quinta-feira, 1 de maio de 2014

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 8 anos, um mês e quatro dias de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Memória seletiva.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica,“Maldição do tetra’”.

Coluna Contradições e paradoxos – Marcelo Sguassábia, crônica, “Aspone é para os fortes”

Coluna Do fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, conto, “O cheiro do amor”.

Coluna Porta Aberta – Frei Betto, artigo, “Gabo em, Havana”.

Coluna Porta Aberta – Amilcar Neves, artigo “Estarão eles ainda vivos?”.


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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso” Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
 “Cronos e Narciso” Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.



Memória seletiva

Os fatos são caprichosos (há quem os considere “subversivos”). Todo jornalista sabe disso. Não são pautados pelos que trabalham com eles, pautam-nos. Ocorrem à revelia dos encarregados de noticiá-los ou comentá-los, não importa. E é esse “capricho” que me leva a interromper, momentaneamente, meus comentários sobre a vida e a obra dessa figura fascinante, e intrigante, que foi a escritora inglesa, Virgínia Woolf. Mas não se preocupem. A interrupção é somente por hoje. E é motivada pela necessidade de fazer pelo menos o registro de dois eventos quentíssimos, que comentarei, com mais vagar, em outra ocasião.

Um deles é o centenário de nascimento de um dos maiores cantores e compositores brasileiros de todos os tempos, ocorrido ontem, 30 de abril de 2014. Refiro-me ao baiano, ao baianíssimo Dorival Caymmi. Se comentei sua morte, ocorrida em 30 de agosto de 2008, nada mais natural e lógico que, pelo menos, registre os cem anos da sua vinda ao mundo. Os comentários a propósito proponho-me a fazer em ocasião mais oportuna. Não poderia, porém, deixar de registrar esse centenário.

Outro fato que requer registro é o que se refere à morte de Ayrton Senna, ocorrida em um domingo de 1° de maio de 1994. Há, portanto, vinte anos. Já?! Puxa, como o tempo passa! Creio que não haja praticamente nenhum brasileiro, pelo menos dos que residam em áreas urbanas (que nem precisam ser tão populosas) com idade por volta dos trinta anos (talvez até menos), que não tenha tomado ciência, na ocasião, desse trágico acontecimento. Houve comoção generalizada, País afora. Provavelmente, apenas os moradores que viviam (ou sobreviviam) nos grotões mais distantes e esquecidos deste Brasil de dimensões continentais, não souberam o que aconteceu. E, mesmo assim, tenho lá minhas dúvidas.

Lembro-me, como se fosse hoje, daquele 1° de maio de 1994. Como poderia esquecer? Por cair num domingo, folguei nesse dia das minhas tarefas de editor do jornal Correio Popular de Campinas. Caísse durante a semana, mesmo sendo feriado, provavelmente não folgaria. Tínhamos um sábado e um domingo de folga por mês. E aquele fim de semana foi um deles. Não fui escalado para o plantão, o que foi enorme alívio, após catorze dias consecutivos de trabalho. Ufa!

Como sempre fazia nos domingos em que folgava, após o café matinal, fiquei ligadíssimo na televisão, que transmitiria mais um grande prêmio de Fórmula 1. Estava ficando “viciado” nesse esporte, por causa das façanhas de Ayrton Senna. Antes dele, confesso, não me interessava muito por ele, apesar de valorizar os feitos nas pistas de um Emerson Fittipaldi e de um Nelson Piquet. Mas a paixão nacional, e também a minha, era o desempenho ousado e competente do piloto paulista.

Naquele dia, foi disputado o Grande Prêmio de San Marino, no circuito de Ímola, na Itália. Senna havia mudado de escuderia naquele ano. Fora contratado pela Williams, e não vinha tendo a mesma performance que tivera nas equipes anteriores. Ainda estava se adaptando ao carro.  Uma imagem que nunca me saiu da retina foi a do piloto brasileiro, pensativo, no cockpit da sua máquina, à espera do sinal de partida. Deu para notar um olhar perdido, como se estivesse ausente não somente do autódromo, mas até do mundo. Seria premonição do que ocorreria minutos depois? Vá se saber! Nunca ninguém saberá, pois quem poderia revelar, não está mais vivo.

