Sobre vira-latas
* Por
Urda Alice Klueger
(Escrito em 1997,
durante o governo de Fernando Henrique Cardoso))
O cachorrinho da filha
da minha amiga Ângela morreu, e a menina está sofrendo um monte. Ângela estava
me contando a história dos cachorrinhos da filha: já tivera bem uma meia dúzia
de finos filhotes de raça, e todos morreram de coisas bobas, como gastrite ou
reação a vacinas. O drama começou anos atrás, quando Ângela morava lá longe, em
Rondônia, e sua filha ganhou o primeiro filhote de raça. Depois do sofrimento
de perder uns três bichinhos de estimação, uma pessoa lá de Rondônia disse para
Ângela:
– Por que vocês não
arranjam um vira-lata?
Arranjaram, e foram
felizes com ele. Perguntei a Ângela:
– E de que morreu o vira-lata?
– O vira-lata não
morreu. Ficou lá em Rondônia, quando nos mudamos. Está lá, lépido e feliz.
Aconselhei Ângela a
arranjar outro vira-lata, que não vai morrer de coisas bobas e que será
companheiro da sua filha até morrer de velho. E, ao lembrar dessa resistente
raça de cachorros que se cria em qualquer canto, que parece brotar sozinha do
chão, acabei refletindo um monte.
Assim como os
vira-latas, o nosso povo brasileiro é fortissimamente resistente às
adversidades. Geneticamente, as duas raças têm origens semelhantes: resultam do
cruzamento de todas as possíveis raças existentes neste mundo. Se olharmos para
os cachorros vira-latas, veremos que eles tomam todas as formas, todos os
feitios, apesar de continuarem tendo as características básicas de quatro
patas, um focinho, dois olhos e um rabo. Nosso povo brasileiro também tem todas
as formas, feitios e cores – viajando-se pelo mundo, jamais se sabe quando se
encontra um brasileiro – um brasileiro pode ter qualquer cara, qualquer cor, qualquer tamanho.
Andréia, a moça que me
vendeu as passagens para a mais recente viagem que fiz, estava me contando o
valor dos passaportes brasileiros roubados: passaporte brasileiro tem altíssimo
valor entre os ladrões, entre os que querem viajar incógnitos. Num passaporte
brasileiro pode-se colocar qualquer fotografia combinando com qualquer nome.
Numa fronteira, jamais se saberá se o nome de ‘João da Silva’ ou ‘Ingo
Pfuetzenreiter’ deverá ter uma cara de preto, branco, japonês ou qualquer
outra. Somos internacionalmente conhecidos como um povo vira-latas, e temos a
resistência desses bichinhos que se formaram a partir de todas as heranças
genéticas possíveis. Vejamos.
Qual outro povo, como o
nosso, agüentaria o tranco de passar por todos os Planos Econômicos que passamos
nos últimos vinte anos, e sair deles sem problema, curtindo a alegria do
Carnaval e da vida como se nunca tivesse sofrido uma adversidade? Qual outro
povo, como o nosso, conseguiria fazer piada de tudo, das boas e más coisas, e
ser alegre mesmo nas piores horas? Somos um povo intrinsecamente para cima, um
povo que conta piadas em velórios e ri porque está sem dinheiro; temos uma
alegria única no mundo, e sobrevivemos às piores crises com um jogo de cintura
invejável. Há que se ser um povo vira-latas para sobrevivermos a todas as
adversidades que este País nos fornece – tento imaginar o brasileiro como um
povo de pedigree, morrendo de reações a vacinas e outras coisas bobas – já
teríamos sido extintos fazia tempo. Graças a Deus temos a resistência dos vira-latas,
temos aquilo que os antigos diziam ser “couro duro”, estamos sempre prontos a
enfrentar mais alguma loucura dos nossos governos e sobreviver, e rir e fazer piadas sobre a
ultima crise.
Graças a Deus, esta
nossa raça brasileira é muito e muito vira-latas. Este caldeirão de etnias que
se formou no Brasil foi a melhor coisa que aconteceu ao nosso País; resultou
nessa gente linda, inteligente, resistente, criativa que nós temos; tornou-nos
um povo único sob o sol. Eu tenho o maior orgulho de ser uma brasileira
vira-latas (tenho seis etnias misturadas). Vejo uma porção de gente, ao meu
redor, tentando conseguir passaportes alemães e italianos, usando as
prerrogativas de serem descendentes de tais povos, e fico abismada: para que
querer um passaporte estrangeiro, se temos a ventura de sermos brasileiros?
Jamais iria atrás de um passaporte desses; orgulho-me do meu passaporte
brasileiro, passaporte de vira-latas, graças a Deus!
É maravilhoso
pertencer-se a um povo como nosso!
Blumenau, 11 de
fevereiro de 1997.
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR
E hoje, mais do que nunca estamos precisando dessa resistência a adversidades, depois daqueles horrorosos 1x7.
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