sexta-feira, 4 de abril de 2014

Pedro Primeiro de Abril

( Por Urariano Mota

Pedro, de quem não sei o sobrenome, foi um amigo que fiz nos tempos da ditadura militar, no cais do porto do Recife. Ele, irmão e filho de trabalhadores do porto. Eu, também filho e irmão de trabalhadores do porto. Ambos, pelo que gostávamos de ler, por nossa profunda angústia naqueles tempos – e que jovem, um pouco acima do medíocre, não estava então à beira do desespero? – ficamos amigos. Eu gostava, muito, de filosofia, Pedro, também, e, estava escrito, estávamos por todos os motivos destinados à esquerda. Mas para fugir da repressão, Pedro fugiu, emigrou... para os Estados Unidos. Sim, e nisto cometeu mais que um pecado, para todos nós naquele tempo. Era uma deserção em absoluto. Deixar o Brasil para se lançar nos braços do imperialismo norte-americano, isso nem comentávamos, de tão óbvio. 

O fato é que enquanto dávamos Pedro como um homem perdido, ele varria chão, pintava paredes, era motorista de táxi, empregado de uma joalheria, e terminou por se tornar sócio de um capitalista judeu. Achou pouco, foi mais fundo em sua deserção: Pedro casou com uma norte-americana, e com isso abocanhou um green card. Pedro ficou rico, dizíamos e dizíamo-nos, quando ele apenas ficou menos miserável que nós, e, pecado dos pecados, adquiriu cidadania norte-americana. Isto nós nem comentávamos. Sobre isto nós nem poderíamos pensar. Isto era como se nem existisse. Os amigos pulavam essa parte. Os inimigos nem conheciam semelhante traição. Pedro era e se tornou igual a um traidor. Ele era O Renegado.

Pedro, meu amigo, o renegado.... Agora sei, agora compreendo que não havia substância nenhuma nessa renegação. Como demoramos a compreender! Como é duro furar o concreto espesso de um preconceito. Por que emigraste para os Estados Unidos, amigo? Agora sei, agora compreendo que não querias bem a bandeira estrelada da águia imperialista. Querias apenas um lugar, porque aqui já não te queriam.

Qual o conteúdo moral da tua “deserção”? O conteúdo, se há, reside na tua volta, meu amigo, quando nos reencontramos no bairro de Água Fria. Ali um de nós faltou ao dever moral da sensibilidade. Explico. Estávamos conversando, eu, você e um outro amigo, que hoje vive em outra cidade nordestina. Por brincadeira, eu nada disse ao outro que eras um “norte-americano”, para que ele se estendesse cada vez mais no inglês que pensava falar com fluência. Really? pontuava o brazilian speaker. E você, “sim, de fato é assim”. E continuávamos a conversar, a brincar, a brigar à nossa maneira, naquele jogo contínuo de agressões camaradas, que ferem e pinçam e esgaravatam o peito com ar de piada, como se fossem mais uma joke.

Então a brincadeira, o jogo puro de insultos passou ao terreno dos enfermos de Aids. Que haveria a hipótese de eu ser um doente, porque na infância teria conhecido um norte-americano no cais do porto, e você, Pedro, bem me lembro, começou a sorrir com tristeza. Na hora eu não vi, porque penetrei fundo no mundo da ignorância e da agressão. Sabes, e sabemos todos, agressão e ignorância são contagiantes. Então, bem me lembro, exibi a minha carteira de doador de sangue, com o atestado negativo do exame de Aids. E eu provocava, para o satirista:
- Você já doou sangue? Você tem uma carteira como esta? Vamos, se tem, mostre.

Eu lembro que somente parei de brincar quando você, com os olhos de origem de sangue índio, me disse, ao ler aquele documento, aquele atestado que nada me fazia em nada dessemelhante ou superior a ti, ou a qualquer ser com ou sem Aids:
- Você é um homem feliz.

Lembro que aquilo me atingiu como um coice, como um chicote, como um golpe no estômago, como um chute e um pontapé nos colhões, nos ouvidos, na alma. Lembro. E mais me lembro que o outro continuou insano na “brincadeira”, no insulto, de que aquele atestado era falso, que aquilo era mais uma das minhas falsificações, enquanto a tua cabeça se abaixava, e pedias e engolias rápido um copo de álcool, que, disseste antes, não poderias beber porque estavas em regime. O sangue fugia da tua face.

Há dias, Reginaldo, um amigo comum, me contou que voltaste ao Brasil depois daquele encontro. Que deixaste os Estados Unidos para ver a tua terra, o teu bairro, a casa dos teus pais. Que há um ano estás morto. Para acabar aqui e assim com a perseguição.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

Um comentário:

  1. Muitos finais são infelizes. Este é um deles. Outros não têm final. Acabam pela metade e nem notícia da pessoa se tem.

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