A corrida vinha se transcorrendo normalmente e Senna não ocupava as primeiras posições. Foi quando, em uma disputa com o futuro campeoníssimo Michael Schumacher, o piloto brasileiro perdeu o controle do carro e chocou-se violentamente contra o guard-rail. Soube-se, mais tarde, que uma peça defeituosa fora responsável pelo desastre. O acidente ocorreu na perigosíssima curva Tamburello, que vitimara tantos outros corredores, posto que sem gravidade extrema. Na hora da batida, qualquer pessoa, minimamente observadora, perceberia que o acidente fora grave. As câmeras de TV, em momento algum, mostraram o rosto de Senna, mesmo quando resgatado e instalado no helicóptero, que o conduziria a um hospital das proximidades. Era péssimo sinal.

As notícias foram desencontradas o dia todo. Até que, no início da noite, veio a confirmação do que ninguém gostaria que fosse verdade: Ayrton Senna não resistiu os ferimentos e morreu. Essa informação caiu como uma bomba no País. Apesar de estar de folga, fui convocado, por telefone, a escrever um artigo a respeito. Com escassas informações a propósito da morte, limitei-me a resenhar a carreira vitoriosa do herói nacional e a falta que certamente faria ao esporte brasileiro. Só pude escrever uma crônica melhor elaborada no dia seguinte, texto este publicado na edição de 3 de maio de 1994, intitulado “Maldição do tetra”. Nele, comparei a perda de Senna, que buscava seu quarto título, com a frustração de outros esportistas que buscavam idêntica façanha em outras modalidades.

Estávamos às vésperas da Copa do Mundo dos Estados Unidos, em que a Seleção Brasileira, desacreditada pela crônica esportiva e pela torcida, buscaria quebrar um jejum de 24 anos sem conquistas. A rigor, se a maldição existia, foi quebrada na oportunidade. Nossa equipe desdobrou-se, fez das tripas coração e, declaradamente inspirada em Ayrton Senna, conquistou o tão sonhado, posto que improvável, tetra.

Tornou-se uma espécie de clichê a afirmação de que o “brasileiro é um, povo sem memória”. Discordo. Trata-se de estúpida generalização que não condiz com a verdade. Não, pelo menos, com toda ela. O que o brasileiro tem é memória seletiva. Lembra do que acha que deva ser lembrado e com inusitada intensidade. Prova? Ora, é este 1° de maio, que deixou de ser, para a imensa maioria, o “Dia do Trabalho”, para se transformar no “Dia de Ayrton Senna”. A propósito, após a morte do nosso herói das pistas perdi, por completo, todo o interesse que tinha pela Fórmula 1, que hoje acho chatíssima e cujas transmissões nunca mais assisti.

Boa leitura.


O Editor

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk.                

Maldição do tetra


Por Pedro J. Bondaczuk


A morte de Ayrton Senna priva o esporte brasileiro de um dos seus raros ídolos ainda em atividade e o maior deles desde 1984, quando começou a correr na Fórmula 1. Todavia, morreu somente o homem, cumprindo, embora de forma prematura e trágica, um destino comum a todo ser humano. O mito, certamente, não morrerá jamais. Permanecerá nos corações daqueles que o amaram e até daqueles que não morriam de amores pelo nosso campeão.

Figuras como Senna, como Garrincha (o Mané das pernas tortas, que acabou seus dias na indigência) e principalmente como Pelé, mais vivo do que nunca, jamais se apagarão da memória dos brasileiros. O mesmo vale para Eder Jofre, Maria Esther Bueno, Joaquim Cruz, Zequinha Barbosa, Adhemar Ferreira da Silva, João do Pulo etc.

