quarta-feira, 16 de abril de 2014

Natural é passar por cima, pisar, esmagar

* Por Mara Narciso

Sou uma mulher de cor parda, 1m 59 cm, 50 kg, e 58 anos. Sou de estilo simples, vestindo-me de calça jeans e camiseta. Ninguém dá nada por mim, já me disseram na cara. Sou aquela pessoa opaca, que, pela minha aparência bem tratada, porém singela, costumo não ser notada nas repartições. O comum é o atendente falar indiferente comigo, ou com ar de desdém. Sou apagada, invisível, facilmente ignorada. Por muito pouco poderei receber um tiro no peito ao me aproximar de uma multidão, por curiosidade (coisa que não costumo fazer). Por quase nada poderia, na sequência, ser jogada no porta-malas de um carro e este, com a porta displicentemente largada aberta, arrastar-me por 350 m, deixando no asfalto minhas vísceras rasgadas, magras carnes esmigalhadas, que já não seriam de uma pessoa de aparência pobre, mas de um cadáver pobre.

Eu posso estar passando numa avenida, ao meio-dia, numa cidade de médio porte, na qual moro, chegando numa outra avenida mais movimentada. Vir dirigindo meu carrinho vermelho, com meu filho no banco do carona, levando uma feira e por isso mesmo, devagar. A esquina não tem sinal de trânsito. Duas avenidas se cruzam. É hora do rush. Vou levar a feira, almoçar e voltar ao trabalho, pois, preciso continuar. Tenho altíssimos e desvairados impostos a pagar, inclusive sobre a minha miserável aposentadoria. Uma senhora sai da sua garagem, com seu belo carro importado de 150 mil reais, único da cidade, fico logo sabendo, e colide sua frente com o meu, no meio da linha de rolagem, batendo do meio do meu carro para a traseira. Tive de enfrentar toda a sorte de pressão, arrogância e demonstração de poder. Minha resposta? Não sou ninguém. As minhas posses são a fraqueza dos meus braços. Mas, depois do jogo de cena, e do BO na presença do advogado da senhora que me abalroou, seu seguro total pagará pelo conserto do meu carro, que também tem seguro total. Recebi carro reserva para terceiro por sete dias, e na sequência aluguei um carro em contratos picados, devido à incerteza de quando o meu carro ficaria pronto, o que demorou 40 dias, com os devidos contratos feitos e atualizados, por preços nada módicos. Gastei quase 3 mil reais de aluguel. Fora o stress que não posso calcular em espécie.
Isso não foi tudo. Era o dia 18 de março quando recebo no trabalho, durante a execução de uma consulta médica, um telefonema de cinema. Sem nem ouvir um bom dia, escuto:
- Você tinha de entregar o carro no dia oito, e não entregou. Como explica isso? - gritava a funcionária de forma ameaçadora.
- Entreguei no prazo combinado e fiz um novo contrato. Estou com outro carro que vou entregar no dia 20. Já paguei adiantado os sete dias, e com mais sete avisei estar tudo certo. O novo contrato continua.
- Outro carro? Qual é a placa?
- Falei as letras e os números.
- Mas não é assim não – disse a moça de forma irônica e provocadora - Após sete dias tem de trazer o carro e comprar mais diárias. Você tem de vir aqui agora.
- Não posso. Meu cliente está olhando para minha cara agora.
- Não acha tempo para vir aqui? Manda seu filho (ela sabia que eu tinha um filho).
- Ele não dirige.
- Passa pelo menos o número do cartão de crédito, para eu fazer a cobrança.
- Eu não paguei com cartão de crédito. Paguei com cheque.
- Não, não é assim não!!! Nós não trabalhamos com cheque não!!! - disse debochada.
- Pois trabalharam. Eu paguei com cheque.
- Tem de vir à loja com o carro, pagar a semana para dar continuidade ao aluguel.
- Eu fiz o contrato com a funcionária Luana, e pelo combinado não é preciso levar o carro aí. Fiz um contrato, fiz um negócio, não foi ajeito não. Afinal, quem manda aí?
- Você tem até as 21 h para vir aqui ou as 23 h no aeroporto.
- Não irei aí hoje, em nenhuma hipótese, apenas no dia 20, conforme contratado.     

Mas na loja de celular foi pior. Comprei o celular mais caro, Motorola Fórmula 1, pois tinha bônus sobrando, embora nem quisesse aquilo. Fiz o negócio porque o velho analógico quebrou uma das teclas. A jóia da tecnologia recebeu, mas regurgitou a agenda nova, de mais de 500 números de telefone, por incompatibilidade de linguagens. Deduzi depois. Tive de fazer acampamento junto com meu filho na tal loja por uma interminável semana, inclusive fila no sol. Quando fui pela terceira vez, uma das atendentes, que me disseram, poderia resolver o caso, me recebeu com voz cortante, talvez pela minha idade e possível dificuldade em aprender seus ensinamentos. Com a minha insistência para resolver o problema e o meu pedido de calma a ela que falava alto, levantou-se e me deixou sozinha. Uma infâmia.

O maior espanto veio quando constatei que ela era a funcionária do mês – Keila, aquela que faz a diferença. Inacreditável. Recebe prêmios para maltratar o cliente que comprou um produto caro, que eles não sabem fazer funcionar. Tive de conviver horas por dia por vários dias com esses funcionários, até que uma delas, suprassumo da tecnologia tentou dar um basta à pendenga. Resolveu? Não. A agenda tornou a sumir. Quando eu me dispus a gastar o Carnaval, passando manualmente a agenda, esta ficou. Fui humilhada após fazer uma compra cara, e adquirir um plano de mais de R$200,00 por mês. Muito desgaste para enfrentar maus funcionários. As empresas? Uma acha e a outra não morreu.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   

4 comentários:

  1. Complementando: Em resumo, a grande questão nem é o racismo, muito menos as minhas lamúrias por falta de sorte. O cerne do tema é a maneira humilhante a que são submetidas as pessoas de aparência pobre, ou tímidas, ou de poucas palavras. O comportamento autoritário, de desprezo, é tão encontradiço, que pode ser analisado como um câncer social, uma envergonha da nação, tal qual a corrupção. Quem deveria se envergonhar mais deveriam ser os atores que espezinham pessoas de visual humilde, e que aparentemente não lhes podem trazer nenhum benefício. Uma calamidade.

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  2. Mara, seus dois relatos espelham a realidade e as humilhações de muita gente. Eu diria que de quase todo mundo nesse país... Um grande abraço!

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  3. Isso acontece com as que tem presença também!!!
    Abração!

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  4. Obrigada amigos pela atenção da leitura e a gentileza do comentário.

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