lembrem-se de uma coisa: Sabíria não conta com proteção oficial de Estado algum. Somos apenas uma aldeia, um povoado, um ajuntamento de casas e pessoas. Não constamos do mapa do país. Não temos governo que nos cobre impostos. Portanto, não existimos. O que temos em comum nesta pátria são apenas a língua e os costumes. Além disso, somos mais solitários do que todos os povos de que já ouvimos falar. Sequer temos vizinhos...

Houve um silêncio que perduraria ainda por alguns momentos, se a voz de Altamira não quebrasse aquele clima de reflexão e medo.
- Mãe Catalina tem razão. Temos de lutar por estas terras, que não estão em nossas mãos por mero acaso. Elas nos pertencem há séculos. E não vamos abrir mão do direito de propriedade, que, para nós, significa, antes de mais nada, poder viver em paz nesta aldeia.
- O invasor aproveita de nossa fragilidade para nos expulsar. Afinal, não temos papéis que garantam nosso direito de posse. O governo insiste em ignorar nossa presença no lugar. Seus agentes apenas inspecionaram a área, para constatar a existência do minério. A concessão foi vendida à companhia estrangeira, que nos ameaça agora com seus capangas. A única coisa que nos resta é lutar contra estes bandidos. Não devemos ceder. Não podemos ser coniventes com a injustiça que é tramada contra nós.

Cristóbal foi o primeiro homem a entender a proposta agreste de rebelião. Para não sucumbir no ato à intempestividade das mulheres, falou com grande ponderação. Na verdade, todos temiam a invasão e retardavam o momento de decidir pelo combate, apenas por um certo comodismo rançoso. Afinal, deixar o lar, arranjar armas e lutar contra homens preparados para esta tarefa parecia-lhes um passo perigoso demais. A história de Sabíria recordava atos de bravura realizados pelos antepassados. Mas os tempos eram outros. Agora, as condições de luta eram desesperadamente desiguais. Apesar disso, Cristóbal, impulsionado pelo seu sangue de jovem mártir, concordou em lutar. E, no conselho, iniciou-se uma votação para definir a posição dos cidadãos. Apenas oito, dos quinhentos moradores adultos da vila, votaram contra a proposta.

A reunião durou ainda duas horas. Discutiram-se os planos para o ataque no dia em que os capangas da companhia Lord Star viessem subornar os sabirianos, tentando expulsá-los através de uma recompensa fictícia. Era a primeira vez que as gerações de mãe Catalina, Altamira e Cristóbal sentiam juntas que só a opção pela luta asseguraria o direito de sobrevivência de sua gente. E, com a intenção de exercer justiça a todo custo, transformaram a aldeia numa fortaleza. No dia em que os invasores chegaram, os sabirianos dispersaram-se sabiamente pelas colinas que contornavam a cidade. E a guerra começou com otimismo e fé. Os primeiros homens da companhia esfacelaram-se. Embora estivessem fortemente armados, não esperavam uma reação tão encadeada. Mas alguns resistiram até que os reforços militares foram chegando. E três meses durou aquela batalha nos confins do mundo, até que foram exterminados pelo delírio da força estrangeira todos os homens de Sabíria. Com exceção do velho Íbano, que nem pudera acompanhar o exército, por achar-se paralisado.

Ocultando a verdadeira dor que sentiam, as mulheres sabirianas receberam os invasores amigavelmente dias após o término da luta, quando já haviam enterrado seus mortos em plena praça. Segundo ordens de mãe Catalina e Altamira, nenhuma delas chorou, protestou ou demonstrou medo ante os estranhos, que lhes prometiam ajuda de custo. E até lhes indicavam um lugar pretensamente saudável para morar com seus filhos, a vila de Santrevo.
  • E voltaremos na próxima terça-feira. E queremos as casas abandonadas. Em consideração à população exclusivamente feminina que vocês constituem agora por força das circunstâncias, não iremos vistoriar suas casas à procura de armas. Apenas pedimos que colaborem conosco, pois as coisas já se tornaram bastante difíceis. E saibam que o governo do seu país está conivente com todos os nossos atos.

