quarta-feira, 30 de julho de 2014

O sol que nos recobre

* Por Mara Narciso

Os humanos do século XXI estão se tornando inválidos. Têm as juntas emperradas, a musculatura fraca, as forças adormecidas e uma dominante preguiça de se mover. As crianças de hoje, ainda que maiores e mais pesadas, caso fossem colocadas num cabo de guerra, dez de cada lado, contra as crianças que foram os seus avós, perderiam feio. Seriam jogadas ao chão. Estes mesmos avós podem ter sido mais desnutridos, tido mais vermes, porém, andavam e corriam. A regra hoje é ficar sentado comendo, apertando botões ou tocando em telas. Ninguém dá mais que dois passos, não lava uma roupa, nem abre portão ou vidro de carro, nem anda para atender telefone, nem para mudar o canal de televisão. Daí a fraqueza reinante e a necessidade de ir à academia.

Quando surge um convite para caminhar, seja na praia, seja nos campos e montanhas, o natural é a pessoa recusar, se dizendo essencialmente urbana e motorizada. Desconhecem a expressão “fazer ginástica”. Falam “malhar”. Dentro de casa, sob luz artificial, gastando uma energia elétrica que não está sobrando, jovens desenvolvem doenças de velhos como obesidade, diabetes, hipertensão arterial, e índices baixos de vitamina D, indispensável para a calcificação óssea. Sugere-se exercitar e tomar contato com o sol. Dez minutos ao meio dia são suficientes para melhorar o teor desse hormônio. Mas quem quer largar o sofá? Estamos impregnados de medo de câncer de pele e de caminhar.

Um fim de semana na roça faz diferença. Que tal deixar a parafernália eletrônica e fazer uma “expedição” caminhos afora para conhecer o outro lado da vida? Não vale dizer que não quer sujar os pés. Sob a proteção de chapéus, a caminhada em busca de ar livre cai bem. Pode-se fazer um pacote completo, aproveitando-se um período de festas, reunindo-se com amigos e a família, visitando pontos curiosos da zona rural.

Tendo como referência o Sítio Vale das Nascentes, do meu tio Petronilho Narciso, em Santa Rosa de Lima, saímos em excursão atrás de uma pequena cachoeira na serra. Éramos oito pessoas, que seguíamos numa trilha, morro acima, enquanto tirávamos fotos e nos sensibilizávamos com a seca que castiga o norte de Minas há anos. Nas baixas há água perene, enfeitando a mata seca com seu verde improvável, salpicado daqui e dali. A vereda tinha, como lhe é habitual, vários coqueiros de coco macaúba, e pasmem, encontramos um deles, que fora abatido para arrancarem um cacho de cocos.

Protegidos por altas perneiras, para evitar picada de cobra jararaca, fomos até a pequena queda d’água, da qual corria o precioso líquido numa quantidade superior a expectativa, considerando-se a sequidão reinante. Abaixo dela, um laguinho de águas azuladas e gélidas. É natural ter vontade de mergulhar na água, coisa que só os muito corajosos conseguem. Meu tio Petronilho fez isso. Os demais trataram de posar para as fotos.

No dia seguinte, outra expedição, mais longa e de caminho mais acidentado. Nesta, apenas quatro pessoas foram à gruta, na mesma serra. Esta atração, mais difícil de ser atingida, deu mais prazer alcançar. Transpusemos a vereda, os pastos, um pequeno bosque com riacho, e após uma subida íngreme, chegamos. Tinha uma entrada medianamente ampla, de terreno acidentado, com buracos traiçoeiros. Após estar dentro dela, via-se que tinha um grande salão, de teto alto, e um córrego que entrava por uma porta aberta na pedra, ao fundo. O chão era todo de areia escura e grossa. Não havia lixo, porque meu tio fora antes e o coletou. Tínhamos duas fontes de luz: uma lanterna e um lampião. Ainda assim, foram insuficientes para tirar boas fotos. Uma larga e linda estalactite, em formato de cogumelo atômico invertido, do lado esquerdo do teto da entrada trazia em seu bojo um letreiro de propaganda azul escuro, que naturalmente nos incomodou. Do outro lado, podiam-se ver outras pichações. Rastro de imbecis. Falei que o lugar, distante uma hora de Montes Claros, está na zona de terremoto, e sentir um deles lá dentro, além de perigoso, seria muitas vezes mais barulhento.

O esforço culminou com o prazer da aventura concretizada e do sol na pele. Senti-me bem por voltar às origens, escalar, sujar os pés, suar, sentir calor, sentir frio, e conviver com tios e primos por três dias numa mesma casa. Um passeio para guardar e para contar. Por isso eu contei.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


2 comentários:

  1. Fez muito bem em contar. Muitos, infelizmente, guardam para si e não contam suas aventuras, que nos revigoram física, mental e espiritualmente. O sedentarismo e o individualismo hoje caracterizam muitas pessoas por sua mórbida inércia.

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  2. Nota dez para as suas considerações, Edir. Muito obrigada!

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