São heróis em suas atividades, num país tão carente deles. Embora sejam insubstituíveis, deixaram um exemplo positivo, que certamente vai frutificar. A morte de Senna causou maior impacto por ele estar ainda em plena atividade, no vigor dos 34 anos, com amplas chances de quebrar todos os recordes possíveis e imagináveis no automobilismo. Se o faria ou não, a partir de agora ficará restrito, somente, ao terreno da especulação.

A verdade é que nos últimos anos, o piloto paulistano era o melhor dos embaixadores de que o País dispunha. Os brasileiros orgulhavam-se dele e ele revelava um orgulho imenso de ter nascido no Brasil. Uma imagem que jamais vai se apagar da minha retina é a de Senna encostando a sua Lótus negra junto a um muro, no circuito de rua de Phoenix, no Arizona, apanhando junto a um espectador uma bandeira verde e amarela, após uma suada e então surpreendente vitória, e rodando por todo o circuito, exibindo-a para todos.

Era o dia 22 de junho de 1986. Na véspera, a seleção brasileira havia sido eliminada pela da França, na Copa do Mundo do México, na cobrança de penais, Reinava entre a torcida um imenso baixo-astral. O jovem piloto devolveu-nos, na oportunidade, e em dezenas de outras, o nosso orgulho, ferido nos campos de futebol.

Um mito como esse é imortal, embora jamais venhamos a tê-lo novamente entre nós. Que sua morte encha nossos esportistas de brios e assim eles obtenham, em pistas, quadras, ringues, piscinas e campos, o mesmo sucesso desse brasileiríssimo Ayrton Senna, cujo sobrenome era da Silva...Que nos estádios dos Estados Unidos, a partir do próximo mês, nosso selecionado acabe, de vez, com a “maldição do tetra”.

Aliás, essa parece uma sina do esporte brasileiro. Depois da conquista do tricampeonato no México, estamos na fila há longos 24 anos, quase um quarto de século, para sermos outra vez campeões. Nelson Piquet, que tinha a chance de, na Fórmula 1, conseguir essa façanha, se afastou dessa categoria.

E agora essa...O nosso Senna morto...Parece um pesadelo, um sonho mau, do qual venhamos a acordar a qualquer momento e rir de nossas aflições. Infelizmente não é. O corpo do jovem piloto será sepultado na São Paulo em que nasceu e tanto amou. Seu espírito, não. Terá sempre o primeiro lugar no pódio do nosso coração. Sua sepultura será, parodiando o escritor argentino Jorge Luís Borges, “o ar insondável...”.        

(Crônica publicada na página 2, do caderno de Esportes do Correio Popular, em 3 de maio de 1994, dois dias após a morte de Ayrton Senna na Curva Tamburello do Circuito de Ímola, na Itália).

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk 
  
Aspone é para os fortes

* Por Marcelo Sguassábia

Se finjo estar trabalhando, a câmera flagra e meu superior imediato pode me cobrar explicações sobre o que estava fazendo -  já que ele, por ser meu chefe, certamente sabe que eu não deveria estar fazendo nada, pois fazer nada parece ser a ordem natural das coisas nesse lugar. Se assumo a inércia, deixo comprovado em vídeo que não tenho porque estar aqui, que sou dispensável e devo ser dispensado.

Tenho uma sala só minha, o que torna impossível uma análise de rotina dos colegas para determinar um padrão de comportamento. Não há comparativo, nem como saber se estou acima ou abaixo da curva média de produtividade.

A câmera de segurança está bem às minhas costas e grava ininterruptamente. Qualquer tentativa que faça de vandalismo ou destruição da lente será captada. Tento transmitir um bom-mocismo de fachada, a coluna ereta no encosto da cadeira, o “Fale com a gente” da empresa o tempo todo na tela, a mão no queixo e o ar de quem está intrigado em busca da solução de algum problema, de um improvável e redentor problema.

Simular conversas ao telefone também é expediente inútil. O controle de ligações descobriria que o meu ramal não tocou hoje, nem ontem, nem nas últimas semanas, nem nunca. Uma interessante saída seria o celular, mas levá-lo ao ouvido dezenas de vezes por dia denunciaria desvio de atenção às funções, falta grave e passível de advertência.

