Anchieta, o santo do pau oco
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Que Nhanderu me perdoe, mas não consigo me alegrar com a canonização de
Anchieta decretada na quinta-feira pelo Papa Francisco. Enquanto a cerimônia
era celebrada lá no Vaticano, aqui no Brasil os sinos das igrejas bimbalhavam
festivamente, sem que as badaladas tocassem meu coração. Bem que me esforcei
para compartilhar o júbilo de meus compatriotas com "o terceiro santo do
Brasil". Inutilmente.
A incapacidade de participar da comunhão nacional gera um angustiante
sentimento de exclusão. Já havia acontecido comigo na morte de Tancredo Neves
espetacularizada pela mídia. O Brasil inteiro em prantos e eu, de olhos secos,
coração endurecido. Só chorei a morte de Ulisses Guimarães, o homem que
enfrentou os cães da polícia e que tinha nojo da ditadura.
Mas por que não festejar o novo santo? Porque creio que ele é do pau
oco. A expressão usada aqui como metáfora não pretende desrespeitar a fé de
ninguém. Acontece que para alguém ser santo, precisa comprovar pelo menos dois
milagres. Anchieta foi dispensado disso pelo 'poder de chave' do
Papa que usou o sensus fidelis, isto é, o sentimento dos fiéis,
entre os quais estão minhas nove irmãs. Porém, como a sabedoria popular já
comprovou que santo de casa não faz milagre, não é por isso que ele é do pau
oco. É por causa do contrabando, do que está por trás da canonização.
Santo do pau oco - nos ensina Câmara Cascudo em seu Dicionário do
Folclore Brasileiro - se refere às "imagens de santos, esculpidas
em madeira, que eram ocas e vinham de Portugal cheias de dinheiro falso".
Essas estátuas, de diversos tamanhos, serviam também para contrabandear ouro e
pedras preciosas. Sendo o poder da religião incomensurável, os fiscais não
tinham coragem de abrir o santo para checar a muamba que continha. Se é assim,
cabe perguntar: qual é o contrabando trazido de Roma com a canonização de
Anchieta?
Devagar com o andor
É preciso abrir a imagem do novo santo para verificar o que ela esconde
em seu interior. O diretor da Faculdade de Teologia da PUC/SP, padre Valeriano
Costa, deu uma pista, quando definiu que a canonização "é uma grande
oportunidade para a Igreja cultuar esse santo e se lembrar de alguns dos
valores que pregava" (O Globo, 04/04/14). O que se está canonizando com
Anchieta, portanto, é o trabalho missionário de catequização, conversão e
"civilização" dos povos indígenas.
É disso que se trata. Dentro da imagem do santo, estão os valores da
catequese empreendida pelos jesuítas sob os auspícios da Coroa de Portugal.
Segundo o historiador Gabriel Bittencourt, autor de um livro sobre Anchieta, ele
foi "um homem que soube lidar de forma diplomática com os índios, aprendeu
o tupi-guarani, escreveu a primeira gramática da língua e estudou as crenças
para montar peças teatrais que ajudassem os nativos a entender as lições de
catecismo".
Onde vais tão apressado, periquito tangedor? Devagar com o andor, que o
santo é de barro. Os meios usados por Anchieta nem sempre foram diplomáticos,
como comprovam as cartas que ele escreveu, algumas delas publicadas em agosto
de 1980 pelo Porantim, jornal do Conselho Indigenista Missionário
(CIMI) editado, na época, em Manaus. Numa delas, Anchieta trata os Tupinambá
como "inimigos carniceiros" e se rejubila por haver conseguido
jogar os índios uns contra os outros nos conflitos entre portugueses e
franceses:
"E foi coisa maravilhosa que se achavam e encontravam a flechadas
irmãos com irmãos, primos com primos, sobrinhos com tios e mais ainda dois
filhos que eram cristãos e estavam do nosso lado contra seu pai que estava
contra nós".
