segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Índice


Literário: Um blog que pensa


(Espaço dedicado ao Jornalismo Literário e à Literatura)


LINHA DO TEMPO: Doze anos, seis meses e dois dias de existência.


Leia nesta edição:


Editorial – Contraditório e múltiplo.

Coluna Em Verso e Prosa – Núbia Araújo Nonato do Amaral, poema, “Meu jardim.

Coluna Lira de Sete Cordas – Talis Andrade, poema, “Rosados lábios”.

Coluna Direto do ArquivoElizabeth Sigoli, conto, Altamira, de asas e horizontes”.

Coluna Porta AbertaCláudia Gonçalves, poema, Nu”.

Coluna Porta Aberta – Leo Lobos, poema, “Buscando luzes na cidade luz”.


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A CAMINHO DO SUCESSO!!!

Tudo indica que meu novo livro, “Dimensões infinitas”, a “menina dos meus olhos” entre minha já vasta obra literária, em breve estará nas livrarias, ao seu alcance, querido e fiel leitor. Tão logo a possibilidade se transforme em certeza e seja confirmada a publicação, darei maiores detalhes sobre a editora, a data de lançamento e outras informações pertinentes. Por enquanto reitero o que já informei sobre esse livro. Dimensões infinitas reúne 30 ensaios sobre temas dos mais variados e instigantes. Nele abordo, em linguagem acessível a todos, num estilo coloquial, claro e simples (sem ser simplório) assuntos da maior relevância cultural tais como as dimensões do universo (tanto do macro quanto do microcosmo), o fenômeno da genialidade, a fragilidade dos atuais aparatos de justiça, o mito da caverna de Platão, a secular busca pelo lendário Eldorado, o surgimento das religiões, as tentativas de previsão do futuro e as indagações dos filósofos de todos os tempos sobre nossa origem, finalidade e destino, entre outros temas. É um livro não somente para ser lido, mas, sobretudo, para ser refletido. Meu desafio se, ou melhor, quando ele for publicado, é o de convencer os leitores (no caso você, meu caríssimo amigo) da sua qualidade e importância e transformá-lo num grande sucesso editorial. Por que não?!!! Afinal, já não sou mais, e há muito tempo, “marinheiro de primeira viagem. “Dimensões infinitas”, caso seja mesmo publicado (e estou convencido de que vai ser) será meu quinto livro, o segundo de ensaios. Conto com você, querido leitor, que nunca me abandonou nos meus momentos mais difíceis, como sempre contei. Estou esperançoso e confiante de que em breve essa esperança irá se transformar em euforia. Que os anjos digam amém!!!!

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CITAÇÃO DO DIA:

Tradução da representação 

Para mim, compreender uma sociedade é tentar traduzir como os membros desta sociedade a representam.


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Modos de leitura 

Toda sociedade institui certos modos de ler-se a si mesma. Em “Carnavais, malandros e heróis”, disse – em contraste com outros intérpretes da nossa sociedade – que o Brasil assustava e fascinava porque tinha pelo menos três modos de ler-se a si mesmo. Uma leitura pela casa (pela família – particularista e tradicional), uma outra pela rua (pelas leis, pela impessoalidade e pelo universalismo) e uma terceira pelo outro mundo. A isso correspondia um triângulo de festas – Carnaval, Semana da Pátria e Semana Santa – e também um triângulo de heróis destes cenários: os malandros, os caxias e os santos (ou renunciantes). Diferentemente de outros sistemas, o Brasil instituía como “normal” essa leitura tríplice de si mesmo enquanto sociedade, evitando uma definição hegemônica, feita por apenas um desses momentos ou tipos ideais.

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Reação ao de fora 

É preciso entender que a sociedade brasileira não é um recipiente vazio e que seu povo reage a tudo o que vem de fora e de cima.

