O renascimento de dona Assunta
* Por Cecília França
Dona Assunta terminou de passar o
café, colocou o bule na bandeja, ao lado do pão com manteiga, pegou o jornal no
portão e seguiu para a sala onde padre Egídio aguardava o rotineiro desjejum.
Pousou a bandeja sobre as pernas do velho – ela, que também já passara dos
setenta – e alcançou seus óculos na prateleira para dar início à leitura do
periódico.
Apesar dos graves problemas de
visão, o padre mantinha-se lúcido e interessava-se pela vida da comunidade. Mas
naquele dia pediu que ela pulasse as páginas iniciais e encontrasse aquela
reportagem que ele aguardava para ouvir. Era uma surpresa também para a sua
fiel companheira, que durante mais de 40 anos dedicara-se à conservação dos
objetos da paróquia e dele próprio.
Na foto, o padre apontava as
relíquias tão bem guardadas por dona Assunta e que agora haviam sido reunidas
em um mini-museu, instalado em um dos cômodos da casa dele. A reportagem
ganhara destaque maior do que ele imaginara e a expectativa aumentava do velho
à medida que sua companheira avançava pelos escritos.
Pedira a ele que não tocasse em
seu nome, era discreta, nunca gostara de exibição. No entanto, ele, numa forma
de agradecimento, declarou à repórter que aquele empreendimento só estava se
tornando realidade por força dela, por sua dedicação. O padre estava ansioso
por ver sua reação.
"Todos os objetos foram guardados sob o carinho e cuidado de dona
Assunta Olivieri, hoje já falecida". Leu a senhora. Segundos de pausa
se seguiram. Ela, absorvendo a notícia da própria morte no jornal; ele,
tentando entender o que ocorrera. Continuou lendo a reportagem até o final, sem
visível abalo. Quando terminou, fechou o jornal, pegou a bandeja e seguiu para
a cozinha.
O padre, sem saber se a confusão
fora decorrente de sua senilidade ou da juventude excessiva da repórter,
esqueceu-se do assunto e dormiu na poltrona. Notando a indiferença do velho,
Dona Assunta pôs-se a pensar. Avaliou suas conquistas e derrotas e notou que
não havia muitas a serem contabilizadas.
Não perdera parentes próximos
fora de hora – os pais morreram quando ela já era uma jovem senhora –, não
sofrera problemas com filhos, pois nunca os tivera; não se casara; nunca se
apaixonara; nunca fora a um baile, nem bebera nada alcoólico. Sua vida fora
dedicada à paróquia e ao padre – apesar de também nunca ter entrado para a vida
religiosa.
O que construíra? Aquele mini-museu.
Era seu e não dele! Era tudo que ela tinha e ele não lhe dera os créditos
merecidos. Citara seu nome à repórter como o de uma coadjuvante, como se
estivesse fazendo um favor. Agora entendia que não passara de uma ajudante para
ele.
Por ironia, o dia de sua morte
anunciada também era o de seu aniversário. E ele lembrara? Não. Estava
preocupado demais com sua velhice para lembrar. Pegou o telefone, ligou na
paróquia e pediu à secretária que confirmasse sua morte a quem quer que ligasse
– era conhecida dos fiéis, certamente ligariam. A jovem hesitara, mas não teve
argumentos diante da imposição da velha senhora.
Dona Assunta então correu para o
quarto, arrumou suas roupas na pequena mala e saiu. Levou apenas uma foto, da
primeira missa que padre Egídio celebrara na paróquia. Trancou a porta e jogou
a chave por baixo. Desapareceu sem deixar rastros, tornando real a errônea
informação do jornal.
* Jornalista. Mantém o blog http://jornalogia.blogspot.com
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