sábado, 19 de julho de 2014

Sujeito Zero (5)


* Por Sérgio Vilas Boas


O MOTOR DO TEMPO empuxou o pai de Alma para um passado relativamente distante: 1980. Seu Edmundo bate a mão ossuda no portão da vizinha Beatriz, constrangido como sempre mas desavisado disso. Ouve o resmungo da pequena, delicada e molenga Bruna.

Ele invejava as ampliações das casas do Conjunto Habitacional. A de Beatriz, por exemplo, estava em obras e logo teria alpendre, esquadrias de madeira nas janelas, telhado colonial e uma cozinha quase do tamanho da casa de fundos em que Seu Edmundo então já morava, no mesmo quarteirão da Rua C.

Bruna abria o portão e ficava roçando as unhas na tinta de fundo do zinco. Os poucos fios de cabelo de Seu Edmundo sofriam um vendaval de gastura que lhe arrepiava o âmago. Ela olhava sem piscar. Oi, princesinha, era como ele se dirigia a Bruna, que, por sua vez, movendo a pérola caramelada dos olhos, desfechava aquele lamento bovino.
- Maaaaaaaãe!

Esse modo de chamar, alheio, desinvestido, irritava Beatriz, que logo surgia enxugando as mãos num avental feito com duas pernas de calça jeans desbotada, e diminuindo as expectativas miúdas de Seu Edmundo com uma resposta antecipada e por isso indesejável:
- Ninguém ligou pro senhor.
Ele se decepciona mas disfarça. Finge um pigarro.
- O senhor anda tossindo demais.
- Pois é, acho que vou morrer tossindo e sem telefone.
- Que absurdo, dizer uma coisa dessas.
Beatriz modifica as generalidades do diálogo com um salto triplo.
- Estranho. Pelo menos duas vezes por semana o senhor bate aqui pra perguntar se alguém te ligou...

Moradora recente do Jardim Nova York, na época Beatriz acreditava, não sem certa razão, que Seu Edmundo não devia ter mulher nem família que dependessem dele; ninguém cuja vida pudesse ser alterada por sua presença ou ausência. Recluso e cheio de manias, pensava Beatriz, ele também não devia ter amigos íntimos, embora fosse respeitado pela vizinhança da Rua C.

- Nunca recebemos aqui uma única ligação que fosse pro senhor. Seu Edmundo, posso saber de quem o senhor tanto espera um telefonema?

Evidente que um dia ela ia perguntar isso, e é evidente que ele ficaria tão vermelho quanto alguma coisa vermelha. Jamais diria a Beatriz que esperava, entre outras coisas, um sinal reconciliador de Inês.

Uma das especialidades de Seu Edmundo era exatamente escapar ao detalhe fundamental. Naquele momento, se pudesse, ele teria cavado um buraco no chão e se escondido aos pés de Beatriz. O que fez, no entanto, foi esconder-se atrás do próprio corpo esquálido.

Despediram-se, ele talvez pensando, em voz baixa, que “em breve até o mais comum dos indivíduos irá achar que não precisa de ninguém, e eu também terei de agir assim”. O desentendido Seu Edmundo costumava enquadrar tudo em seu lado pessoal.

Achava-se injustiçado, preterido pela companhia telefônica estatal da época. De fato, não havia oferta suficiente e era preciso esperar vários anos por uma linha, mesmo pagando caro pela absurda situação; e é fato também que a pequena oferta de linhas era majoritariamente disputada pelos moradores de bairros centrais, os que em geral já possuíam telefone(s).

Como era excessivamente pacato, despertava intrigas. Houve quem o considerasse pão-duro e mesquinho, por exemplo. Pessoas alvoroçadas, que se incomodam com a lentidão dos outros, não se aproximavam dele e vice-versa. Não compreendiam o fato de que Seu Edmundo era movido a silêncios ou de que sua existência não podia ser amparada pelo guarda-chuva da psicologia.

Ele devia descer a Rua C recuando, fazendo curvaturas. O modo como caminhava sugeria um estranho equilíbrio. Balançava sobre os calcanhares como se fosse partir em disparada rumo ao desconhecido. Depois retomava o curso, caprichando seu intrigante ziguezague.