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Diferentes leituras

...Em torno de 1900, o Brasil foi lido como um país a ser arianizado; em 1960, foi a nação dos espoliados prestes a realizar sua grande revolução socialista; em 1970, foi a terra do milagre econômico do Delfim e do Médici; hoje, ele é visto como país da violência, da falência moral, do separatismo e da ausência de valores éticos.

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Além das definições 

Nenhuma sociedade se esgota nas definições dos seus membros. As imagens variam, o que nos leva a pensar que somos parte de um momento e de uma geração que nos limita. Isso demonstra que ninguém está com a verdade, o que é um alento numa sociedade, na qual cada grupo foi sempre dono de uma verdade absoluta.

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Culturas e contradições 

...As culturas orquestram contradições. O credo igualitário americano reinventou a hierarquia na forma de uma segregação racial odienta e vergonhosa. O Brasil reinventou uma igualdade carnavalesca, deixando intacta a hierarquia tradicional que permite a exploração econômica e, sobretudo, a política das massas.

(Roberto da Matta, artigo “Compreendendo o Brasil”, Jornal do Brasil, 24 de julho de 1993).



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Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Editorial - Contraditório e múltiplo


Contraditório e múltiplo



Os meus críticos mais ferozes e contumazes, que se fazem sempre presentes em todos os espaços públicos que frequento, quer na imprensa escrita quer na internet, pondo reparos em tudo o que escrevo, acusam-me, de forma constante e recorrente, entre outras coisas – como pedantismo, vaidade, desonestidade intelectual, etc.etc.etc. – de ser contraditório. É certo que me dão um desconto e admitem que minhas contradições não são ostensivas, grosseiras, evidentes desde as primeiras linhas dos meus textos, destas que saltam aos olhos. Mas garantem, do alto da sua arrogância, que existem e que são, isto sim, dissimuladas, sutis, camufladas, mascaradas até.

Não costumo lhes dar respostas que, ademais, seriam inúteis. Há pessoas que são assim. Cismam com determinado indivíduo, sem nenhuma razão objetiva ou motivo de ordem pessoal, e passam a hostilizá-lo até o fim dos tempos, sem se deixarem convencer por nenhuma espécie de argumento contrário àquilo que pensam.

Ademais, apesar de intimamente dirigir-lhes sonoros palavrões, desses de fazer até estátuas corarem de vergonha, publicamente faço questão de manter distância deles. E nos momentos de descontração e bom humor, essa sua hostilidade sem trégua chega, até, a lisonjear-me. Afinal, queiram ou não, esses críticos ferozes (e às vezes mordazes) são meus mais fiéis leitores. E, sobretudo, atentos.

São eles que leem meus textos com espírito analítico digno de arqueólogos que tentassem desvendar algum eventual e desconhecido alfabeto do passado, perdido por milênios, alguma espécie de hieróglifos de remota e perdida civilização, só que, neste caso, no mero afã de encontrar algum deslize grave meu sobre o qual tripudiar.

Quando não encontram nada (e raramente encontram), enveredam para o terreno do subjetivo. Buscam adivinhar supostas intenções (que nem eu mesmo consigo identificar quais eram quando decidi escrever aquelas crônicas, ou ensaios, ou artigos, ou reportagens objetos de suas críticas), e, como não poderia deixar de ser, sempre as piores possíveis.

O engraçado é que não se importam com o ridículo. Não raro, são desafiados por meus defensores gratuitos (também os tenho, sem lhes passar, contudo, nenhuma procuração para advogarem minha causa, o que fazem à minha revelia) e provocam, dessa forma, intermináveis (e inúteis) debates, sem que as partes, óbvio, cheguem a qualquer conclusão, num confronto inócuo e surrealista de vaidades.

Sabem o que mais? Esses chatos grudentos nunca me viram uma só vez que fosse na vida, mesmo que somente por fotografia. Não sabem se sou louro, moreno, asiático ou pele vermelha; se sou alto, baixo, magrela ou barrigudo; se sou belo como um Adonis ou feio como a mãe da peste. Nunca conversaram comigo, jamais ouviram minha voz, não compareceram a nenhuma palestra ou conferência das tantas que fiz, não sabem nada, absolutamente nada a meu respeito. E, ainda assim.... garantem que me conhecem.