Entre fazer nada e fingir estar fazendo alguma coisa há um hiato tênue, e é aí que tenho que me equilibrar para tentar me segurar enquanto posso. Mas não é fácil. Parece-me infinitamente mais estressante manter-me neste vácuo do que trabalhar de estivador 16 horas por dia. O estivador não tem o que esconder nem disfarçar, só tem a estiva pela frente e câmera alguma por trás.

No começo, tentei ser pró-ativo. Quando assumi minhas funções (?), há 11 anos, sugeri um layout novo para as cartas do jogo de paciência, talvez com um background customizado e até um sonzinho, para quebrar a monotonia. Argumentei que os joguinhos padrão que vinham com o sistema operacional não tinham muito atrativo, e acabavam por dispersar o foco do colaborador e minar seu interesse pela rotina de trabalho. Dispunha-me a acionar o departamento de TI para encampar o projeto comigo. Estou esperando até agora pela resposta à minha sugestão.

Não há saída além de rezar ou praticar meditação, tomando cuidado para que o sono não tome conta e tombe involuntariamente a minha cabeça sobre o  teclado ou me arrume um fio de baba, fatalmente captado pela câmera.

O melhor a fazer é posicionar-me imóvel, sentado à frente do computador, de tal forma que a câmera não capte o que está na tela e nem consiga definir se estou ou não digitando algo. Essa imobilidade de corpo e mente resulta em completa exaustão ao fim das oito horas regulamentares. Deixo o trabalho trêmulo de dores em todas as juntas, com os nervos em frangalhos e a respiração suspensa, sem saber ao certo o que viram de mim e como avaliaram o que viram. Se me deram o flagra de fazer ou de não fazer aquilo que não tenho a menor ideia do que deva ou não ser feito. Que me salve uma justa e providencial licença médica, mas para consegui-la tenho que me queixar. E prefiro não correr o risco.

* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).

O cheiro do amor

* Por Gustavo do Carmo

Era a primeira vez dele. Enfim iria perder a virgindade. Estava em casa com a primeira namorada. Ou a primeira mulher que conseguiu levar para cama. Não sabia se o relacionamento iria continuar a partir dali.

Cansou-se dos homens. Tinha acabado de terminar um namoro de dez anos com um empresário rico com a internet. Estava quase marcando o casamento com ele. Um “mauricinho babaca”, segundo ela, que ficou arrasada quando descobriu que foi traída. Este já era o seu terceiro namorado.  Antes, ficou cinco anos com um surfista na adolescência e foi a “outra”, durante dois anos, de um vereador que tinha idade para ser o seu avô.

Já tinha passado dos 40, quase chegando aos 50. Os pais, com quem ainda morava, não ficariam contra o namoro, pelo contrário. Queriam muito que o filho desencalhasse. Mas levou a moça, que beirava os 30, para casa antes de apresentá-la a eles. O pai tinha viajado e a mãe passando uma semana na casa da outra filha, irmã dele. 

Natalie sabia que Raul era tímido e já no ponto crítico da imaturidade. Mas juntou a decepção com os três namorados anteriores com o sentimento de amizade que tinha por ele. Arriscou e cedeu aos seus encantos. Embora imaturo e por vezes bobo, Raul era um homem de caráter. Delicado, não romântico. Respeitava as mulheres, o que Natalie sempre admirava. Era honesto e sincero, mas às vezes, exagerava na sinceridade.

Ambos tinham traços físicos que agradavam mutuamente. Natalie, pele clara, cabelos pretos, seios grandes e magrinha. Raul, moreno mais bronzeado, sem ser mulato, e cabelos pretos lisos. Já estava bem fora de forma, mas ainda não podia ser considerado gordo. Ela gostava de um gordinho.

Eles começaram a despir um ao outro. Pareciam apressados. Beijavam-se ardentemente. Tudo estava indo bem. Até que um cheiro estranho invadiu o quarto do rapaz logo que tiraram os respectivos sapatos. Um cheiro de queijo forte. Não havia dúvidas: era um chulé.

