quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Traiçoeira a tal da nostalgia

* Por Fernando Yanmar Narciso

Diz o provérbio chinês que não se regressa a um lugar aonde já fomos felizes. É triste quando você vive o bastante para ver as coisas que aprecia ou apreciava entrando em irreversível decadência. Antes mesmo de eu nascer, meus pais colecionavam quinquilharias de hotel, em tempos que somente os muito ricos podiam viajar com frequência. Se a trapizunga tivesse a logomarca da empresa, tratavam de pegar e guardar num saco de plástico grosso, que permanece intacta até hoje: Chaveiros, sabonetinhos, barbeadores, cartelinhas de cigarro e fósforos de papelão (lembram-se disso?), enfim qualquer tipo de recordação.

Um de nossos points de repouso favoritos na década de 80 era uma saudosa franquia internacional de hotéis, que povoara o nordeste brasileiro por um longo tempo. Em tempos que não havia asfalto ligando Minas Gerais à rodovia Rio-Bahia, meter-se a fazer uma viagem de carro para além dos limites do Estado era quase como escoltar um grupo de missionários num barco através de Mianmar, como o Rambo. Sendo cearense e tendo quase toda sua família morando em Natal-RN, meu pai sempre fez questão de tentar visitar seus irmãos anualmente. Como o país vivia no buraco na década de 80, o jeito era encarar dezenas de horas num trajeto interminável, lamacento e sacolejante, à bordo de um carro sem ar condicionado. Programão!

Em Conquista e em Feira de Santana, na Bahia, havia hotéis da tal franquia, e depois de passar tanto tempo viajando, suados e ofegantes, estaríamos felizes até se achássemos um bando de traficantes de órgãos, pelo menos daria pra tirar uma curta pestana com o gás sonífero na mesa de operação. Por isso os hotéis pareciam oásis no meio deserto para nós. Não eram 5 estrelas, mas a arquitetura era moderna para seu tempo, com chalés montados em blocos enfileirados como num acampamento militar. Os tetos dos quartos eram de madeira, o chuveiro de água aquecida era imenso, quase uma cachoeira dentro do box. Exatamente o que meu pai precisava depois de 18 horas atrás de um volante sem direção hidráulica. Camas macias, cozinha da melhor qualidade, as pessoas bebiam e festejavam em torno de sua piscina como num comercial de Guaraná Antarctica...

E tanto fazia se hospedar em Conquista ou em Feira, pois a arquitetura de ambos os hotéis era padronizada. Nossos tempos de alívio nesses hotéis deixaram marcas profundas em nossa memória, por isso nos hospedávamos neles sempre que íamos ao litoral. No entanto, fazia mais de dez anos que estivemos lá pela última vez (eu, pelo menos), e em nossa longuíssima viagem de carro para Natal ano passado a escolha do nostálgico point em Santana era, no mínimo, óbvia. Mas eis que chegamos ao Xangri- Lá a altas horas da noite, depois de lutar contra o asfalto esburacado,  chuva de barro, carretas e várias paradas de pedágio e nos demos conta de que não havia mudado absolutamente nada ali...

E era exatamente esse o problema! Não sei se foi por causa de constante troca de gerentes e franquias, má gestão ou o que o valha, o fato é que nosso amado hotel estacionou no tempo, ao ponto de quase poder ser considerado uma cidade-fantasma, ou o cenário de um filme de torture porn. Só pra começar, como é que um hotel, no topo de um morro há alguns quilômetros do centro da cidade, não pode fornecer almoço ou jantar aos poucos hóspedes que consegue ter? Foi um absurdo ver dezenas de pessoas no restaurante, esperando pelo garçom, apenas para ouvirem que a cozinha estava fechada aquela noite. Um absurdo, considerando-se que em seus tempos áureos eles costumavam servir pratos de luxo! Pelo que pude deduzir através da janelinha, a cozinha era iluminada por uma vela naquela noite. E o, por assim dizer, garçom, ocorria de também ser o porteiro.

Quanto às instalações... Apenas metade dos apartamentos continua habitável, pois a parte de trás dos chalés foi interditada há alguns anos, provavelmente devido a uma chacina. Em frente ao nosso quarto, havia  obras de um novo conjunto de apartamentos, largada de lado sabe-se lá há quanto tempo. Os chuveiros continuavam os mesmos de 30 anos atrás, o que pode ser considerado uma temeridade. Com o aquecedor defeituoso, enferrujados e entupidos, se o banho gelado não te matasse de pneumonia, com certeza te mataria de tétano. A porta de alguns quartos sequer tinha trinco na fechadura, o que proporcionou inúmeros barracos de hóspedes enquanto estivemos lá.

OK que a localização continua incrível, a vista da estrada é maravilhosa e a fachada da recepção, ao lado da piscina, ainda é linda, mas só os delírios nostálgicos não compensaram a estadia. Uma vergonha para um lugar que costumava impor respeito e ter uma página inteira dedicada a si nos guias Quatro Rodas. No entanto, quão grande foi meu espanto ao pesquisar na internet e descobrir que o “hotel-gêmeo” dele em Conquista agora era um hotel-spa de luxo! Decepção demais para uma viagem só... Porém, a ironia foi que na viagem de volta, quase tão estressante quanto a de ida, o cenário de filme de terror italiano era o único hotel com vagas na cidade. E lá fomos nós de novo, reclamar de barriga vazia. Pelo menos peguei um cartão de visitas do hotel como souvenir, mais um pra engordar aquela velha sacola de plástico.

*Designer e escritor. Sites:



Um comentário:

  1. Prefiro a pobreza despida do que a decadência pura e simples. Recordar é reviver mas em alguns casos é chorar. Pena mesmo!

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