domingo, 26 de janeiro de 2014

Hanna e seu avô

* Por José Ribamar Bessa Freire

Abro o jornal. Dois renomados colunistas do Globo, cujas crônicas são em geral atraentes, escrevem sobre suas próprias netas. Morro de inveja. Bem que gostaria de imitá-los, mas sou contido por um certo pudor. Embora o tema me interesse, há quem os critique neste caso, ressaltando a excessiva exposição da privacidade, que caracterizaria uma "falta de decoro parlamentar". O fato de não demarcar a fronteira entre o público e o privado compromete a qualidade do texto?

Faltou-lhes distanciamento crítico, mas qual é o avô que consegue falar da sua neta sem arriar os quatro pneus? Daí surge uma dúvida assaz atroz: o leitor exigente e, convenhamos, invejoso, não perdoa os dois cronistas. Mas o neto que algum dia fomos ou que ainda somos olha com condescendência e até com simpatia os avós que escrevem. De qualquer forma, neste caso, talvez seja mais prudente ouvir a voz de Carlos Drummond:  
Não faças versos sobre acontecimentos. O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

É uma pena! Os netos, que nos encantam, por si sós não rendem literatura. Quer dizer, os nossos netos não, mas podemos manter o recato e fazer uma fezinha com os netos dos outros, penetrando "no reino surdo das palavras", em busca do que há de universal na relação com os avós. Falar sobre a neta de terceiros é menos indecoroso do que sobre a própria, além de permitir aquele distanciamento brechtiano. Com essa esperança, recorro, então, ao velho Pepê, com histórias de sua neta Hanna que agora vos repasso.

Palavrão

Ouçamos, ora pois pois, Pedro Pereira, que já passou dos 70 anos. Seu nome é uma homenagem feita pelo pai, um sindicalista português, ao anarquista russo Piotr Kropotkin. Pedro queria seguir carreira diplomática e foi estudar filosofia na Universidade de Coimbra, mas perseguido pela ditadura fascista de Salazar, fugiu da guerra colonial, nos anos 1960, se refugiou na França e logo depois se exilou no Brasil. Aqui ficou conhecido como PP entre os amigos do Largo do Bicão, na Vila da Penha, onde mora.

Nas barricadas do Quartier Latin, em maio de 1968, levantou a bandeira do "é proibido proibir". Herdou dos anarquistas, além do nome, ideias libertárias e um desprezo por qualquer forma de poder ou de autoridade, o que explica talvez, em parte, o fato de ser desbocado. De cada cinco palavras que fala, dez são palavrões, alguns leves, outros impublicáveis.  Mas consegue operar o milagre de não ser vulgar nem pornográfico. E de usá-los de forma apropriada, no momento preciso, em várias línguas, já que todas elas têm um rico repertório de "obscenidades".

Concorda com Jorge Amado para quem o palavrão é apenas uma palavra, igual a qualquer outra, que se tornou maldita e obscena por causa de preconceitos bobos e moralistas. Porra, para ele, é uma vírgula. Aquele xingamento da torcida do Maracanã saudando o trio de arbitragem é um ponto de exclamação. Expressões como "fuck, man" dos ingleses ou "va te faire foutre" dos franceses é moeda corrente, que serve para aliviar o estresse.

Durante uma bacalhoada na semana passada, a conversa de PP se centrou sobre sua neta de 3 anos e caqueirada, cujos pais são professores e deixam escapar aqui e ali, quando inevitável, palavrões que não são socialmente aceitos e que  passaram a ser repetidos pela criança. Hanna, a neta de Pepê, se encantou não só com as vírgulas, mas também com alguns substantivos fortes e até verbos sugestivos que não ouso escrever aqui para não ferir ouvidos pudibundos, que os há, e precisam ser respeitados.

Desbocado

Depois disso, sob o olhar irônico, mas respeitoso do velho PP, pai e mãe decidiram policiar a própria linguagem e advertiram a filha que devia evitar esse tipo de palavra, escolhendo outras para expressar suas emoções, embora não concordem com o que a tia falou na creche de que palavrão é coisa de homem e não de mulher e discordem frontalmente de uma amiga psicóloga que chegou a diagnosticar Hanna como portadora da Síndrome de Tourette, cujo sintoma seria o uso excessivo de palavrões.

Um dia desses Hanna estava sentada na banheira, enfrentando o calor infernal, enquanto seu avô escovava os dentes. Começou a contar para ele uma história que parecia não ter fim, um fato recente, cheio de idas-e-vindas, que terminava com ela deixando cair uma garrafa de xarope espatifada no chão. Foi vidro pra tudo quanto é lado.
- Aí, vovô, eu disse... aí, eu disse... eu disse...
- Disse o quê, Hanna?

Ela pediu então à mãe e a avó que se retirassem. Afastadas as autoridades repressoras, quando ficou sozinha com o velho anarquista desbocado, Hanna concluiu a história com muita propriedade, encheu a boca, saboreando as palavras e explorando toda sua sonoridade:
- Aí, vovô, eu disse: PUTA QUE O PALIU! Puta que o paliu é palavrão, não é pra falar, mas eu falei sem querer.

Três aninhos e pouco e já promete tanto. A mãe censurou-a porque não queria dividir um brinquedo com uma amiguinha.
- Você não pode ser egoísta, Hanna!
- Egoísta é palavrão, não é pra falar palavrão - respondeu ela, muito espertinha. Aliás, esperteza é o que não lhe falta. Aliás, ela aprendeu a falar a palavra 'aliás', que emprega também na ocasião e no lugar certos. Aliás, cada janeiro ela vem de férias do nordeste, onde mora, para o Rio. Mostra, então, que continua fiel ao desbocamento herdado do avô. Aliás, entra hanna e sai hanna e o velho hannarquista continua a festejar as vírgulas e exclamações da neta.

Netarana

Contei ao avô que no Pará se emprega a palavra "netarana", usando o sufixo tupi rana (como se fosse), indicando que os processos de modalização do nome, característicos das línguas tupi, podem ser também registrados em português, como indicam uma infinidade de formas assim modalizadas: canarana, cajarana, tupinambarana, sagarana, etc. Considerei sua neta Hanna como minha netarana. Pedi licença para contar as histórias dela aqui no Diário do Amazonas.

Foi então que o velho Pepê me disse que havia assuntos muito mais importantes: a guerra civil na Síria, as manifestações na Ucrânia, a violência nas prisões do Maranhão, as fraudes no banco do Vaticano, o acordo nuclear do Irã, o Forum de Davos, as gordas propinas pagas ao PSDB paulista, as denúncias no Jornal Nacional dos crimes cometidos pelo prefeito de Coari Adail Pinheiro, as maldades da Aline e a cegueira do doutor César.

Respondi-lhe com o início de um poema de Bertold Brecht, que foi traduzido por Manuel Bandeira:

"Realmente, vivemos tempos sombrios! (...)  /  Que tempos são estes, / em que é quase um delito / falar de coisas inocentes./ Pois implica silenciar tantos horrores!".

Falar de flores e de netos é "quase" um crime, que merece uma "quase punição"?


* Jornalista e historiador

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