sábado, 28 de abril de 2012

A janela aberta


* Por Hector Hugh Munro (Saki)


Tradução do texto original com o título The Open Window de Luís Varela Pinto


Um dólar e oitenta e sete cêntimos. Era tudo. E desses cêntimos, sessenta eram em moedas de um penny. Moedas poupadas uma a uma, massacrando o merceeiro, o homem dos legumes e o do talho até corar da silenciosa acusação de avareza que uma tal transacção tão rigorosa implicava. Della contou o dinheiro três vezes. Um dólar e oitenta e sete cêntimos. E no dia seguinte era o Natal.

Não havia realmente nada a fazer senão atirar-se para cima do pequeno sofá coçado e chorar. E foi o que Della fez. O que leva à reflexão moral de que a vida é feita de soluços, de fungadelas e de sorrisos, com a predominância das fungadelas.

Enquanto a dona da casa vai passando gradualmente da primeira para a segunda fase, vamos dar uma vista de olhos à casa. Um apartamento mobilado de 8 dólares por semana. Não era propriamente indescritível, mas certamente o seu aspecto logo chamaria a atenção de qualquer associação caritativa.

Em baixo, à entrada, havia uma caixa do correio onde jamais carta alguma entraria, e um botão eléctrico no qual dedo de mortal jamais tocaria. Também aí havia um cartão com o nome “Mr. James Dillingham Young.”

O “Dillingham” tinha sido exposto às intempéries durante um anterior período de prosperidade, quando o seu titular estava a ser pago a 30 dólares por semana. Agora que o seu rendimento tinha encolhido para os 20 dólares, as letras de “Dillingham” pareciam desbotadas, como se estivessem a pensar seriamente reduzir-se a um modesto D sem pretensões. Mas sempre que Mr. Dillingham chegava a casa e subia ao seu apartamento, passava a chamar-se “Jim” e era efusivamente abraçado por Mrs. James Dillingham Young, que já vos foi apresentada como Della. O que está muito bem.

Della parou de chorar e recompôs a cara com um pouco de pó. Ficou junto da janela a olhar com ar triste para fora para um gato cinzento a caminhar sobre uma vedação cinzenta de um pátio cinzento. O dia seguinte seria Dia de Natal e ela só tinha um dólar e oitenta e sete cêntimos para comprar um presente para Jim. Andara a poupar cada tostão durante meses e o resultado era este. Com vinte dólares por semana não se podia ir muito longe. As despesas tinham sido superiores aos seus cálculos. É sempre assim. Só um dólar e oitenta e sete para um presente para Jim. O seu Jim. Muitas horas tinha ela passado a planear qualquer coisa bonita para ele! Qualquer coisa bela e rara e genuína — qualquer coisa que ao menos merecesse um nadinha a honra de lhe pertencer a ele.

Havia um espelho entre as janelas da sala. Talvez o leitor já tenha visto estes espelhos num apartamento de oito dólares. Uma pessoa muito magra e ágil, ao observar o seu reflexo numa rápida sequência das tiras longitudinais, pode obter uma imagem bastante exacta do seu aspecto. Della, esbelta como era, tinha dominado esta arte.

De repente afastou-se da janela com um rodopio e ficou em frente do espelho. Os olhos brilhavam-lhe com intensidade, mas a cara perdera a cor em vinte segundos. Puxou rapidamente o cabelo para baixo e deixou-o cair em toda a sua extensão.

Ora, havia dois bens dos James Dillingham Young de que ambos se orgulhavam muitíssimo. Um era o relógio de ouro de Jim que já tinha sido do pai e do avô. O outro era o cabelo de Della. Se a Rainha de Sabá vivesse no apartamento do outro lado do saguão, Della já teria um dia deixado o cabelo caído para fora da janela a secar só para desvalorizar as jóias e os dons de Sua Majestade. Se o Rei Salomão fosse o porteiro, com todos os seus tesouros amontoados na cave, Jim teria puxado do seu relógio de cada vez que ele passasse, só para o ver cofiar a barba de inveja.

Portanto, agora o belo cabelo de Della estava caído à sua volta levemente ondulado e brilhante como uma cascata de águas castanhas. Chegava-lhe até abaixo do joelho e quase constituía para ela um vestido. E depois, nervosa, puxou-o outra vez para cima rapidamente. Ainda hesitou um minuto uma vez e ficou ali parada enquanto uma ou duas lágrimas caíam sobre a coçada carpete vermelha.

Lá vestiu o velho casaco castanho; lá pôs o chapéu castanho. Com um rodopio de saias e ainda com uma centelha nos olhos, correu para a porta e escada abaixo até à rua.

