segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Cenário de estanho

* Por Daniel Santos

De uns tempos pra cá, as ruas, muitas delas, perderam seu espírito encantador, porque ... Inúmeras são as causas, desde a violência urbana até o individualismo e a competitividade que tornam as criaturas demais azedas e, portanto, imprestáveis para o prazeroso convívio com os seus.

Guardo, por isso, muitas saudades da época em que jogava bola numa rua quase que só de pedestres, onde podíamos sentar ao meio-fio para conversar, enquanto pacíficos vira-latas abanavam os rabos à nossa volta e as janelas apinhavam-se de moças com lenços de seda na cabeça.

Éramos uma só família, ou assim parecia. Além do mais, um sem-número de artífices vinham nos oferecer seus serviços: a velhinha das laranjas, o amolador de facas, o vendedor de pirulitos, o leiteiro... Mas desapareceram sem deixar pistas, embora vivam ainda na minha memória.

Deles, destaco um certo faz-tudo que nos acudia, prestimoso e mais hábil que um ilusionista, fosse para descobrir em que ponto da parede começavam as infiltrações, fosse para reparar o salto de um sapato de mulher. Todo simpatias, pouco nos cobrava por seus impagáveis serviços.

Devo a ele, exatamente, o cenário do meu primeiro romance, ainda nos verdes anos, quando toquei a mão da filha da vizinha, mas a lua, minguante, não favorecia meus impulsos de potro. E tudo terminaria por aí, se o faz-tudo não surpreendesse uma vez mais e... consertasse a lua!

Isso mesmo. Enquanto eu e a moça confundíamos nossas mãos na incontida véspera do desejo, ele subiu ao telhado com retalhos de estanho e sua caixa de ferramentas. Matreiro como um caçador, aguardou que a lua passasse bem perto e, tão logo pôde, iniciou os reparos na minguante.

Foram marretadas de ensurdecer o quarteirão, mais os parafusos e roscas que se perderam tilintando pelas telhas. Juntou gente pra ver. E viram no que não podiam crer: a lua resumida ganhou adendos, retalhos suplementares e, ainda maior que o espanto de todos, ela surgiu plena!

O cenário proclamava o entusiasmo e dei, afinal, meu primeiro beijo. A moça e eu nos inflamos de suspiros e gorjeios. Para sempre.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

Um comentário:

  1. Grande amigo, um mágico para todo serviço. E não cobrava. Para tornar a lua minguante em cheia, só mesmo um faz-tudo para operar o milagre. Mas os meninos, na aurora do desejo podem tudo, até mudar a fase da lua.
    Destaco:Sobre os outros serviços:
    "Mas desapareceram sem deixar pistas, embora vivam ainda na minha memória." Bom lembrar nas suas palavras.

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