Ainda se eu escrevesse pouco, publicasse um ou outro texto, ocasionalmente, seria pelo menos mais fácil esse estranho assédio, essa doentia obsessão. Não é o que ocorre. Minha produção mensal é imensa e a quantidade de coisas que já escrevi no último meio século ascende a alguns milhares. E todas, invariavelmente, contam com observações desairosas desses ferozes e fiéis críticos. A maioria me acompanha há décadas e sempre com a mesma postura. Nem mesmo minha mulher me demonstrou ao longo de um estável casamento tamanha fidelidade! Creio que Freud teria explicação para esse fenômeno. Eu é que não tenho.

Quanto às minhas propaladas contradições... Acabei de fazer, neste instante, comparações de alguns textos que escrevi há quarenta anos com outros produzidos hoje e percebi que todos guardam surpreendente coerência entre si. Meu estilo, claro, evoluiu (na minha avaliação, para melhor). Os temas, agora, são desenvolvidos com maior agilidade e profundidade, fruto da maior experiência e conhecimentos que adquiri. Mas, na essência, minha escrita pouco mudou.

Todavia, para satisfazer meus fidelíssimos críticos (que, afinal, merecem alguma compensação por tamanha fidelidade, diria que canina), é mister que faça uma dramática admissão. Porém, já que me acusam de oblíquo e dissimulado, valho-me dos versos de um magnífico poema de Walt Whitman, para afirmar o que tanto eles queriam arrancar de mim: “Contradigo-me? Pois bem, contradigo-me. Sou extenso, contenho multiplicidades”. Satisfeitos? Vocês venceram! Um a zero para vocês!


Boa leitura!

O Editor.


Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk

Meu jardim - Núbia Araújo Nonato do Amaral


Meu jardim

* Por Núbia Araújo Nonato do Amaral

No meu jardim tem flor
tem formigas, tem beija-flor.
No meu jardim tem sol
tem trepadeira, tem girassol.
No meu jardim tem magia
e nada se repete dia a dia.




* Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário.


Rosados lábios - Talis Andrade


Rosados lábios


* Por Talis Andrade

Suave beleza
de uma menina
beijando outra
Suaves pétalas
macios toques dos lábios
Bocas que se juntam
para um salivado fôlego
de náufragas
Rosados molhados lábios
que os beija-flores sugam
línguas que lambem
a calda de um doce no ponto
a calda viscosa
saborosa seiva
do toque de línguas
na troca de saliva
que vai se tornando mel

* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).

Altamira, de asas e horizontes - Elizabeth Sigoli



Altamira, de asas e horizontes


* Por Elizabeth Sigoli


Quando o raio de sol incidiu sobre o cano do rifle de Altamira, fincado sorrateiramente em sua janela, um reflexo argênteo, ágil, projetou-se na calçada da praça. Era um sinal e todas as mulheres sabiam o que ele significava. Altamira estava ansiosa. Vislumbrava com gana o momento do ataque. Já há algum tempo os moradores da aldeia de Sabíria só se preocupavam em servir à sua volúpia de guerra. Em todas as casas as mulheres tinham estocado um punhado de armas, formando um arsenal improvisado. Os meios mais rudes de luta tinham sido revividos. E a terra exalava um odor de fêmea e sangue.

Vingança era o que clamavam os gestos calculados daquelas mulheres, durante os dias em que elas se preparavam para a luta. As mais moças deslizavam furtivamente como gatas, espalhando mensagens. As velhas ficaram encarregadas de preparar a munição e cuidar da manutenção das guerreiras. Mãe Catalina era uma espécie de conselheira. Qualquer idéia que as outras tivessem chegava logo ao seu conhecimento para discussão e julgamento em grupo. Sempre fora esse o papel da mãe Catalina na aldeia. Ainda nos bons tempos, ela era consultada até para indicar, após estudos prolongados, os melhores dias para a colheita.

