A fronteira final
* Por Fernando Yanmar Narciso
O dia do arrebatamento? O sinal do fim dos tempos? A queda da barreira
entre o bem e o mal? A oitava maravilha do mundo? Chamem como quiserem, mas
enfim aconteceu. Walcyr Carrasco, espertalhão que só ele, foi comendo
quietinho, remendando o enredo de seu finado folhetim a conta-gotas, gerando
níveis de expectativa raramente vistos em novelas modernas, até que,
incentivado talvez pela pegação do casal lésbico no BBB 14, na última semana de
exibição de Amor à Vida, colocou a sempre sisuda e retrógrada Rede
Globo numa armadilha de pegar ursos: Se não rolasse o tão sonhado beijo gay
entre Félix e Niko no último capítulo, o país entraria em guerra!
E aqui estamos nós, dias após a cena polêmica. O país passou por
mudanças profundas nos últimos anos. Quer dizer, se até político milionário e
corrupto já vai preso no Brasil, por que não ter o tal beijo gay de uma vez e
acabar com essa agonia? O maior medo dos conservadores e implicantes de plantão
era que o tal beijo fosse tórrido demais, o que não aconteceu. A equipe dirigiu
uma cena sutil, foi empilhando a tensão e a curiosidade até onde fosse
humanamente suportável, e na hora H, foi um selinho cheio de ternura entre os
sensacionais Mateus Solano e Thiago Fragoso. Mas bem que a cena merecia um
porta-retratos ao fundo, com o autor mostrando o dedo do meio e os dizeres
“Toma essa, Dr. Roberto!”.
Quando perguntaram ao falecido Heath Ledger como ele tinha conseguido
juntar forças para beijar o Jake Gyllenhaal em Brokeback Mountain,
ele jocosamente respondeu que havia passado a tarde toda bebendo antes de
gravar a cena. Solano e Fragoso fizeram até certa cara de nojo durante o beijo,
mas a batalha contra a Censura enfim foi vencida. E o ex- Félix ainda espera
que o ex- Niko devolva sua língua. Mesmo sendo um beijinho de vovó, algumas
pessoas, como meu pai e a mulher dele, se escandalizaram com a cena. Quer
dizer, o que uma criança pode pensar ao ver dois homens “se esfregando” em
horário nobre?
Pastores de igrejas evangélicas ao redor do país já estão tentando
processar a Vênus Platinada por “tamanha pouca vergonha”. Depois a gente
conversa sobre as SUAS poucas vergonhas, caros sacerdotes. Eles devem ter
pensado que depois do alardeado beijo, passaríamos a ver na rua consequências
escabrosas, como homens andando pelados e se agarrando na calçada,
caminhoneiros de camisa rosa, Chambinho se tornaria a grande iguaria do verão,
lutadores de jiu-jitsu passariam a comprar chihuahuas em miniatura... Mas não
aconteceu nada. O mundo continua tão normal, sujo, indecente e corrupto quanto
sempre foi.
Foram necessários onze anos para a Rede Globo admitir a derrota para
essa guerra, iniciada em 2003 por Manoel Carlos com o casal teen lésbico de Mulheres
Apaixonadas, em 2005 até tinham gravado o beijo entre dois homens em América,
de Gloria Perez, que provavelmente só não foi ao ar porque era entre um casal
coadjuvante. O SBT largou na frente e lançou uma cena fervilhante entre duas
mulheres, ainda que na penumbra, em Amor e Revolução, de 2011. Mas
como foi numa novela do SBT, ninguém ficou sabendo de nada. E pensar que essa
batalha “contra a moral e os bons costumes” já havia sido vencida nos Estados
Unidos em 1998...
Agora que parte da poeira se assentou e a cena entrou para a história da
TV brasileira, ela também criou um problema: Amor à Vida será
um folhetim recordado somente pelo beijo gay. Todas as traições, assassinatos,
torturas, a mãe que praticamente vendia a filha feito carne de açougue, o homem
que adquiria outra personalidade depois de tomar muita porrada na cabeça e
ficava com uma mulher diferente para cada personalidade. Dr. César, que no alto
de seu ego inflado e homofóbico, terminou rejeitado pelas mulheres, meio cego,
gordo, chifrudo, paralítico e tendo de morar com o casalzinho gay numa casa de
praia.
Inclusive o mote da trama, que foi a menina que o Félix tacou no lixo,
nada disso importa. O que importa para a história da teledramaturgia foi que
duas barbas se aproximaram um pouco demais no último capítulo. O que é muito
justo, pois se eu tivesse nascido filho da babaca da Paloma e do doente mental
do Ninho, imploraria para que alguém me jogasse no lixo... Convenhamos que, em
se tratando de casais convencionais, a novela foi fraquíssima. O casal
principal de Paloma/Pamonha (Paolla de Oliveira) e Bruno (Malvino Salvador, o
Hector Bonilla brasileiro) foi tão carismático quanto uma tábua de passar
roupa.
Assim como os dois, a gente já sabia que, não importava o que
acontecesse com 90% dos casais héteros na novela, eles invariavelmente
terminariam juntos no final, e assim foi. Mas, no fundo, quem aqui do outro
lado da tela se importava com os casais heterossexuais? Eles são uma coisa tão
do século passado, né verdade, ô Walcyr? Mas, a essa altura, quem ainda
se lembra do nome de um único personagem daquela trama? Já tem a última novela
do Maneco no ar, com seu famoso fetiche por Helenas e pela vida dos ricos
cariocas, e daqui a seis meses, teremos outra novela diferente no ar. Ciclo da
vida...
*Designer e escritor. Sites:
HTTP://www.facebook.com/fernandoyanmar.narciso
http://cyberyanmar.deviantart.com
HTTP://www.facebook.com/terradeexcluidos
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Cena velha, porém quando requentada por você, fez surgir um novo apelo e de uma forma tão surpreendente e engraçada que fez ferver. Ótimo texto!
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