Homem
mulhezeiro
* Por Mara Narciso
O casal de idosos ainda reside na
roça e se dá bem. Os dez filhos são doutores em sua maioria, e alguns moram noutra
cidade. Poucos anos atrás, Zé caiu no quintal e machucou feio. Andando no
escuro, pisou em falso numa tábua e estropiou a cara e a perna. Foi trabalhoso
e custou um tempão para ficar bom. Rosa, sua esposa, esperta e bem falante,
cuidou dele com toda a paciência, e sua saúde está boa agora. Zé é caseiro, mas
não era assim. Na mocidade deu trabalho, e a expressão do título da crônica foi
dita por Rosa. Declarados, teve três filhos fora do casamento, com duas
mulheres, além dos de sua esposa. Ela relata como foi a vida a dois, ou a
quatro, ou a cinco, melhor dizendo.
Ainda jovens, já contavam com certo
recurso e uma pequena fazenda. Frequentavam o povoado mais próximo. Quando
meninos, os filhos viajavam quilômetros para estudar, enquanto as traquinagens
de Zé eram sabidas por todos. Ninguém falava nada, nem sua esposa se
movimentava para resolver o caso, até que uma vizinha disse a Rosa:
-Você devia por reparo no Zé. Ele
não sai da casa daquela lá.
Rosa sabia das visitas. Mal o sol
esfriava, o marido se banhava e desaparecia. Naquela casa nasceram duas
crianças que eram a cara de Zé. Autorizou à amante, desde o começo, a comprar
coisas, recomendando ao dono do armazém a entregar o que ela precisasse.
Bastava a mulher enviar um bilhete rabiscado, que os víveres lhe eram dados. Tempos
depois, começou a exagerar. Parecia que comprava para dar festa. Carnes em
cortes grandes, sem precisão, viraram rotina e vira e mexe o açougueiro chegava
à casa de Zé cobrando algo. Como o dono não estava, quem pagava em espécie era
sua esposa, mas os gastos excessivos começaram a incomodar Rosa.
- Zé, a mulher tá comprando coisa
demais e dando pros parentes dela. Cê tá sustentando os filhos e a parentalha.
Ontem mesmo tive de pagar uma contona do armazém. Cê precisa dar um jeito
nisso.
O marido, como era costume, não
falou nada, e silencioso, passou nas vendas e deixou sua assinatura no topo da
primeira página de um caderno, em cada uma delas. Ordenou aos donos que só
entregassem os produtos mediante confirmação da sua assinatura. Outras compras
estavam desautorizadas e não seriam pagas. Chegando um bilhete, era fazer como
cartório ou banco: ir ao arquivo e reconhecer a firma. Assim, botou termo no
consumo da segunda família.
Outro problema com que se
preocupar, Rosa não tinha. Dura na criação dos filhos, trazia a prole sob
controle. O dinheiro dava para os gastos da grande família, até que mais um
filho nasceu noutra casa e não seria o último. Zé saia da casa de uma e
encarava a outra. Parecia nunca perder a energia.
Numa ocasião, foi visitar uma
amante e lá encontrou dois homens que também se utilizavam dos serviços sexuais
da mulher. Foi um corre-corre com direito a facadas, e por pouco Zé não perde a
vida. Entrou sem faca e desarmado de espírito, pois se considerava o único
homem daquela casa, onde teria nascido seu 13º filho.
Queixar-se raramente, até que
Rosa se queixava, mas não se perdia no labirinto dos sentimentos, apenas nas
coisas de ordem prática. Gosta do
marido, estão juntos há 60 anos, e vivem mal quando afastados por alguma
contingência. Quando ela viaja para tratamento, Zé conta os minutos para ela
voltar. Quase chora. Seria saudade? Sertanejos não perdem tempo com molezas.
Aos olhos de hoje, não é fácil
entender os meandros de hábitos de algum tempo atrás. A grosso modo, lembram costumes
medievais, de sociedades regidas por antigas tradições, que ainda estão de pé
em países do Oriente Médio. O diferente choca, neste caso em particular, por
ser fato relativamente recente e vivo na memória dessa guerreira. Rosa venceu a
concorrência e ficou com seu homem. Hoje tem Zé só para si, um troféu ao
alcance da sua mão, para o seu prazer e equilíbrio. O caso serve para pensar
sobre a insolubilidade do casamento e seu mantra: que o homem não separe o que
Deus uniu.
*Médica endocrinologista,
jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto
Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Aqui pelo interior do estado do Rio se diz "mulherengo", mas isso não vem ao caso. Sua crônica me seduziu e não consegui desviar os olhos. Adorei o desfecho: "Rosa venceu a concorrência" e eu diria: Não foi "descartável" como as outras. Isso que importa.
ResponderExcluirDepois de ler acorreu-me à mente que há alguns personagens bíblicos que coabitavam com outras mulheres, chamadas "servas", mas a verdadeira esposa era tida em alto grau e bom conceito, em profundo amor e respeito, apesar dessas, digamos, "travessuras".
Aqui em Montes Claros, também dizemos mulherengo. Mantive a palavra com a qual Rosa qualificou seu marido por ter sido inventada por ela. O texto foi publicado no jornal de Goiânia Diário da Manhã e o editor, equivocadamente, mudou no título para "Homem mulherengo". Obrigada por comentar, Edir.
ExcluirEsse tipo de patriarcado sexual tolerado ainda impera, e mais do que imaginamos. Bom texto, Mara. Bom continuar te lendo no ano que se inicia. Um abraço.
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