quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Preconceito e violência


O preconceito, seja a que propósito for, mas, sobretudo, o racial – que ainda é o mais comum – é sempre odioso. Não tem a menor justificação. Ademais, é um pavio aceso em um barril de pólvora para a deflagração da violência. Essa, como todos sabem (até o mais tolo dos tolos não o ignora), é fácil de começar... todavia, em alguns casos, é difícílima de controlar. E, em situações extremas, é, até mesmo, incontrolável. Principalmente quando o preconceito sobe um degrau a mais e se transforma em discriminação. Ou seja, em segregação daqueles que o preconceituoso julga inferiores. Como ninguém gosta de ser inferiorizado, nem mesmo o mais renitente dos masoquistas, a reação da vítima é para lá de lógica. E, invariavelmente, é violenta.

Escrevi muito sobre este tema, que considero apropriado de ser tratado em Literatura, pelas diversas facetas que apresenta. Aliás, tudo e todos são assuntos para um bom escritor (atento e competente), pois sua principal missão é reproduzir, em ficção ou não ficção, a vida como ela é. E, infelizmente, o ser humano é assim: preconceituoso e discriminador, egoísta e violento. O que varia é a intensidade desses comportamentos, de acordo com a educação que o indivíduo recebe e, por conseqüência, da sua forma de encarar o mundo e esta aventura perigosa, mas fascinante, que é o privilégio de viver.

Fico imaginando se há, em alguma parte do mundo, algum país em que não exista o mais leve resquício de preconceito. Desconfio que não haja neste Planeta que parece tão grande, e no entanto é tão pequeno, nenhum “paraíso” como esse. Indago-me, amiúde, por exemplo, se a discriminação racial foi, de fato, banida da África do Sul, depois da sapientíssima e nobre ação de Nelson Mandela, no sentido de tornar aquela sociedade (em que o preconceito e a discriminação foram, por praticamente meio século, inclusive normas legais), em uma nação não somente multicultural, mas, sobretudo, multirracial. Tenho lá minhas dúvidas. Receio que resquícios de ressentimento sobrevivam nos corações e mentes de muitos brancos e de muitos negros. O que pode variar é a quantidade desses ressentidos e preconceituosos dissimulados.

E os Estados Unidos, livraram-se do racismo, com a eleição de Barak Obama para a presidência? Ou este permanece vivo, esperando, apenas, oportunidade, algum pretexto, mesmo que banal, de se manifestar? Consultando meus arquivos, para escrever sobre o assunto sem risco de dizer bobagens, encontrei matéria, datada do início de maio de 1992, dando conta dos distúrbios ocorridos nos Estados Unidos, que começaram em Los Angeles e se estenderam a outras dez cidades norte-americanas, de sete Estados, e que trouxeram à tona, mais uma vez, naquela oportunidade, a questão do preconceito racial naquele país.

A absolvição dos agressores de Rodney King, um negro, barbaramente espancado pelos policiais Laurence Powell, Theodore Briseno, Timothy Wind e Stacy Koon em 3 de março de 1991, cujo fato foi registrado por um cinegrafista amador e cujas imagens foram divulgadas praticamente no mundo todo, por um júri, todo ele integrado por brancos, foi o estopim da revolta. Foi a gota d’água que faltava para que ressentimentos acumulados por anos extravasassem.

As cenas do videoteipe falavam por si sós e por isso ninguém compreende – e certamente nem os próprios jurados – a razão de uma decisão tão infeliz, parcial e injusta do grupo encarregado de julgar os que exorbitaram da autoridade. A vítima havia sido detida por dirigir em alta velocidade. Não resistiu à detenção e sequer esboçou mínimo gesto de hostilidade. Ainda assim, King recebeu, em várias partes do corpo, 56 golpes de cassetete, chutes e socos, numa inesquecível cena de selvajaria que quem a presenciou, pela televisão, certamente jamais irá esquecer.

Compreende-se, até, a revolta da comunidade negra diante do ridículo veredito da Justiça. Mas nada justificava que se respondesse à violência com outra violência ainda maior. Los Angeles virou praça de guerra, com centenas de incêndios se espalhando por toda a cidade, saques e depredações generalizados e, o que é pior, agressões de toda a sorte que redundaram na morte de pelo menos 38 pessoas, ferimentos em cerca de 1.300 e prejuízos incalculáveis, que ascenderam a alguns milhões de dólares. E, o que foi mais grave, a imagem dos Estados Unidos, de uma sociedade quase perfeita, perante a comunidade mundial, ficou bastante comprometida na ocasião.

Aliás, coincidentemente, somente alguns dias antes desses conflitos, o filósofo esloveno, Slavoj Zizek, comentando o fim do comunismo e a desagregação da ex-União Soviética, previu tumultos como estes em países capitalistas. Observou: “Sem o mundo comunista, desapareceu a figura do inimigo externo que deve ser exterminado. As lutas agora se transferiram para a esfera interna. Não é verdade, como diz Francis Fukuyama, que com a queda do comunismo terminaram os antagonismos e a História” E não terminaram mesmo.
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Não eram (e não são), apenas, os Estados Unidos que tinham (ainda têm?) essa autêntica bomba de tempo montada em seu interior para explodir a qualquer momento chamada preconceito. Na Alemanha, por exemplo, o ressurgimento do nazismo, com toda sua ideologia de ódio e de pretensa superioridade racial,  gerou alguns tumultos, posto que nenhum tão grave como os que afetaram Los Angeles e mais dez cidades norte-americanas em fins de abril e começo de maio de 1992.

França, Grã-Bretanha, Itália, apenas para mencionar outras potências, estão muito longe de serem os oásis de paz e solidariedade que alguns apregoam, muitos sonham construir, mas que ninguém se empenha seriamente para tornar concretos. Isto para não citar o antagonismo étnico latente em várias partes da Europa, especialmente no Leste europeu e os fundamentalismos religiosos, instigando ódios em seguidores fanatizados, ao invés de mensagens de amor, como seria de se esperar da parte de qualquer religião.

Mais do que nunca, os homens se odeiam, se agridem e ressaltam pequenas e irrelevantes diferenças, quando deveriam se concentrar em cultivar as enormes semelhanças. Martin Luther King, na década de 1960, definiu com clareza o que está por trás das atitudes segregacionistas: “A segregação racial é alicerçada em medos irracionais como a perda de privilégio econômico, a posição social alterada, os casamentos interraciais e o ajustamento a situações novas”.

Teme-se que explosões de violência até inesperadas venham a ocorrer, e não importa onde, motivadas pelo preconceito (não apenas o racial, mas principalmente ele) e pela conseqüente discriminação. Pretextos, infelizmente, sempre existiram e existirão enquanto não houver uma consciência clara de que os sistemas sociais existentes, que classificam os homens e determinam seus destinos pelo que eles têm e não pelo que são, são perversos, injustos, imorais e ilógicos. Afinal, como indagou William Shakespeare, numa de suas peças: “O que é a cidade senão as pessoas?” Da minha parte, faria uma ligeira mudança nessa indagação. Substituiria a palavra “cidade” por “sociedade”. E a questão ficaria assim: “O que é a sociedade senão as pessoas?”. Sim, leitor, o que é?!

Boa leitura.

O Editor.  .   


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Um comentário:

  1. Encantada com o editorial, de tal forma que torna-se imperioso manifestar-me assim, ainda que, alguém, caso leia essas palavras, vá pensar que estou bajulando-o. No caso, será irrelevante, pois gostei muito mesmo. Compartilho no Facebook.

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