quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Homem mulhezeiro

* Por Mara Narciso

O casal de idosos ainda reside na roça e se dá bem. Os dez filhos são doutores em sua maioria, e alguns moram noutra cidade. Poucos anos atrás, Zé caiu no quintal e machucou feio. Andando no escuro, pisou em falso numa tábua e estropiou a cara e a perna. Foi trabalhoso e custou um tempão para ficar bom. Rosa, sua esposa, esperta e bem falante, cuidou dele com toda a paciência, e sua saúde está boa agora. Zé é caseiro, mas não era assim. Na mocidade deu trabalho, e a expressão do título da crônica foi dita por Rosa. Declarados, teve três filhos fora do casamento, com duas mulheres, além dos de sua esposa. Ela relata como foi a vida a dois, ou a quatro, ou a cinco, melhor dizendo.

Ainda jovens, já contavam com certo recurso e uma pequena fazenda. Frequentavam o povoado mais próximo. Quando meninos, os filhos viajavam quilômetros para estudar, enquanto as traquinagens de Zé eram sabidas por todos. Ninguém falava nada, nem sua esposa se movimentava para resolver o caso, até que uma vizinha disse a Rosa:
-Você devia por reparo no Zé. Ele não sai da casa daquela lá.

Rosa sabia das visitas. Mal o sol esfriava, o marido se banhava e desaparecia. Naquela casa nasceram duas crianças que eram a cara de Zé. Autorizou à amante, desde o começo, a comprar coisas, recomendando ao dono do armazém a entregar o que ela precisasse. Bastava a mulher enviar um bilhete rabiscado, que os víveres lhe eram dados. Tempos depois, começou a exagerar. Parecia que comprava para dar festa. Carnes em cortes grandes, sem precisão, viraram rotina e vira e mexe o açougueiro chegava à casa de Zé cobrando algo. Como o dono não estava, quem pagava em espécie era sua esposa, mas os gastos excessivos começaram a incomodar Rosa.
- Zé, a mulher tá comprando coisa demais e dando pros parentes dela. Cê tá sustentando os filhos e a parentalha. Ontem mesmo tive de pagar uma contona do armazém. Cê precisa dar um jeito nisso.

O marido, como era costume, não falou nada, e silencioso, passou nas vendas e deixou sua assinatura no topo da primeira página de um caderno, em cada uma delas. Ordenou aos donos que só entregassem os produtos mediante confirmação da sua assinatura. Outras compras estavam desautorizadas e não seriam pagas. Chegando um bilhete, era fazer como cartório ou banco: ir ao arquivo e reconhecer a firma. Assim, botou termo no consumo da segunda família.

Outro problema com que se preocupar, Rosa não tinha. Dura na criação dos filhos, trazia a prole sob controle. O dinheiro dava para os gastos da grande família, até que mais um filho nasceu noutra casa e não seria o último. Zé saia da casa de uma e encarava a outra. Parecia nunca perder a energia.

Numa ocasião, foi visitar uma amante e lá encontrou dois homens que também se utilizavam dos serviços sexuais da mulher. Foi um corre-corre com direito a facadas, e por pouco Zé não perde a vida. Entrou sem faca e desarmado de espírito, pois se considerava o único homem daquela casa, onde teria nascido seu 13º filho.

Queixar-se raramente, até que Rosa se queixava, mas não se perdia no labirinto dos sentimentos, apenas nas coisas de ordem prática.  Gosta do marido, estão juntos há 60 anos, e vivem mal quando afastados por alguma contingência. Quando ela viaja para tratamento, Zé conta os minutos para ela voltar. Quase chora. Seria saudade? Sertanejos não perdem tempo com molezas.

Aos olhos de hoje, não é fácil entender os meandros de hábitos de algum tempo atrás. A grosso modo, lembram costumes medievais, de sociedades regidas por antigas tradições, que ainda estão de pé em países do Oriente Médio. O diferente choca, neste caso em particular, por ser fato relativamente recente e vivo na memória dessa guerreira. Rosa venceu a concorrência e ficou com seu homem. Hoje tem Zé só para si, um troféu ao alcance da sua mão, para o seu prazer e equilíbrio. O caso serve para pensar sobre a insolubilidade do casamento e seu mantra: que o homem não separe o que Deus uniu.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   

3 comentários:

  1. Aqui pelo interior do estado do Rio se diz "mulherengo", mas isso não vem ao caso. Sua crônica me seduziu e não consegui desviar os olhos. Adorei o desfecho: "Rosa venceu a concorrência" e eu diria: Não foi "descartável" como as outras. Isso que importa.
    Depois de ler acorreu-me à mente que há alguns personagens bíblicos que coabitavam com outras mulheres, chamadas "servas", mas a verdadeira esposa era tida em alto grau e bom conceito, em profundo amor e respeito, apesar dessas, digamos, "travessuras".

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    1. Aqui em Montes Claros, também dizemos mulherengo. Mantive a palavra com a qual Rosa qualificou seu marido por ter sido inventada por ela. O texto foi publicado no jornal de Goiânia Diário da Manhã e o editor, equivocadamente, mudou no título para "Homem mulherengo". Obrigada por comentar, Edir.

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  2. Esse tipo de patriarcado sexual tolerado ainda impera, e mais do que imaginamos. Bom texto, Mara. Bom continuar te lendo no ano que se inicia. Um abraço.

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