quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Mudanças das falas obesas através dos tempos - Mara Narciso


Mudanças das falas obesas através dos tempos



* Por Mara Narciso
 
A dinâmica da civilização transforma tudo, em instantes, nesse mundo globalizado e superconectado. Ninguém quer outro assunto que não seja a guerra política na qual grassa a intolerância, assim, é inútil tocar noutros temas.
 
Mas insisto. Nada se metamorfoseia mais do que a chamada “alimentação saudável”, uma mutante, que poucos sabem do que se trata. A preferência pelo chamado peso adequado também mudou nas últimas décadas. Muitos acham baixo o peso ideal sugerido pela OMS – Organização Mundial de Saúde: um IMC – Índice de Massa Corporal (peso dividido pela altura ao quadrado) entre 19 e 24,9 Kg/m². Para ilustrar esse limite, alguém de 1,7 m deverá pesar, no máximo, 70 kg, para não ter doenças por excesso de bagagem corporal. As pessoas de hoje acham pouco esse peso, querem físicos “mais fortes”, e rejeitam o termo “obesidade”, mesmo para excessos graves, preferindo falar em sobrepeso. Outros parâmetros corporais deverão ser considerados como estrutura óssea, massa gorda, massa magra, limite da medida da cintura de 94 cm para homens e de 80 cm para mulheres e a relação cintura-quadril.
 
Os adultos jovens da década de 1970 eram bem mais magros que os de hoje, sendo o excesso de peso pequeno e raro. Essa verificação visual chegou a assustar no atentado terrorista de Boston, aquele da maratona e das panelas de pressão cheias de prego que foram explodidas no meio da multidão. Os soldados eram altos e gordos. Uma comparação com a corporação de quatro décadas antes mostraria o grande aumento de peso que se verificou.
 
A frequência e o grau de obesidade ampliaram-se, em todos os sentidos, e continuam aumentando. Antigamente, quase que só a classe abastada ficava obesa. Ser gordo era sinal de prosperidade. O sonho da minha avó, Maria do Rosário de Souza Narciso, que media 1,5 m e se casou com 37 kg, era engordar, e tinha como referência duas irmãs gordas. Passou a vida comendo de três em três horas e fazendo superalimentação. Ganhou 12 kg. Jorge Amado, descrevendo um personagem rico, dono de fazendas de cacau, para lhe explicar o físico escreveu: “barriga bem posta na vida”.
 
Quem estava engordando costumava explicar: tenho ossos largos; meu problema é glandular; acho que estou “inchado”; meu intestino é preso, por isso engordo. Outros falavam: eu não entendo porque ganho peso, quase não como, nem almoçar, almoço. Ou: parei os esportes, quase não ando, por isso engordei. Depois, entre os mais sinceros: o nervosismo me faz comer, principalmente à noite. Há algum tempo: meu problema é ansiedade; comer me acalma. Ou, mais recentemente: meu metabolismo é lento; trabalho sentado e chego tarde da noite. Os mais confessionais acusam: ganho peso porque como demais, termino de comer e em poucos minutos já estou com fome; como muito doce, principalmente o chocolate; tenho compulsão alimentar; perdi o controle, preciso de um remédio para me colocar limites.
 
Quando o cliente diz não comer em excesso, o profissional imaturo pode ficar impaciente e tecer críticas a obesidade em si, falando palavras duras, mencionando gula, preguiça, falta de coragem, e isso não ajuda, e sim, humilha, afugenta. Saber acolher beneficia. Longe de ser um problema de saúde individual, é epidemia mundial, especialmente nos países ricos. Sua complexidade desafia a ciência, seja Fisiologia, Endocrinologia, Nutrição, Psiquiatria, Psicologia, Farmacologia, Cirurgia Geral, Cirurgia Plástica e Educação Física. Os sucessos iniciais acabam, com desapontadora frequência, em fracasso, do qual estudos mostram recuperação do peso, após medicamentos e/ou cirurgia bariátrica, até mesmo em quem tenha excluído 50, 60 kg ou mais, há anos, com grande transformação da sua vida, inclusive com cirurgias plásticas remodeladoras.
 
A linguagem e os tratamentos mudaram, os sucessos e os fracassos se misturam, enquanto o discurso de motivação tem de se adequar a uma população sedentária. Há oferta máxima de alimentação ultraprocessada e ultraconcentrada de calorias em volumes relativamente pequenos. É preciso aprender com os obesos para ajudá-los, porque, a mudança de comportamento, essa necessidade desafiadora, insiste em escapar do controle durante uma vida inteira.

* Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico e sócia efetiva de Academia Montes-Clarense de Letras, todos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”



Um comentário:

  1. Os obesos já são 50% dos brasileiros, e parcela ainda maior de norte-americanos. O combate ao sedentarismo, associado a programas de reeducação alimentar, podem ajudar bem a deter essa ameaça mortal...

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