sábado, 21 de abril de 2012







Balzac, príncipe do mal

* Por Anatole France

Estava um dia procurando livros num sebo do Quartier Latin, quando observei num canto da loja um homem de cabelos longos, jovem ainda, que parecia ter um caráter expansivo. Sua figura me era conhecida sem que me fosse possível atribuir-lhe um nome. Ele folheava um livro; seu olhar, seu sorriso, as rugas móveis de seu rosto, seus gestos amplos, tudo falava por ele antes mesmo que ele encontrasse um interlocutor. Não é necessário muito instinto para pressentir um falador. Senti que ou fugia ou tornar-me-ia sua presa. No entanto, fiquei. Sófocles tinha razão ao dizer que ninguém pode evitar seu destino. Passei por muitas provas disso em minha vida. Não sei resistir à má e nem à boa sorte. Porém, a má é naturalmente a mais freqüente. Na verdade , esse freqüentador de sebos não me era antipático. Ele possuía aquela fisionomia alegre, aquele ar à vontade dos pobres que não sentem sua pobreza e dos preguiçosos que sonham sem parar. Suas roupas, mais descuidadas que sujas, pareciam-me empoeiradas com o nobre pó das bibliotecas. Ele as trajava sem preocupação e sem interesse. Somente o chapéu, cujas abas eram estranhamente largas e a seda eriçada, revelava um gosto, um caráter , talvez até mesmo uma estética. Vivendo apenas da mente, sem dúvida, esse homem só se incomodava em trajar sua cabeça. As outras vestes não lhe interessavam. Lamento dizer que ele tinha as mãos sujas. Mas sabemos pela tradição que o príncipe dos bibliotecários, o velho Weiss, de Besançon, revelava semelhante negligência. Ocorria com as suas mãos o mesmo que se dava com as de Lady Macbet. Continuavam escuras após o banho e o senhor Weiss explicava-se dizendo que lia em sua banheira.

O homem, tão logo me viu, avançou em minha direção, batendo no livro:
- Leia, disse-me. É a lei santa, a lei do Senhor.

Ele carregava uma velha bíblia de Sacy, aberta no capítulo XX do Êxodo, e seu dedo me indicava o verso 4: “Não farás imagem esculpida”.
- A humanidade, acrescentou, perecerá na loucura por ter transgredido esse mandamento.

Vi que estava lidando com um louco. Não me incomodei com isso. Os loucos são algumas vezes divertidos. Não ouso dizer que eles raciocinam melhor que os outros homens, mas eles o fazem de outra maneira, e é preciso reconhecer isso neles. Eu não temia contrariá-lo um pouco:
- Desculpe-me, disse-lhe, eu sou idólatra e adoro as imagens.
- E eu, respondeu-me, amei-as loucamente. Mil mortes por elas sofri. Por isso detesto-as e as tenho por diabólicas. O senhor não leu a verdadeira história daquele homem enlouquecido por La Gioconda, de Leonardo, que, um dia, ao sair do Salon Carré, jogou-se no Sena? Não se recorda do que disse Luciano de Samósata sobre o jovem grego a quem a Vênus de Cnide inspirou um amos sacrílego e funesto? Ignora que o mármore da Hermafrodita do Louvre foi gasto pelo toque das mãos dos visitantes, e que a administração dos museus teve de proteger por uma barreira essa figura monstruosa e encantadora? Escapa-lhe que os Cristos crucificados e as Virgens pintadas são em toda a cristandade objetos da mais grosseira idolatria? É preciso dizer que, de maneira geral, os quadros e as estátuas perturbam os sentidos, induzem o espírito ao erro, inspiram o fastio e o horror à realidade e tornam os homens mil vezes mais infelizes do que foram na sua barbárie primitiva. São obras ímpias e abomináveis.

Opus-me timidamente alegando que, considerando o todo, a parte da estatuária e da pintura é bem pequena nas perturbações da carne e do sangue que agitam os homens, e que a arte, ao contrário, arrebata seus amantes nas regiões mais serenas em que só se experimentam prazeres tranqüilos.

Meu interlocutor fechou sua pequena e velha Bíblia e prosseguiu sem se dignar a me responder:
- Existem imagens mil vezes mais funestas que as esculpidas e pintadas, das quais Jeová quis preservar Israel: são as imagens por excelência, as imagens ideais que os romancistas e poetas concebem. São os tipos e os temperamentos, são as personagens dos romances. Essas figuras levam uma vida ativa: elas têm almas e é justo dizer que seus malignos autores as jogam entre nós como demônios, para nos tentar e nos perder. E como escapar delas, uma vez que habitam em nós e nos possuem? Goethe lança Werther no mundo: imediatamente os suicídios se multiplicam. Todos os poetas, todos os romancistas, sem exceção, perturbam a paz na terra. A “Ilíada”, de Homero e “Germinal”, de Zola, também criaram crimes. “Émile” transformou em terroristas e degoladores aqueles que Jean Jacques queria trazer de volta à natureza. Os mais inocentes como Dickens são mesmo assim culpados; eles desviam nossa ternura e piedade para esses seres imaginários, sentimentos que seriam melhor investidos nos seres vivos que nos rodeiam. Tal romancista produziu histéricas; um outro coquetes; um terceiro, jogadores ou assassinos. Mas o mais diabólico de todos, o Lúcifer da literatura, é Balzac. Ele imaginou todo um mundo infernal, que hoje concretizamos. É a partir de seus esquemas que somos ciumentos, gananciosos, violentos, injuriosos e que nos precipitamos uns sobre outros pela conquista do ouro, no ataque às virtudes, com uma fúria homicida e ridícula. Balzac é o príncipe do mal e seu reino chegou. Por todos os escultores, por todos os pintores , por todos os poetas, por todos os romancistas que, desde os primórdios do mundo até este momento fizeram mal à humanidade, que Balzac seja amaldiçoado!

Ele parou para respirar:
- Que pena! Disse-lhe, o que o senhor diz não está desprovido de razão (era conveniente lisonjeá-lo); mas os homens não tiveram que esperar os artistas para serem violentos e devassos: Átila e Gengis-Khan, que não leram Homero, foram guerreiros mais destruidores que Alexandre. Os Fuegians e os Boschimans são depravados, e eles não sabem ler nem desenhar. Os camponeses assassinam seus velhos pais sem nenhuma reminiscência romanesca. A concorrência vital era assassina antes de Balzac. Já havia greves antes que “Germinal” fosse escrito. As artes inspiram-lhe muita raiva e temo, senhor, que seja um moralista parcial.

Ele me cumprimentou com seu grande chapéu e disse:
- Eu não sou moralista, senhor; sou escultor, poeta e romancista.

Quando ele se foi:
- É um homem que tem bastante espírito, senhor, disse-me o livreiro; mas ele não é feliz, e Balzac o fez perder a cabeça.

• Pseudônimo de Jacques Anatole François Thibault, escritor francês, ganhador Fo Prêmio Nobel de Literatura de 1921.

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