A representação dos índios no discurso de Anchieta pode ser avaliada nos
versos do poema épico "De gestis Mendi de Saa", escrito
em latim para elogiar o poder na pessoa do governador-geral Mem de Sá. Lá os
índios são "lobos vorazes, furiosos cães e cruéis leões que nutriam o
ávido ventre com carnes humanas". Estes índios "selvagens
e animalescos" abandonaram Deus e precisavam ser catequizados para
escaparem "das garras de Satanás".
O inquestionável trabalho de Anchieta no campo da linguística, longe de
servir para reconhecer as culturas indígenas, foi usado para destruí-las. A
gramática que ele fez da língua geral se tornou ferramenta eficaz para veicular
valores que negavam e satanizavam as religiões locais, o pensamento, a
cosmovisão e os saberes indígenas.
Suas peças de teatro, de caráter pedagógico, encenadas pelos índios
catequizados, classificaram como "demônios" os personagens da
mitologia tupi, condenando o fumo, a medicina indígena, as malocas coletivas, o
cauim e os rituais.
O santo é de barro
Se a canonização de Anchieta serve para fazer a apologia da catequese,
então estamos mesmo diante de contrabando. O catolicismo guerreiro, arrogante,
só admitia um caminho para Deus: o de Roma. As religiões indígenas foram
desprezadas, perseguidas, extirpadas a ferro e fogo.
Outro jesuíta, o padre Antônio Vieira, defendeu a catequese como única
via para transformar o "índio bárbaro", considerado tábula rasa,
folha de papel em branco. O missionário era o escultor que daria feições
humanas aos índios:
- É uma pedra, como dizeis, o índio rude? Pois trabalhai e continuai com
ele. Aplicai o cinzel um dia e outro dia; dai uma martelada e outra martelada e
vereis como dessa pedra tosca e informe fazeis não só um homem senão um cristão
e pode ser um santo -
escreveu Vieira.
Apesar da quantidade massiva de mártires indígenas, não se tem notícias
de nenhum deles declarado santo, oficialmente reconhecido pela Igreja, mas o
barulho de algumas "marteladas" chegaram até os dias de hoje, com
notícias sobre as violências cometidas contra os índios, cujas religiões eram
consideradas como "superstições", perseguidas pela intolerância.
O resultado da catequese foi avaliado por outro jesuíta brilhante, João
Daniel, que viveu 16 anos na Amazônia (1741 a 1757) e relatou suas andanças. Os
castigos corporais sistemáticos e o batismo não criaram cristãos que Anchieta e
Vieira queriam: "a religião ficou pouco intrinsicada no coração dos
índios", com uma "fé morta no uso das cousas sagradas e na
pouca reverência aos sacramentos". Segundo João Daniel, os índios
gostavam muito "de medalhas, de verônicas, de escapulários, mas não era
por respeito e devoção" e sim para "com eles enfeitar
seus macacos e cachorrinhos, atando-lhes ao pescoço".
A muamba que vem escondida dentro do novo santo é essa: um contrabando
ideológico, que faz a apologia da prática missionária de Anchieta, sem o menor
senso crítico, quando o próprio CIMI, em sua 3ª Assembleia Geral realizada em
Goiânia, em julho de 1979, produziu um documento final, assinado também pelos
luteranos ali presentes, que diz tudo no seu primeiro parágrafo:
"Reconhecendo os erros que cometemos como Igreja na nossa atuação
missionária junto aos povos indígenas, pedimos perdão a eles e a Deus". O CIMI se compromete a mudar sua prática e a
respeitar as religiões indígenas "que inclui assumir
necessariamente os mitos e a vida religiosa através dos quais cada povo
recebe a Revelação de Deus".
Anchieta é um dos responsáveis por esses erros. Foi um fiel servidor do
sistema colonial, ao contrário de Bartolomé De Las Casas, o dominicano espanhol
que na mesma época ousou romper com o sistema. Anchieta pode até ser santo,
desde que venha sem esse contrabando. E mesmo assim jamais será santo para os
índios. Canonizá-lo para reforçar essas práticas é um retrocesso, uma
reafirmação daquilo que o sociólogo Anibal Quijano chama de colonialidade, que
é mais profunda e duradoura do que o colonialismo. Esse santo quer reza. De
mim, não terá nenhuma.
Jornalista
e historiador
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