Passaram a trocar acusações mútuas. O clima romântico já quebrado. Uma discussão de casal em crise tomou conta do quarto. Quase chegou aos vizinhos.
— Meus três namorados anteriores eram canalhas, mas não eram porcos.
— Então arrume outro mais limpinho. Se é que os outros não achavam você fedida!
— Fedido é você!
— É você!

Começaram a rir e voltaram a se beijar ardentemente. Foram tomar banho juntos. A noite que quase foi estragada foi salva como se alguém tivesse borrifado um desodorante de lavanda.

Assumiram o namoro. Casaram-se. Tiveram dois filhos. Enriqueceram juntos com uma casa de festas. Dez anos depois, Natalie se separou de Raul, o chamando de mimado fedido, mesmo com o mau cheiro vindo sempre dela.

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu  blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores


Gabo em Havana

* Por Frei Betto


Meu último encontro com Gabriel García Márquez e Mercedes, sua mulher, foi em Havana, a 11 de dezembro de 2008. Ele parecia cansado e já demonstrava sinais da enfermidade que o consumiria.

Conheci-o na capital de Cuba, em fevereiro de 1985. Perguntei-lhe se havia terminado seu novo romance, O amor nos tempos do cólera.

— Terminei o texto linear. Agora trabalho nos acertos.

Gabo havia enviado o texto a Fidel, que pouco depois chegou a casa onde nos encontrávamos. Ansioso, indagou se o Comandante já havia lido os originais.

— Sim, e com muita atenção – disse Fidel. — Descobri um erro crasso.

Gabo ficou lívido.

— Você escreve que um barco saiu de Cartagena transportando toneladas de ouro. Fiz alguns cálculos. Um barco da época, todo de madeira, teria afundado no próprio porto.

Em novembro de 1985, Gabo me chamou à casa de protocolo 61, onde se refugiava para escrever, e mostrou-me seu discurso para abertura do congresso de intelectuais. Uma irônica e divertida história de congressos.

— Sugiro a você ressaltar o múltiplo aspecto da cultura popular na América Latina – opinei. — Como cultura de resistência, solidariedade, protesto, jogo e festa.

Ele me fez subir para o segundo andar da casa, ligou seu Macintosh e acrescentou ao texto a sugestão.

— Em que período do dia você prefere escrever? – perguntei.

— Pela manhã, após banhar-me, vestir-me e tomar um vasto café.

Era a primeira vez que eu via o computador com a grife da maçã. Fiquei maravilhado diante daquela máquina. Ele me mostrou como funcionava e insistiu para que eu comprasse uma. Depois, "roubou" de Mercedes um exemplar de seu romance El amor en los tiempos del cólera, a ser lançado em breve, e me presenteou com uma dedicatória.

Em julho de 1986, participei em Havana de uma recepção oferecida por Fidel a um chefe de Estado da África. Às três da madrugada, Gabo e eu deixamos o Palácio da Revolução e cada um se dirigiu à casa em que se hospedava.

Meia hora depois, quando eu já pegava no sono, soou o telefone da cozinha. Fui atender:

— Companheiro, aqui é da casa de García Márquez – disse uma voz anônima. — Ele está indo para aí.

Por que Gabo viria ao meu encontro àquela hora? Aguardei 20 minutos, bêbado de sono. Nenhum Prêmio Nobel vale o preço do meu sono. Como não apareceu, voltei à cama após deixar a porta da casa encostada.

Na manhã seguinte, fui informado de que na casa de Gabo haviam recebido telefonema de alguém que dissera: "Frei Betto pede que venha urgente a casa dele".

Ao contrário de mim, que voltara a dormir, Gabo atendeu ao chamado e ficou até as 7h da manhã na varanda da casa em que eu estava hospedado, conversando com amigos que me acompanhavam na viagem.

Nunca entendi por que os fantasmas da madrugada pretenderam nos manter despertos e juntos... Gabo poderia ter aproveitado o estranho episódio para um de seus primorosos contos.