Os novos donos de Sabíria afastaram-se hirtos, gloriosos. Tão confiantes estavam que não deixaram no povoado sequer um guardião. E não entenderam a atitude fria das mulheres, que nem hostis se mostraram. Quando tiveram a certeza de que eles já estavam longe, as mulheres de Sabíria reuniram-se e deliberaram selvagemente sobre a imperiosidade de novo combate.
- Talvez morramos todas. Mas de que vale viver agora que nossos companheiros se foram? E que temos de abandonar nossos lares?

O grito de Anastazia, seco, firme, parecendo mais um hino de guerra, incendiou todas elas. Anastazia não se conformara com a morte dos homens e, principalmente, do impetuoso Cristóbal, um amante que a inflamara sempre de prazer e de coragem.

Lúcidas e ágeis, as mulheres souberam aguardar. E, quando os usurpadores chegaram dias mais tarde, o silêncio pesava sobre a aldeia como um sinal de desistência pura. As casas pareciam vazias, como havia sido ordenado. Nenhum vestígio de moradia permanecia naquele fim de mundo. Os homens sentiram-se à vontade como donos. As armas que empunhavam com virilidade inflavam-lhes os peitos fortes e até os adornavam com a aura de segurança de que necessitavam para consolidar a conquista.

Como espertas baratas, as mulheres tinham se escondido, camuflando-se no cenário isolado. Após uma hesitação gélida, Altamira deu o primeiro tiro com seu rifle, que aguardava impaciente o momento. E uma rajada de sangue disparou com fúria do peito de Sengor, o capataz, que viera comandar o trabalho nas minas. Um instante depois de romper a sua volúpia assassina, Altamira desatou-se em assombro. Ela se sentia delirante. Não entendia o que estava acontecendo. De repente, o exército das mulheres não a obedeceu, quando ela deu a voz de comando para colocar em prática a tática de luta que passara tantos dias estudando.

A ira atarrachara os mecanismos da razão das mulheres de Sabíria, que afloraram à praça, ficando à mercê das metralhadoras dos homens, que ribombavam como loucas. Esganiçadas vozes se ouviram e a morte galopou sobre o povoado com a mesma voracidade com que se revelara no combate anterior. Rompendo em gargalhadas ensolaradas, algumas fêmeas saíram de suas casas nuas, com os filhos nos braços, e apresentaram-se ao algoz, que transformava despudoradamente a elas e a seus rebentos em postas de sangue berrante.

E Altamira, com seu rifle sequioso, subiu ao telhado mais alto de Sabíria e descarregou a arma sobre o corpo manso e gordo de mãe Catalina, que já estava esborrachado vermelhamente no chão. Cheia de dor, a velha guerrilheira tinha sido a primeira a dar o passo traiçoeiro, rendendo-se descaradamente à força do invasor. Descabelada pela covardia, ou quem sabe mansidão trágica de suas companheiras, Altamira jogou o rifle na praça. E, sob os olhares atônitos dos homens que admiravam a majestade de sua figura, desencavou suas asas, alçando vôo, até ser devorada pelo horizonte.

NOTA: Conto premiado no Concurso Nacional de Contos “Newton Sampaio”, da Secretaria da Cultura do Estado do Paraná, versão 2002, publicado em 2004.


* Elizabeth Sigoli é jornalista e psicóloga. Trabalhou no Diário Popular, Gazeta Mercant5il, Jornal da Tarde, na Editora Abril, Editora Três, Idéia Editorial, Revista Visão e Editora Globo. Atuou, também, na Rádio Trianon AM 740, foi editora-chefe do Jornal da Associação Médica Brasileira e editora da “Verbo & Sujeito Comunicações Empresariais”, entre outras atividades.



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