Àquela hora da manhã Vicente estava de pé sobre a varanda fora de prumo de sua casa, construída por ele mesmo, fumando Continental (Seu Edmundo também fumou Continental a maior parte da vida; depois trocou-o por Derby) e ouvindo, no rádio AM de pilhas, noticiários e programas de esportes; e comerciais como os das pílulas de Lussen, Biotônico Fontoura e palmilhas ortopédicas do Dr. Scholl.

À hora que Seu Edmundo passava diante da casa de Vicente, estava no ar um comercial com a seguinte melodia melosa: Se a criança acordou/ dorme, dorme, menina/ tudo calmo ficou/ mamãe tem/ Auris-Sedina [para dor de ouvido].
- Ôpa! (Assim Seu Edmundo cumprimentava as pessoas.)
- Com pé direito e fé em Deus, Dmundo. (Vicente completava.)

Seu Edmundo prestava continência em seguida. O apego às rotinas o incapacitava de notar as próprias repetições. Vivia cismado que tudo o que é ruim ou desagradável pode repetir-se.

Certa vez ele saiu do Mineirão cinco minutos antes do “clássico” acabar porque o tráfego ia ficar insuportável. Isto significava que já havia acontecido de ficar insuportável em uma ocasião. Resultado: perdera o quinto gol (o de desempate) de uma vitória histórica de seu time sobre o rival. O problema eram as multidões. Ficava aflito, sufocado, procurava a saída. Por isso, se algum vizinho da Rua C não oferecesse carona, ele não ia ao jogo. Talvez porque não suportava ir sozinho, ou porque de ônibus era perigoso...

Uma vez feriram no ônibus seu colega de banco com um pedaço pontiagudo de gargalo numa briga de torcidas. Alma pensava em dizer a ele que futebol é uma calamidade. Mas ele gostava. Era a única coisa que o excitava mais a fundo. Com o tempo, e por causa dos vexames do Atlético, seu time, ele nunca mais saiu de casa para ir ao Mineirão.

Na cabeça de Seu Edmundo funcionava mais ou menos assim: havia 101% de chance de o episódio da briga com o gargalo acontecer novamente. Então, ou conseguia carona com um conhecido ou acompanhava o jogo, solitário e absorto, pelo radinho de pilhas. No fundo, ele devia achar ótimo não ter quem lhe desse carona, pois não podia sobreviver sem falsas justificativas. Ah, bem, não consegui carona, que pena. Vou ter de ouvir pelo rádio. Os pensamentos dele deviam ser muito, muito práticos.

Se o vento sopra a noroeste ou a centro-leste, ele não fazia idéia, não havia como observar. Pitava o Continental e soltava fumaça em cones, em direções precisas. Se um dia resolvesse fumar dentro do ônibus, mesmo com o braço para fora da janela, e alguém olhasse torto, seria a morte. Apagaria o cigarro, puxaria a corda da campainha e desceria na próxima parada com algum discurso vingativo e infantil fervilhando a cabeça.

Para outras coisas, era o rei da disciplina. Incapaz de se permitir não ir trabalhar, por exemplo, forjar alguma doença e simplesmente ficar em casa, onde poderia apanhar a lata de suspiros que escondia (de si mesmo) debaixo da cama, ligar a tevê e devorar os suspiros, um a um, ininterruptamente


Em algum dia útil do mesmo ano um veículo público obsoleto expeliu uma fumaceira negra venenosa. Alheio a isso, Seu Edmundo se sentou do lado esquerdo do ônibus, onde o sol batia pela manhã. E perto da porta. Jamais ficava longe de portas e janelas. Achava que num dado momento podia ser obrigado a rapidamente atravessá-las - a contragosto ou por livre e espontânea vontade. Além do mais, não se entra em um lugar sem a certeza de como sair, dizia.

Por falta de vibração andava tristonho e cabisbaixo naquela época, atrasado em suas necessidades masculinas, com um largo fuso horário entre emoções e atitudes, homem e instintos. Nem por isso deixava de pensar no futuro a seu modo, sem grandes expectativas exceto aposentar-se, comprar um telefone, claro, e jogar truque e damas a qualquer hora do dia com algum vizinho. Seus problemas eram pequenos, e talvez por isso ele evitou esmiuçá-los.