Altamira, mulher-cobra, também era figura de destaque no exército. A ela estavam confiadas todas as decisões de caráter prático. E ainda que o gênio dessas duas mulheres fosse completamente diferente, elas se davam muito bem, acatando-se com respeito mútuo, que transbordava de seus olhares firmes. Mãe Catalina era uma matrona estabelecida à custa de uma prole numerosa e de um marido frágil, que tinha medo do mundo. A mulher o amparara sempre, com sua voz vibrante, cheia de coragem para enfrentar aquela vida que não era fácil. Nos últimos anos, já não viviam juntos, porque Mãe Catalina decidira que não poderia mais ficar tomando conta de tamanho homem. E concentrara-se na tentativa bem-sucedida de formar uma boa vizinhança na aldeia, espalhando também um sentimento de segurança. E incitando a combatividade em todas as pessoas acomodadas.

Sua figura tosca, resplandecente, clamava por justiça. E era nesse ponto que sua personalidade tinha algo em comum com o gênio consciencioso de Altamira. A mulher-cobra jamais tivera homem algum. Animal selvagem que era, assustava a todos com sua liberdade e instinto sem fronteiras. Nenhum macho ousava levantar os olhos para encarar abertamente aquela diva réptil. Mas, nas reuniões do conselho da aldeia, todos ouviam com respeito suas sábias e imperativas palavras. E então prestavam-lhe um culto de admiração. Foram essas duas fêmeas, possuídas pela paixão existencial, que rebentaram em protestos contra a passividade dos cidadãos de Sabíria, numa das últimas reuniões do conselho. Uma espécie de sessão coletiva, na qual eram apreciados os problemas dos moradores da aldeia.

Nessa noite, mãe Catalina proclamara um estado de discussão feroz.
- Porque, se continuarmos protestando apenas com a língua, a invasão vai começar mais cedo do que esperamos. Já estamos cansados de saber que eles querem nossas terras com o afinco da possessão. Conhecemos claramente suas intenções de nos expulsar daqui, simplesmente porque não querem dividir conosco os lucros que irão obter com a extração do urânio encontrado em nossa região. E nós, em troca, despejamos sobre eles um punhado de inúteis palavras! À guerra, conterrâneos!
- Daqui a uma semana, eles voltarão. E, se os homens da aldeia não tomarem nenhuma providência para enfrentar a situação, eu me proponho a formar um exército com as companheiras que me apoiarem.
  • Lembrem-se de uma coisa: Sabíria não conta com proteção oficial de Estado algum. Somos apenas uma aldeia, um povoado, um ajuntamento de casas e pessoas. Não constamos do mapa do país. Não temos governo que nos cobre impostos. Portanto, não existimos. O que temos em comum nesta pátria são apenas a língua e os costumes. Além disso, somos mais solitários do que todos os povos de que já ouvimos falar. Sequer temos vizinhos...

Houve um silêncio que perduraria ainda por alguns momentos, se a voz de Altamira não quebrasse aquele clima de reflexão e medo.
- Mãe Catalina tem razão. Temos de lutar por estas terras, que não estão em nossas mãos por mero acaso. Elas nos pertencem há séculos. E não vamos abrir mão do direito de propriedade, que, para nós, significa, antes de mais nada, poder viver em paz nesta aldeia.
- O invasor aproveita de nossa fragilidade para nos expulsar. Afinal, não temos papéis que garantam nosso direito de posse. O governo insiste em ignorar nossa presença no lugar. Seus agentes apenas inspecionaram a área, para constatar a existência do minério. A concessão foi vendida à companhia estrangeira, que nos ameaça agora com seus capangas. A única coisa que nos resta é lutar contra estes bandidos. Não devemos ceder. Não podemos ser coniventes com a injustiça que é tramada contra nós.

