quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Voz da solidão


As obras de arte do passado, as que sobreviveram às grandes comoções políticas e sociais, como guerras, saques e destruição, e às múltiplas catástrofes, naturais ou provocadas pelo homem, claro, são como vozes de além-túmulo a nos testemunhar como eram, o que fizeram e como viveram nossos remotos ancestrais.

Muita coisa, diria a maioria, se perdeu no tempo, privando-nos de preciosas informações sobre as nossas origens. E esse mal é irremediável. O que se perdeu, é absolutamente irrecuperável. Mas o pouco que restou (e não dá para dimensionar o quanto isso representa, em termos percentuais, em relação ao que foi produzido) tem duplo valor: o artístico e o documental.

Essas obras de arte são as mais confiáveis fontes em que o historiador contemporâneo pode “beber”, para nos trazer um relato razoavelmente preciso sobre povos, heróis, vilões, santos e tiranos dos primórdios da civilização. As epopéias “Ilíada” e “Odisséia”, de Homero, nos falam, por exemplo, de como eram os gregos dos tempos heróicos e nos testemunham, também, a existência de Tróia e de seus líderes e seu povo.

O mesmo ocorre com a “Eneida”, de Virgílio; com a “Ramaiana” e “Mahabarata”, dos hindus, e com tantos e tantos outros poemas épicos, esculturas, arquitetura etc. que sobreviveram ao tempo e ao esquecimento. São, portanto, quase que literalmente, “vozes de além-túmulo”.

E tudo isso foi criado pelo talento de homens como nós, mas solitários, pois tinham profunda desvantagem em relação às pessoas de hoje, já que não contavam com os conhecimentos, os meios de locomoção e de comunicação e conforto que nos são proporcionados pela evolução da tecnologia. Foram obras geradas por talentos ímpares nas condições mais adversas que se possam conceber.

Até a invenção da imprensa, por exemplo, por Johann Guttenberg, os livros eram feitos a mão, um a um, por copistas, geralmente monges, que transcreviam os originais dos autores, mas nem sempre (como seria de se esperar) rigorosamente da forma que eles os haviam concebido. Pouquíssimas pessoas tinham o privilégio de possuir algum desses exemplares. E muitos que os possuíam não os liam, por serem analfabetos. Ainda assim, para nossa felicidade, alguns magníficos textos (e outros não tão excelentes assim), chegaram até nós. Reputo isso como milagre!
 
Nem todas as artes, porém, que foram praticadas na remota antiguidade, deixaram vestígios, por mínimos que fossem, que pudessem chegar às nossas mãos, homens do segundo milênio da Era Cristã. A dança, por exemplo, é uma delas. Como nossos ancestrais dançavam? Qual era o ritmo que os embalava, quais as coreografias que faziam, que passos, voltas e piruetas davam? Impossível de saber! Só temos certeza (dados alguns registros existentes a respeito, feitos em determinados textos), que nossos antepassados expressavam, de fato, a alegria de viver com o corpo. E, provavelmente, muito mais do que fazemos hoje.

Vários trechos da Bíblia nos dão conta de danças do povo hebreu, como expressão de felicidade e de louvor a Deus. Mas como elas eram? Que indumentária os dançarinos usavam (se é que havia alguma especial)? Isso, com certeza, jamais haveremos de saber. Trata-se de perda total, absoluta e irreparável.

Outra arte que nos deixou pouquíssimos vestígios do passado é a pintura. E é estranho que assim seja. Afinal, tratou-se da primeira manifestação de inteligência do homem primitivo e que originou, inclusive, a escrita. Os hieróglifos egípcios, por exemplo, são linguagem exclusivamente pictórica (assim como a chinesa e a japonesa). Cada letra é o desenho de alguma coisa, de um pássaro, um animal, um regato, uma casa etc. etc. etc. É provável que todos os alfabetos nasceram dessa forma.

Temos, à nossa disposição, desenhos dos nossos semi-selvagens ancestrais, em inúmeras cavernas da Europa, Ásia e Américas. Mas o que as pessoas pintaram, em fases subseqüentes de civilização, por milênios e mais milênios, se perdeu, irremediavelmente, no tempo. Os artistas do passado desconheciam quais as tintas mais duráveis e as maneiras delas não se apagarem. É uma pena.

Finalmente, outra arte que não deixou vestígios, pelo menos de extensíssimas épocas da história, de vários milênios antes da Era Cristã, é a música. Quais os sons que embalavam os nossos ancestrais? Quais foram os seus compositores? Que instrumentos utilizavam? E os cantos corais? Como eram? Quais as melodias que os empolgavam? Também nunca iremos saber. Uma pena!
     
Artistas, felizmente, a humanidade sempre teve em profusão, e em todos os tempos. Espera-se que continue tendo e que tenham mais sorte do que aqueles que tiveram suas obras destruídas. Alguns, do passado remoto, foram felizes. O que fizeram, sobreviveu às mais diversas catástrofes, hecatombes e convulsões políticas e sociais que afligiram os povos. Outros... caíram no mais absoluto esquecimento. Não restou nada, absolutamente nada de concreto para atestar não apenas seu talento, mas, sequer, que existiram.
    
André Malraux constatou, a respeito dos que tiveram a ventura de legar obras à posteridade: “A voz do artista tira sua força do fato de nascer de uma solidão que chama o universo para lhe impor o acento humano; e nas grandes artes do passado, sobrevive para nós a invencível voz interior das civilizações desaparecidas. Mas essa voz, sobrevivente e não imortal, eleva seu cântico sagrado sobre a incessante orquestra da morte”.

Que as obras de arte atuais sobrevivam, todas, não importa como, a todas as catástrofes, hecatombes e convulsões sociais que, certamente, nos atingirão algum dia. Elas, afinal, são um raro, por isso precioso atestado da criatividade e do poder do espírito humano, quando aplicado no racional e no positivo (o que, infelizmente, acontece muito pouco).

Boa leitura!


O Editor.

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Um comentário:

  1. Penso que a maior parte se perdeu, como também, o que temos possa não ser a melhor produção.

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