Estava a caminho de encontrar Inês pela primeira vez depois da diluição da família. Em presença dela, Seu Edmundo desanuviava, sem se dar conta de que a esposa nunca o amou. Mas combinaram de se encontrar à noite, após o trabalho, na estação de trem, por conveniência. Buscavam uma forma de recompor fisicamente o lar já que as meninas estavam sofrendo.

No caminho de volta para a família, Seu Edmundo entrou em um desses botequins que servem pizza a palito e cobram couvert por um meio-cantor ao violão. Queria comprar cigarros. Inês entrou com ele.
- Uma flor, senhor. (Uma garotinha de olhos doces e voz macia os interrompeu.)
- Obrigado. (Ele diz.)
- Faço bom preço.
- Hoje não.
- Ah, compra. Só pra me ajudar!

A menina devia ter uns cinco anos. Frágil, fatigada, nariz escorrido. No bar, ninguém a notava. As pessoas bebiam, comiam, fumavam, apertadas umas às outras, preocupadas com os próprios umbigos.
- Uma flor tão bonita...
E fungou, assoou o nariz com o lado de fora da mão. O sujeito ao violão cantava Apesar de você, tentando imitar Chico Buarque.

Seu Edmundo disse à menina que sua acompanhante não gosta de flores. Uma mentira deslavada. Teria sido mais original se dissesse apenas não. Sua dificuldade não era apenas ouvir não, mas também dizer não.

Pretendeu se livrar logo da menina com sua coriza impertinente, que ameaçava alcançar o lábio superior. Além de tudo, suja e descabelada, à espera de carinho, escola, amigos, brinquedos e (se possível) do primeiro tratamento dentário. Mas, caramba, ela vendia botões de rosa tarde da noite! Vinte anos atrás crianças já eram forçadas a trabalhar para sobreviver e pouco ou nada mudou.
- Flor não é pra não gostar. (Exclamou a catarrenta.)

Dissuadir Seu Edmundo era difícil. Mas crianças o enterneciam tanto quanto plantas. Ele olhou a rosa e concordou com um riso contrafeito. Quem seria capaz de dizer “odeio flores e me orgulho disso”? Nem os alérgicos a pólen ostentam tamanha coragem. Apreciar flores faz parte da humanidade, como o ódio e o desejo de justiça.

O próprio Seu Edmundo não apenas adora rosas como é capaz de dialogar com elas. Mas os perfumes é que o aspiravam. Pareciam magnetizar aquela porção poética que todo ser humano tem dentro de si, e talvez por isso ele não abrisse mão de plantar, cuidar e enxertar roseiras. Até na casa de fundos da Rua C ele teve um naco de terra pra isso.

No bar, porém, a situação era diferente. Precisava desabrochar, o que lhe era árduo. Enquanto todos no botequim imergiam em bruma de cigarro à média luz, ele apertava uma nota de cinco na palma da mão da criança. A rosa, ele não pretendia levar, queria apenas contribuir.
Mas a garotinha  tampouco poderia levar a rosa de volta.
- Por que não?
- Porque minha mãe me chama de preguiçosa e me bate, pensa que eu não quis vender.

Seu Edmundo estava fadado a levar para casa um botão de rosa mesmo tendo tantos ao alcance de suas mãos à porta de seu lar. Estendeu o botão na direção de Inês – relutante, desajeitado, sem cerimônias. Inês se sentiu tocada assim mesmo. Por que não se sentiria?

Mas um garçom afoito deu um esbarrão no braço de Seu Edmundo e o botão voou pelos ares, caiu aos pés de uma mulher gorda que se levantava para ir ao toalete. A mulher inadvertida esmagou a rosa com seu enorme tamanco de madeira. A poesia virou um folículo carmesim perdido na superlotação do bar. A barulheira geral de música e falatório abafou as desculpas do garçom. Inês lamentou. Para si mesma, deve ter dito ele não dá uma dentro.

A menina observou tudo com resignação, como um cão que repara o frango assando no forno giratório da padaria. E se mandou, desiludida com as caras vermelhas, lastimosas do complicado casal. Seu Edmundo comprou dois maços de Continental e puxou Inês pelo braço, a fim de sumir logo dali. Se o negócio era subtrair-se, ele não vacilava.


* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis” (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.

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