sábado, 6 de outubro de 2018

Castro borda capítulos de esperança insana - Eduardo Murta


Castro borda capítulos de esperança insana


* Por Eduardo Murta


O arco do viaduto de Santa Tereza, absoluto, é convite a que fique um pouco mais. Que se tarde. É por lá que arrisca madrugadas, as atravessa em sonambulismo de inquietudes. Vão dá-lo por louco, se o virem. Porque faz acenos de quem dialoga com parceiros imaginários, cortando a bruma delicada de junho que densa o lugar. Forma labirintos, o ar quente aflorando das palavras, nas respostas aos homens que, lá do alto, desafiam a musculatura em concreto. Como estivessem num altar. Castro vê aquelas pernas pendendo, o molde das cabeças, e vai identificando: Sabino é o primeiro à esquerda. Etienne vem em seguida. Pellegrino e Otto depois.

Via a todos como a reserva de emoção majestosamente insana da cidade. Mestres dos espasmos de amor. Dos gestos tresloucados. Era justamente aquilo o que o arrebatava: as sagas de beijos finamente roubados, sapatos em pés trocados, o drible no cobrador do bonde, as juras de amor a esmo. Um jeito de dar nobreza angelical a inspirações decididamente demoníacas. Assim inauguravam noitadas que derivavam dos cafés às grutas, e destas aos inferninhos. Tudo alinhavado a um pacto que cheirava a eternidade: o de esconder os relógios, a que as horas jamais se convertessem em cancelas para o contentamento.

Não foi casual, portanto, que aqueles homens convertessem cantos e pessoas em histórias que atravessariam o tempo. Desse rastilho de louvação à vida é que Castro prometera cuidar. Com zelo de um pastor que conduz ovelhas órfãs. Daí manter os livros e lembranças de Sabino, Etienne, Pellegrino e Otto sempre à cabeceira da cama, aos banheiros, aos portais das janelas. À memória fustigada, vai anotando as observações às laterais de cada página. Dali, traçando roteiros do dia seguinte. Fora, então, parar no viaduto, de pé; no bordel, em ruínas; no bilhar, na confeitaria e no mercadinho que haviam se transformado em pura miragem.

Inda que não houvesse lugares como fielmente descritos, haveria de haver pessoas. Numa das publicações folheadas, deu com o número 845 da alameda que levava à Praça da Liberdade. Escovou o terno de ocasião. Preferia os cinzas para tardes assim. Ajeitou o chapéu coco e, óculos indispensáveis, conferiu a limpeza da dentadura no espelho decorado do banheiro. Impecável. Adornou o livro ao recôncavo do braço esquerdo, e partiu. O perfume e o suor varando as folhas.

As características do casario se encaixando, desacelerou as passadas. Enquadrou o compasso cardíaco, porque se emocionava além das fronteiras recomendáveis. Foi à abertura do terceiro capítulo que conferiu a descrição. Mediu as janelas na conta do olhar. A parábola do portão de ferro. Os lustres encastelados às extremidades. Tudo como delicadamente descrito. Fez miradas de periscópio ao interior. O jardim conservado com mimo de apaixonados. A tinta respingando de fresca.

Se recolheu por um instante, as mãos pendendo às grades. Com os braços vazados, à moda do interior, palmeou. Uma, duas vezes. Mais forte na terceira. Viu o movimento da porta, lento, as unhas envelhecidas surgindo emblemáticas, num tremor leve. Não sabia o que dizer. Mas antes que ensaiasse palavras, ouviu a negativa: "Vendo não, vendo não!!". Sorriu. Se apresentou, contou porque estava ali, num relato quixotesco de sacralização da memória e dos sentimentos da cidade.

O morador seguiu enxergando desconfianças, mas foi desabotoando segredos. Até que os tons de voz e os olhares se alinhassem em cumplicidade. Tinham muito do que falar. Castro, mais novo, lhe tomou à companhia amparada, em direção ao painel de azulejos portugueses. Descreveu, profundo, os encontros de emoção com os quatro escritores, as pernas aos vãos do viaduto de Santa Tereza. Planejava, na madrugada seguinte, levar até lá o aliado agora descoberto.

A voz, num veludo de conforto, lhe lembrava Sabino. Seria um parente, talvez. Quis estreitar os detalhes para a incursão a dois, iria perguntar-lhe o nome, mas o teto deu de girar, incontrolável, e os papéis de parede foram se embaralhando. Tombou, em espiral. O gerente do banco sem entender uma só frase do que dissera desde a chegada. Conferiu o pulso, ele recobrando os sentidos. Avisaria logo a família. Personagem assim ainda não lhe fora apresentado. Contasse, acreditariam poucos. Soava a coisas de livro. A peças de ficção majestosamente insanas.


* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. Foi um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.




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