quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Em abril, a mística da vida

* Por Rubem Costa


Aniversário, qualquer dicionário ensina, é palavra que vem do latim e significa — o que volta todo ano. Repetição do ontem que se torna presente hoje, trazendo lembranças que alegram o espírito e confortam o coração. Festeja-se o aniversário do nascimento porque nele está ínsita a presença imemorial do ser como pessoa, afirmação de uma existência que um dia também vai-se escoar, deixando, entanto, concentrada na memória, a imagem corporal e moral de seu viver. Perante o corpo imóvel e a alma ausente, também se consagra a morte do seres que dignificando o sonho souberam edificar a vida.

De qualquer forma, ao ente enquanto vive, aniversariar implica em um ato de crença. De crença em si mesmo como pessoa atuante diante do mistério das origens que, à falta de melhor explicação, empresta à criação a presunção divina. À medida que pensamos, presumimos, como Descartes, que somos, que existimos.

E por aí, na esteira da crença, descobrimos a vida que precisa ser comemorada. Semana passada, no espaço de quatro dias fui convidado para três festas de aniversário. Gente de meu bem-querer que vive na minha lembrança e mora no coração. Gente que se agrada da vida e agrada por estar viva. Gente cuja presença é motivo de alegria e dá alegria a quem a conhece. Assim, a comemoração alegrou-me com prazeroso convite à emoção. Três pessoas que passeiam na amizade.

Primeiro, apraz-me lembrar da festa de dona Dirce, aniversariante no dia 11, uma dama serena, imagem de paz, que justifica a vida com o privilégio de ter oferecido ao mundo duas criaturas admiráveis: Walmir, com quem mora e a repleta de afeto e Maria Glória que, casada com José Roberto, meu filho, me dá, sem pleonasmo, a glória de ser seu sogro. Gloriosamente festejou o “nat” dia 9. Em sequência, no domingo, foi o almoço na chácara do Expedito (Ramalho Alencar). Valeu a lógica. Acadêmico em três sodalícios de cultura e presidente do IHGCC, não podia deixar de ter a casa cheia para render homenagem a seus méritos. Foram festejos alegres acariciados pelos ventos de abril.

A Bíblia não conta, mas tenho fundada suspeita que foi no quarto mês do ano que Deus completou o mundo. E não estou sozinho nesse pensar, tanto que o grande Vicente Carvalho, poeta santista, que veio ao mundo em 5 de abril de 1866 e faleceu a 22 do mesmo mês em 1924 — um “abriliano” completo — assim saudou o seu nascimento: — Quando nasci, raiava o claro mês das garças forasteiras / Abril, sorrindo em flores pelos outeiros, / nadando em luz na oscilação das ondas / desenrolava a primavera de ouro! Um poema de glorificação à vida que me traz emoção ao espírito, porque toda minha vida tem sido uma jangada a navegar na oscilação das ondas do mês, empurrada pela brisa suave de três grandes mulheres: Minha mãe, Olívia de minha saudade, rosa de amor que me deu à vida, rosa de vida que me deu amor, que numa tarde de abril se despediu, deixando-me a bênção de sua eterna presença. No instante de mágoa, ao meu lado, já estava Ida, que foi meu cajado nas encostas pedregosas e meu guarda-chuva nas horas de tempestade; esposa, a primeira, doce companheira que em cinquenta e oito anos de convivência sempre fez para mim raiar em festa o mês de abril. Quando partiu, quase sem tempo de dizer adeus, chorei. Chorei no quarto sozinho, enquanto lá fora, na noite vazia, uma chuva indiferente, escorrendo pela lembrança, pipocava na vidraça.

Foi quando surgiu Marilene, que trazia em si o signo do conforto, desde a circunstância irônica de ter vindo ao mundo no mesmo ano e dia de abril em que Olívia fechou perenemente os olhos, do mundo partindo.

Adivinhando que a dor que mais dói é a noite vazia no quarto sozinho; abriu-me de novo a janela para a vida e me ofereceu a manhã de primavera que agora lhe retribuo nestes versos de abril:

Manhã de luz,
Manhã de cores
No meu jardim,
Manhã que esplende
E põe o sol
Junto de mim.
Manhã de calma,
Serena,
Enternecida,
Manhã de paz,
De afeto e gratidão
Que faz o amor
Brilhar em cada dia,
Iluminando
No caminho,
Na descida
O alegre entardecer
De minha vida.
Você!

* Professor, jornalista e escritor, membro da Academia Campinense de Letras.



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