sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

O paço e o palácio do frevo

* Por Urariano Mota

Neste 9 de fevereiro de 2014 o Recife está em festa. No dia dos 107 anos em que a palavra frevo apareceu pela primeira vez em jornal, ganhamos o Paço do Frevo.  Para quem não  lembra, paço significa palácio de rei, imperador ou bispo. Até parece ironia, quando a música, dança e manifestação do frevo, que veio da gentinha, recebe hoje uma casa imensa, típica de nobres e autoridades da Igreja. Mas em vez de qualquer descaminho sectário, o caso é de saudação. Queremos dizer, é de felicidade, porque uma face da civilização pernambucana recebe um tratamento que antes era só dos eleitos de Deus ou aristocratas.    

No Dicionário Amoroso do Recife, que será lançado no começo de março deste 2014, escrevi que já houve um tempo do carnaval ser do Recife, somente do Recife, e de mais ninguém ou mais nada. Em outras terras, tão distantes do povo recifense quanto a China deve estar de Pernambuco, em outros lugares também havia carnaval, é claro, o nosso gostoso isolamento não chegava à pretensão de negar os carnavais de outras gentes. Mas o nosso carnaval, o do Recife, já então era “o maior carnaval do mundo”. (Esse exagero pernambucano, uma característica secular, bem merecia mais que um texto, mais que um livro inteiro entre o cômico e o científico. Sem exagero. )

Com a chegada da televisão, descobrimos que havia carnavais mais caros e luxuosos, como o do Rio de Janeiro. Mas então os mais lúcidos gritaram: “Isso não é carnaval, é desfile”. E possuíam lá sua razão, porque do Rio se mostrava apenas o luxo de Hollywood. O sucesso. Ora, quis uma longa tradição, que descia do conflito entre burguesia e povo, casa-grande e senzala, que o carnaval do Recife era, é ainda, na essência e identidade uma participação popular. Uma expressão do conflito. Isso queria dizer que em 4 dias, contados do sábado, o carnaval para o povo era melhor que a praia. Era de todos, para todos, sem limite de raça, cor ou classe.

Se na praia os suburbanos iam para ver mulher quase nua sob o sol, sob o cheiro de mar e água salgada, no carnaval era mais: além de mulher seminua à vontade, mais louca e generosa (mas nem tanto para o que sonhavam em fazer com ela), havia música de gerar estouro em multidões, o frevo de rua. E mais álcool e mais luzes para a fantasia, no sentido de roupa carnavalesca e de criação também, pois não tinha nome mais próprio para os disfarces imaginados e libertos, na medida dos bolsos dos suburbanos.

Mas agora, com o Paço do Frevo, veremos um carnaval além dos 4 dias, o ano todo, todos os anos. Não sei se com ele atingiremos o que sonhamos. Uma renovação na continuidade da história, nele representada. É muito, sei. Assim como é impossível hoje algo como a Evocação número 1. É absolutamente improvável, absurdo, que se faça de novo Último Dia, de Levino Ferreira. Mas o frevo acabou? – Não. Todos os dias temos prova que não, em nossos dias, em nosso ser, nos novos intérpretes que vêm, alguns até bem jovens. Esse renovar deve com mais certeza aliar, resolver a tradição no presente. Há caminhos ainda não percorridos, a partir mesmo da tradição. Como pode ser visto aqui, com a orquestra Spok,  ( Veja o vídeo )

Aquilo que escrevi nos 100 anos do frevo, quando observei: temos agora a certeza, com algo vivo, que uma cultura não se destrói. Isso é uma felicidade. Estamos todos bestas, cantarolando com aparência de idiotas, que nunca perdemos, “você diz que ela é bela, ela é bela, sim, senhor. Porém poderia ser mais bela, se ela tivesse meu amor. Bela é toda a natureza, bela é tudo que é belo”. Bela é tudo que é belo. Estamos todos bestas com a vitória do frevo.  Tão novo, que nem parece ter 107 anos.

Ainda não vi o Paço do Frevo, mas vou vê-lo hoje mesmo. Imagino que um povo suado entrará comigo, com aquela melodia e versos na memória:

“Na alta madrugada
O coro entoava 
Do bloco a marcha-regresso
Que era o sucesso 
Dos tempos ideais
Do velho Raul Morais:
‘Adeus, adeus, ó minha gente,
que já cantamos bastante..’
E Recife adormecia 
Ficava a sonhar”  

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.



Um comentário:

  1. É a coroação da glória. Pouco importa se os de longe torcem o nariz para o frevo. Enquanto houver ouvintes e dançantes apaixonados, o frevo será eterno.

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