Cristóbal foi o primeiro homem a entender a proposta agreste de rebelião. Para não sucumbir no ato à intempestividade das mulheres, falou com grande ponderação. Na verdade, todos temiam a invasão e retardavam o momento de decidir pelo combate, apenas por um certo comodismo rançoso. Afinal, deixar o lar, arranjar armas e lutar contra homens preparados para esta tarefa parecia-lhes um passo perigoso demais. A história de Sabíria recordava atos de bravura realizados pelos antepassados. Mas os tempos eram outros. Agora, as condições de luta eram desesperadamente desiguais. Apesar disso, Cristóbal, impulsionado pelo seu sangue de jovem mártir, concordou em lutar. E, no conselho, iniciou-se uma votação para definir a posição dos cidadãos. Apenas oito, dos quinhentos moradores adultos da vila, votaram contra a proposta.

A reunião durou ainda duas horas. Discutiram-se os planos para o ataque no dia em que os capangas da companhia Lord Star viessem subornar os sabirianos, tentando expulsá-los através de uma recompensa fictícia. Era a primeira vez que as gerações de mãe Catalina, Altamira e Cristóbal sentiam juntas que só a opção pela luta asseguraria o direito de sobrevivência de sua gente. E, com a intenção de exercer justiça a todo custo, transformaram a aldeia numa fortaleza. No dia em que os invasores chegaram, os sabirianos dispersaram-se sabiamente pelas colinas que contornavam a cidade. E a guerra começou com otimismo e fé. Os primeiros homens da companhia esfacelaram-se. Embora estivessem fortemente armados, não esperavam uma reação tão encadeada. Mas alguns resistiram até que os reforços militares foram chegando. E três meses durou aquela batalha nos confins do mundo, até que foram exterminados pelo delírio da força estrangeira todos os homens de Sabíria. Com exceção do velho Íbano, que nem pudera acompanhar o exército, por achar-se paralisado.

Ocultando a verdadeira dor que sentiam, as mulheres sabirianas receberam os invasores amigavelmente dias após o término da luta, quando já haviam enterrado seus mortos em plena praça. Segundo ordens de mãe Catalina e Altamira, nenhuma delas chorou, protestou ou demonstrou medo ante os estranhos, que lhes prometiam ajuda de custo. E até lhes indicavam um lugar pretensamente saudável para morar com seus filhos, a vila de Santrevo.
  • E voltaremos na próxima terça-feira. E queremos as casas abandonadas. Em consideração à população exclusivamente feminina que vocês constituem agora por força das circunstâncias, não iremos vistoriar suas casas à procura de armas. Apenas pedimos que colaborem conosco, pois as coisas já se tornaram bastante difíceis. E saibam que o governo do seu país está conivente com todos os nossos atos.

Os novos donos de Sabíria afastaram-se hirtos, gloriosos. Tão confiantes estavam que não deixaram no povoado sequer um guardião. E não entenderam a atitude fria das mulheres, que nem hostis se mostraram. Quando tiveram a certeza de que eles já estavam longe, as mulheres de Sabíria reuniram-se e deliberaram selvagemente sobre a imperiosidade de novo combate.
- Talvez morramos todas. Mas de que vale viver agora que nossos companheiros se foram? E que temos de abandonar nossos lares?

O grito de Anastazia, seco, firme, parecendo mais um hino de guerra, incendiou todas elas. Anastazia não se conformara com a morte dos homens e, principalmente, do impetuoso Cristóbal, um amante que a inflamara sempre de prazer e de coragem.

Lúcidas e ágeis, as mulheres souberam aguardar. E, quando os usurpadores chegaram dias mais tarde, o silêncio pesava sobre a aldeia como um sinal de desistência pura. As casas pareciam vazias, como havia sido ordenado. Nenhum vestígio de moradia permanecia naquele fim de mundo. Os homens sentiram-se à vontade como donos. As armas que empunhavam com virilidade inflavam-lhes os peitos fortes e até os adornavam com a aura de segurança de que necessitavam para consolidar a conquista.

