domingo, 29 de abril de 2012

Risível por natureza

* Por Lêda Selma



De novo, ela, a morena nortista e suas excentricidades vocabulares. Antes, por pura simploriedade. Hoje, pelo desejo incontido de mostrar-se “sabida” e a par das coisas, afinal, voltou à escola e, então, viu o mundo, até há pouco, estranhamente grande e quase inacessível, de repente, caber em sua cabeça e em seu quarto. A vontade de aprender, de exibir aprendizado e conhecimentos tornou-se um jogo diário. O interesse por quase tudo propiciou-lhe novas expectativas desembocadas em algumas descobertas. E assim, ela, “moça solteira” (mas desejosa de ser elevada à categoria de senhora), toda autoconfiante e sempre com a espontaneidade a lhe ditar posturas e palavras, incorporou a seu já folclórico vocabulário outros tesouros de raríssima originalidade. E, vaidosa, faz questão de exibir-se para mim, esnobando seus conhecimentos: “Pensa que não sei o que é parafro (parágrafo)? Sei sim. E sei também que é errado falar vi ela. O certo é falar a vi. Istordia mesmo, eu a vi o porteiro do prédio lá no camelógrafo”.



Mal cheguei do Araguaia, e ela, toda informativa: “Morreu um colego seu, um tal de Jorge Amado. E é colego de cabo a rabo: escritor, baiano, diabrético e imortal. Como priguntar num dá incômodo, imortal é quem não morre? Inda bem que nunca aquerditei nisso!”.



Há pouco, flagrei (sem querer, mas adorei!) uma conversa entre ela e uma colega de curso e de ofício doméstico:



– É verdade que sua patroa é culta?

– Assim, tipo escritora?

– É.

– Ah! então, é!

– Deve de falar chique que só...

– Hum, até passada da conta, cruz credo, disconjuro! Ela vai pegar o óculo e fala “meus óculos”. Aí, boto reparo, corrijo, e ela diz que do seu jeito é que é certo. Vê se pode: tá usando um só e quer dar parecença de dois. Então, pruquê já num fala também meus sutiãs? Óia, gente, isso nem é cultura é inzibideis!

– Se é...! Patroa simples já gosta de botar banca, imagina, então, patroa quiném a sua...

– Ela é um pouco esquisita, sim. E só sendo mesmo pra inventar tantos causos e ponhar no jornal e nos livros. Já vi dizer que esse povo artista é tudo destrambelhado, vive doidejando; e eu acho que é verdade. Inventar tanta história desacontecida e tanta pessoa de mentira, mas óia...

– E ela deve falar e escrever cada palavra, dessas que ninguém entende, né?

– É cada uma de fervecer a miolada. Cê conhece uma tal de glicose e uma outra tal de insulina? Acho que é coisa do sangue, sabe?...

– Chiiiii! Até o sangue é diferente?

– É. Óia, siá, e me causa até sufocação ver ela tirar o sangue da cabeça do dedo, quase todo dia, pra botar no apareio e depois dizer: “Minha glicose tá alta” ou, então, “minha glicose tá boa”. Acho que quando tá alta é pruquê o sangue raleou, sei muito bem não.

– E num podia dizer só sangue em vez dessa palavrada toda? Pelo visto, até o sangue de escritor tem nome chique, né? Mas de que adianta se é raleado? E a tal da insu... insu o quê? É sangue também?

– Insulina. Acho que é. Num diz que temos uns tais de glóbus vermeio e branco? Pois é, acho que a insulina é o tal do branco. E mal ela acorda (e antes de dormir também), espeta a barriga e mete insulina na dita. Deve de ser pra devolver o sangue tirado ou então pra engrossar o esfraquecido, sei muito bem não.

– Coitada! Ser escritora é fogo, hem?! Além da pessoa ficar destrambelhada, ainda tem sangue raleado... Que esquisito!

– Esquisito mesmo. E o pior: nem pode comer doce ou chocolate! Diz que é pra num entrar em coma (acho que coma é um jeito que a morte tem de chegar de fininho, assim, de viés, antes da hora, e pregar surpresa no escolhido). Só que – ai, ai! –, ela come escondido.

– É... escritor sofre, mas, pelo menos, é inteligente.

– Ela não é muito, não! Já deu rata a torto e a direito, pra lá de demais. Istordia mesmo, falei que meu primo doente tava com propocação e ela nem sabia o que era isso. Então, tive de desmiudar a explicação e falar soletrado e bem visível: pro-po-ca-ção. Ele tá com o corpo todo pro-po-ca-do. Foi aí que ela entendeu.



• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.

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