Frei Betto é escritor, autor de “Aldeia do silêncio” (Rocco), entre outros livros.
Twitter: @freibetto.


Estarão eles ainda vivos?

* Por Amilcar Neves

Um aposentado de 77 anos mora com a mulher em um sítio nos arrabaldes violentos de uma cidade violenta da Grande Rio de Janeiro: ele, a mulher, o caseiro, os cachorros que cria e, mais inofensivas, as orquídeas que cultiva. É assassinado em casa por três facínoras que invadem o sítio, ludibriam os cachorros, ignoram as orquídeas, amarram o caseiro e surpreendem o casal quando retornava ao lar: arrombaram a casa às 14 horas e, sem mexer em nada, esperaram pacientemente os donos chegar, lá permanecendo por quase dez horas. Os bandidos faturaram dois computadores, duas impressoras, joias, 700 reais, duas pistolas e uma carabina calibre 12 da coleção particular do ancião. Suspeita-se que outros dois meliantes, num carro, dessem cobertura ao trio cruel.

Um acontecimento trivial que não merece mais a mínima atenção do telespectador e que, por consequência, é ignorado pela imprensa, afora os destaques habituais nas seções sensacionalistas que se nutrem de sangue ao tratar de gente que mal tem nome: um João, uma Maria, um Antônio e três marginais é tudo do que se necessita para identificar vítimas e assassinos. Do crime da véspera para o de hoje, mudam apenas alguns detalhes sórdidos.

No caso, o velhinho vivia retirado do mundo há três décadas, desiludido com a vida e remoendo o esquecimento a que fora relegado. Andava bastante magoado com a instituição pela qual literalmente dera o sangue - o dele e, muito especialmente, o de outrem - e que acabou por abandoná-lo. Pelo menos era assim que ele enxergava a situação. Considerava, judicioso, que não somente ele fora descartado, mas muitos dos seus, colegas honrados que ombrearam com ele os mesmos ideais, as mesmas lutas, idêntico fervor cívico e moral.

Paulo, na verdade, era o nome do ancião que morreu asfixiado sobre o próprio travesseiro. Dos cinco filhos, não tinha intimidade nem mantinha contato com nenhum. Embora fortes suspeitas sugiram que teria relações estreitas com grupos de justiceiros da região, vivia recluso no sítio com Cristina, de 40 anos, sua sexta esposa, a qual passou 25 anos ao lado do marido. Vasculhando a casa após o bárbaro crime, policiais federais recolheram três computadores, mídias digitais, agendas e documentos que seriam da época da ditadura militar, inclusive relatórios de operações secretas. Naquele tenebroso período da vida nacional, o tenente-coronel Paulo Malhães serviu no gabinete do ministro do Exército e foi agente do Centro de Informações do Exército. Morreu no dia 24 de abril, uma bela data.

Trinta dias antes, em 25 de março, ele prestou depoimento à Comissão Nacional da Verdade relembrando suas façanhas. Contou em detalhes como a ditadura mutilou e desapareceu com os corpos de presos políticos. Segundo o velhinho, "para evitar que fossem encontrados, os agentes dos serviços de repressão jogavam os mortos em rios, em sacos impermeáveis e com pedras de peso calculado. Isso impedia que afundassem ou flutuassem. O ventre da vítima também era cortado, evitando assim que inchasse e voltasse à superfície. O objetivo era criar condições para que o corpo fosse arrastado pelo rio. No caso de serem encontrados, os restos mortais dificilmente seriam identificados, porque os militares tomavam a precaução de arrancar as arcadas dentárias e os dedos das mãos, antes de lançá-los às águas."

Em 1973, o gabinete do ministro incumbiu-o de dar sumiço no corpo do deputado Rubens Paiva. "Eu adorava meu trabalho", ele costumava dizer.

* Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados, alguns dos quais à venda no sítio da TECC Editora, em http://www.tecceditora.com. A partir de 26 de agosto de 2013 integra o Conselho Estadual de Cultura, na vaga destinada à Academia Catarinense de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 32.