Como espertas baratas, as mulheres tinham se escondido, camuflando-se no cenário isolado. Após uma hesitação gélida, Altamira deu o primeiro tiro com seu rifle, que aguardava impaciente o momento. E uma rajada de sangue disparou com fúria do peito de Sengor, o capataz, que viera comandar o trabalho nas minas. Um instante depois de romper a sua volúpia assassina, Altamira desatou-se em assombro. Ela se sentia delirante. Não entendia o que estava acontecendo. De repente, o exército das mulheres não a obedeceu, quando ela deu a voz de comando para colocar em prática a tática de luta que passara tantos dias estudando.

A ira atarrachara os mecanismos da razão das mulheres de Sabíria, que afloraram à praça, ficando à mercê das metralhadoras dos homens, que ribombavam como loucas. Esganiçadas vozes se ouviram e a morte galopou sobre o povoado com a mesma voracidade com que se revelara no combate anterior. Rompendo em gargalhadas ensolaradas, algumas fêmeas saíram de suas casas nuas, com os filhos nos braços, e apresentaram-se ao algoz, que transformava despudoradamente a elas e a seus rebentos em postas de sangue berrante.

E Altamira, com seu rifle sequioso, subiu ao telhado mais alto de Sabíria e descarregou a arma sobre o corpo manso e gordo de mãe Catalina, que já estava esborrachado vermelhamente no chão. Cheia de dor, a velha guerrilheira tinha sido a primeira a dar o passo traiçoeiro, rendendo-se descaradamente à força do invasor. Descabelada pela covardia, ou quem sabe mansidão trágica de suas companheiras, Altamira jogou o rifle na praça. E, sob os olhares atônitos dos homens que admiravam a majestade de sua figura, desencavou suas asas, alçando vôo, até ser devorada pelo horizonte.

NOTA: Conto premiado no Concurso Nacional de Contos “Newton Sampaio”, da Secretaria da Cultura do Estado do Paraná, versão 2002, publicado em 2004.


* Elizabeth Sigoli é jornalista e psicóloga. Trabalhou no Diário Popular, Gazeta Mercant5il, Jornal da Tarde, na Editora Abril, Editora Três, Idéia Editorial, Revista Visão e Editora Globo. Atuou, também, na Rádio Trianon AM 740, foi editora-chefe do Jornal da Associação Médica Brasileira e editora da “Verbo & Sujeito Comunicações Empresariais”, entre outras atividades.



Nu - Cláudia Gonçalves


Nu

* Por Cláudia Gonçalves

na pele crua
a verdadeira face
face à carne
faz-se nua
farto
o homem
em descaminhos
revira o lixo da história
procura pétalas
– asas
escassas
na sorte da rua
colhendo migalhas
da própria amargura
sem lume
e nenhum perfume
volta ao beco
ainda oco de tanto eco –

* Escritora.

Buscando luzes na cidade luz - Leo Lobos


Buscando luzes na cidade luz

* Por Leo Lobos

Busca que busca
a luz da palavra cruzando
rios e lagos
mares e montanhas, internando-se em
cidades, labirintos atuais, bosques
submersos de Santiago a Boston, de
Nova York a Paris, Paris neste
bosque branco que, outra coisa, a mesma coisa
a vejo parada aí
na rua,
pensando talvez no eco
das águas entre a multidão e os carros velozes
buscando a luz, buscando as luzes de uma pele
que ninguém poderá ferir,
enquanto perdidos transeuntes
lhe perguntam
por qual caminho,
lugar se entra,
se sai do espelho
onde ha instantes se consegue ouvir um triste Lewis Carroll
chorar por uma menina chamada
Alice
presa por
ele
numa
história
paradoxal;


(Tradução Pedro J. Bondaczuk).


* Poeta, ensaísta, tradutor e artista visual chileno.