quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

A fronteira final

* Por Fernando Yanmar Narciso

O dia do arrebatamento? O sinal do fim dos tempos? A queda da barreira entre o bem e o mal? A oitava maravilha do mundo? Chamem como quiserem, mas enfim aconteceu. Walcyr Carrasco, espertalhão que só ele, foi comendo quietinho, remendando o enredo de seu finado folhetim a conta-gotas, gerando níveis de expectativa raramente vistos em novelas modernas, até que, incentivado talvez pela pegação do casal lésbico no BBB 14, na última semana de exibição de Amor à Vida, colocou a sempre sisuda e retrógrada Rede Globo numa armadilha de pegar ursos: Se não rolasse o tão sonhado beijo gay entre Félix e Niko no último capítulo, o país entraria em guerra!

E aqui estamos nós, dias após a cena polêmica. O país passou por mudanças profundas nos últimos anos. Quer dizer, se até político milionário e corrupto já vai preso no Brasil, por que não ter o tal beijo gay de uma vez e acabar com essa agonia? O maior medo dos conservadores e implicantes de plantão era que o tal beijo fosse tórrido demais, o que não aconteceu. A equipe dirigiu uma cena sutil, foi empilhando a tensão e a curiosidade até onde fosse humanamente suportável, e na hora H, foi um selinho cheio de ternura entre os sensacionais Mateus Solano e Thiago Fragoso. Mas bem que a cena merecia um porta-retratos ao fundo, com o autor mostrando o dedo do meio e os dizeres “Toma essa, Dr. Roberto!”.

Quando perguntaram ao falecido Heath Ledger como ele tinha conseguido juntar forças para beijar o Jake Gyllenhaal em Brokeback Mountain, ele jocosamente respondeu que havia passado a tarde toda bebendo antes de gravar a cena. Solano e Fragoso fizeram até certa cara de nojo durante o beijo, mas a batalha contra a Censura enfim foi vencida. E o ex- Félix ainda espera que o ex- Niko devolva sua língua. Mesmo sendo um beijinho de vovó, algumas pessoas, como meu pai e a mulher dele, se escandalizaram com a cena. Quer dizer, o que uma criança pode pensar ao ver dois homens “se esfregando” em horário nobre?

Pastores de igrejas evangélicas ao redor do país já estão tentando processar a Vênus Platinada por “tamanha pouca vergonha”. Depois a gente conversa sobre as SUAS poucas vergonhas, caros sacerdotes. Eles devem ter pensado que depois do alardeado beijo, passaríamos a ver na rua consequências escabrosas, como homens andando pelados e se agarrando na calçada, caminhoneiros de camisa rosa, Chambinho se tornaria a grande iguaria do verão, lutadores de jiu-jitsu passariam a comprar chihuahuas em miniatura... Mas não aconteceu nada. O mundo continua tão normal, sujo, indecente e corrupto quanto sempre foi.

Foram necessários onze anos para a Rede Globo admitir a derrota para essa guerra, iniciada em 2003 por Manoel Carlos com o casal teen lésbico de Mulheres Apaixonadas, em 2005 até tinham gravado o beijo entre dois homens em América, de Gloria Perez, que provavelmente só não foi ao ar porque era entre um casal coadjuvante. O SBT largou na frente e lançou uma cena fervilhante entre duas mulheres, ainda que na penumbra, em Amor e Revolução, de 2011. Mas como foi numa novela do SBT, ninguém ficou sabendo de nada. E pensar que essa batalha “contra a moral e os bons costumes” já havia sido vencida nos Estados Unidos em 1998...

Agora que parte da poeira se assentou e a cena entrou para a história da TV brasileira, ela também criou um problema: Amor à Vida será um folhetim recordado somente pelo beijo gay. Todas as traições, assassinatos, torturas, a mãe que praticamente vendia a filha feito carne de açougue, o homem que adquiria outra personalidade depois de tomar muita porrada na cabeça e ficava com uma mulher diferente para cada personalidade. Dr. César, que no alto de seu ego inflado e homofóbico, terminou rejeitado pelas mulheres, meio cego, gordo, chifrudo, paralítico e tendo de morar com o casalzinho gay numa casa de praia.

Inclusive o mote da trama, que foi a menina que o Félix tacou no lixo, nada disso importa. O que importa para a história da teledramaturgia foi que duas barbas se aproximaram um pouco demais no último capítulo. O que é muito justo, pois se eu tivesse nascido filho da babaca da Paloma e do doente mental do Ninho, imploraria para que alguém me jogasse no lixo... Convenhamos que, em se tratando de casais convencionais, a novela foi fraquíssima. O casal principal de Paloma/Pamonha (Paolla de Oliveira) e Bruno (Malvino Salvador, o Hector Bonilla brasileiro) foi tão carismático quanto uma tábua de passar roupa.

Assim como os dois, a gente já sabia que, não importava o que acontecesse com 90% dos casais héteros na novela, eles invariavelmente terminariam juntos no final, e assim foi. Mas, no fundo, quem aqui do outro lado da tela se importava com os casais heterossexuais? Eles são uma coisa tão do século passado, né verdade, ô Walcyr?  Mas, a essa altura, quem ainda se lembra do nome de um único personagem daquela trama? Já tem a última novela do Maneco no ar, com seu famoso fetiche por Helenas e pela vida dos ricos cariocas, e daqui a seis meses, teremos outra novela diferente no ar. Ciclo da vida...

*Designer e escritor. Sites:

Um comentário:

  1. Cena velha, porém quando requentada por você, fez surgir um novo apelo e de uma forma tão surpreendente e engraçada que fez ferver. Ótimo texto!

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