O sítio onde parou tinha um letreiro onde se lia: “Madame Sofronie. Cabeleiras de todos os tipos.” Della subiu o lance de escadas a correr e recompôs-se ofegante. A Madame, gorda, demasiado branca, fria, mal parecia a ‘Sofronie’.

— Compra-me o meu cabelo? — perguntou Della.

— Eu compro cabelo — disse a Madame. — Tire o chapéu e vejamos como ele é.

E lá se solou e se desenrolou a cascata castanha.

— Vinte dólares — disse a Madame levantando a massa do cabelo com mão profissional.

— Dê-mos cá depressa — disse Della.

Oh, e as duas horas seguintes passaram a voar. Esqueçamos a velha metáfora renovada. Ela andou a rebuscar as lojas em busca da prenda para Jim.

Por fim encontrou-a. Fora com certeza feita exactamente para ele e para mais ninguém. Não havia outra igual em nenhuma das lojas e ela tinha-as virado todas do avesso. Era uma singela corrente de relógio em platina, de desenho simples, que revelava apropriadamente o seu valor apenas pelo material e não por enfeites espalhafatosos — como todas as coisas deviam ser afinal. Era mesmo digna de O Relógio. Mal a viu, ficou com a certeza de que aquilo tinha de vir a pertencer ao Jim. Era como ele. Tranquilidade e valor — a descrição aplicava-se a ambos. Vinte e um dólares foi quanto lhe levaram por ela, e Della correu para casa com os oitenta e sete cêntimos.Com aquela corrente no relógio Jim devia ficar ansioso por saber as horas com toda a razão, quem quer que estivesse com ele. Magnífico como era o relógio, ele às vezes olhava-o às escondidas por causa da velha correia de couro que usava em vez da corrente.

Quando Della chegou a casa o seu entusiasmo deu um pouco lugar à prudência e à razão. Foi buscar os bigudis e lançou-se ao trabalho de reparar os estragos feitos por generosidade somada ao amor, o que é sempre uma tarefa tremenda, caros amigos — uma tarefa gigantesca.

Quarenta minutos depois tinha a cabeça coberta de minúsculos caracóis, muito juntinhos que assombrosamente a faziam parecer uma colegial preguiçosa. Olhou-se cuidadosamente ao espelho durante muito tempo com ar crítico.

— Se o Jim não me matar antes de me lançar um segundo olhar — disse ela consigo, — vai dizer que pareço uma menina de coro de Coney Island. E daí? Oh! O que é que eu podia fazer com um dólar e oitenta e sete cêntimos?

Às sete horas o café estava pronto e a frigideira já estava no fogão quente, preparada para cozinhar as costeletas.

Jim nunca se atrasava. Della dobrou a corrente na mão e sentou-se ao canto da mesa perto da porta por onde ele entrava sempre. Depois ouviu-lhe os passos no primeiro lanço de escadas e por momentos empalideceu. Ela tinha o hábito de dizer pequenas orações em silêncio para as coisas mais simples do dia-a-dia, e então murmurou: “Meu Deus, por favor, faz com que ele me continue a achar bonita.”

A porta abriu-se e Jim entrou e fechou-a atrás de si. Estava com um aspecto magro e sério. Pobre rapaz, tinha só vinte e dois anos — e já com uma família a seu cargo! Estava a precisar de um sobretudo novo e não tinha luvas.

Jim deteve-se do lado de dentro da porta, imóvel como um perdigueiro a farejar uma codorniz. Os olhos fixaram-se-lhe em Della e havia neles uma expressão que ela não conseguia interpretar e que a aterrorizou. Não era raiva, nem surpresa, nem desaprovação, nem horror, nem nenhum daqueles sentimentos para que ela se tinha preparado. Limitava-se a olhá-la fixamente com uma expressão muito peculiar.

Della deu a volta à mesa e foi ao seu encontro.

— Jim, meu querido — exclamou ela, — não me olhes dessa maneira. Eu mandei cortar o cabelo e vendi-o porque não teria sido capaz de passar o Natal sem te dar uma prenda. Ele vai crescer outra vez, não te preocupes, está bem? Eu não tinha outro remédio. O meu cabelo cresce muitíssimo depressa. Diz lá ‘Feliz Natal’, Jim, e sejamos felizes. Tu não imaginas que bonita, que bela, que fina prenda eu arranjei para ti.

— Cortaste o cabelo — perguntou Jim esforçadamente, como se ainda não se tivesse apercebido daquele facto evidente, mesmo após difícil trabalho mental.

— Cortei-o e vendi-o — disse Della. — Tu já não gostas tanto de mim? Sem o cabelo eu sou a mesma, não é?

Jim olhou à sua volta com curiosidade.

— Tu estás a dizer-me que o teu cabelo se foi?” disse ele com ar quase idiota.

— Não vale a pena procurá-lo — disse Della. — Está vendido, já te disse; vendido e com dono, também. Estamos na véspera do Natal, meu amigo. Sê bom para mim, pois o meu cabelo foi-se por ti. Talvez os meus cabelos se pudessem contar — continuou ela com uma súbita doçura grave, — mas jamais alguém poderia contar o meu amor por ti. Ponho as costeletas ao lume, Jim?

Jim pareceu acordar rapidamente do seu transe. Abraçou a sua Della. Olhemos durante segundos com discreto escrutínio para um objecto insignificante na outra direcção. Oito dólares por semana ou um milhão por ano: qual é a diferença? Um matemático ou uma pessoa sensata dariam ao leitor a resposta errada. Os Reis Magos levaram prendas valiosas, mas aquela não estava entre elas. Esta obscura afirmação será esclarecida mais adiante.

Jim tirou do bolso do sobretudo um embrulho e atirou-o para cima da mesa.

— Não me julgues mal, Dell — disse ele. — Acho que não há corte de cabelo nenhum, nem cabelo rapado, nem champô que me fizesse gostar menos da minha moça. Mas se desembrulhares esse pacote verás a razão da minha demora no princípio.

Dedos brancos e ágeis partiram o cordel e rasgaram o papel. E depois um grito extasiado de alegria; e depois, oh! uma rápida mudança feminina para as lágrimas histéricas e lamentos, a necessitar do imediato emprego de todos os poderes reconfortantes do dono da casa.

Porque ali estavam As Travessas, o conjunto de travessas para o cabelo, para os lados e para trás, que Della há tanto tempo andava a namorar numa vitrina da Broadway. Travessas belas, de tartaruga genuína, orladas de jóias, precisamente do tom a combinar com o belo cabelo desaparecido. Ela sabia que eram Travessas caras e o seu coração tinha-as simplesmente cobiçado e desejado sem a mínima esperança de alguma vez as vir a possuir. E agora eram dela, mas as tranças que deviam ter enfeitado aqueles cobiçados ornamentos tinham desaparecido.

Mesmo assim, ela apertou-os contra o peito e por fim conseguiu erguer os olhos turvos e dizer com um sorriso: — O cabelo cresce-me tão depressa, Jim!

E então Della saltou como um gato chamuscado e exclamou: — oh, oh!

Jim ainda não tinha visto a sua bela prenda. Ela estendeu-lha avidamente na palma da mão. O baço metal precioso parecia cintilar com o reflexo do seu espírito alegre e ardente.

— Não é uma maravilha, Jim? Corri a cidade toda à procura dela. Agora vais ter de ver as horas cem vezes por dia. Dá-me o teu relógio. Quero ver como ela lhe fica.

Em vez de lhe obedecer, Jim deixou-se cair no sofá e pôs as mão atrás da cabeça a sorrir.

— Dell — disse ele, — vamos deixar as prendas de Natal por um bocado. São belas demais para serem usadas neste momento. Eu vendi o relógio para arranjar dinheiro para as tuas travessas. E se tu pusesses agora as costeletas a grelhar?”

Os Reis Magos, como o leitor sabe, eram homens muito sábios — extraordinariamente sábios — que levaram prendas para o Menino Jesus na manjedoura. Foram eles que inventaram a arte de dar prendas no Natal. Como eram muito sábios as suas prendas eram sem dúvida prendas sábias, possivelmente com o privilégio de poderem ser trocadas no caso de estarem repetidas. E aqui eu contei-vos de maneira imperfeita a crónica monótona de dois jovens insensatos num apartamento, que muito insensatamente sacrificaram em favor um do outro os maiores tesouros que possuíam. Mas numa última palavra para os sábios dos nossos dias, diga-se que de entre todos aqueles que dão prendas estes dois foram os mais sábios. De entre todos os que dão e recebem prendas, mesmo de entre aqueles que são muitíssimo sábios, que em toda a parte o são: os Reis Magos.


• Escritor britânico do início do século XX, mais conhecido pelo pseudônimo Saki, cujos contos satirizavam a sociedade inglesa

2 comentários:

  1. Peço desculpa, mas tenho de fazer aqui uma correcção: o conto acima transcrito, cuja tradução é da minha autoria, não é o conto "A janela Aberta" de Saki, que também traduzi e se encontra na minha página pessoal (lvpinto.no.sapo.pt), mas sim "A Prenda dos Reis Magos", de O'Henry, que também traduzi e se encontra no meu site já referido. Agradeço que se proceda à devida correcção.
    Luís Varela Pinto

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  2. Correcção ao comentário anterior: ao contrário do que aí escrevi, o conto acima transcrito já esteve , mas já não está, na minha página pessoal; retirei-o por motivos que poderei explicar a quem estiver interessado.

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