Não chores por mim, Argentina
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Niños
del mundo, si cae Argentina - digo, es un decir -
salid,
niños del mundo; id a buscarla!(*)
Quem vai cair neste
domingo épico no Maracanã? Os brasileiros estão divididos, mas não é entre
Alemanha e Argentina. Não! Aconselho os alemães a desconfiarem das vaias e dos
aplausos. Não há brasileiro contra nem a favor da Alemanha, sequer um mísero
torcedor. É que Hans e Fritz, embora batam um bolão, não despertam paixões em
nós. Nossa paixão é azul e branca. Uma parte do Brasil torce CONTRA a
Argentina. A outra, a FAVOR da Argentina. Só ela estará em campo. A Alemanha é
apenas um detalhe. Podia ser o Kudumundistão, que não seria diferente.
É uma rixa velha. Para
a torcida brasileira, o jogo não é entre as seleções dos dois países, mas entre
Amor x Ódio à Argentina. Há muitas razões para amar os hermanos. Escolho cinco
nos campos da música, literatura, cinema, história e futebol. E uma forte razão
para odiá-los: o ethos nacional.
Começo por onde? Ah, a
música! Fica deslumbrado com a Argentina quem ouviu Mercedes Sosa, frágil como
um segundo, cantar o clássico chileno de Violeta Parra Gracias a la vida com Chico,
Caetano, Milton e Gal. Ou quem escutou La Lunita Tucumana de Atahualpa
Yupanqui.
O amor pela música
argentina é um patrimônio compartilhado por qualquer latino-americano que tem o
privilégio de conhecê-la. Numa noitada em Santa Cruz de La Sierra, vi engenheiros
bolivianos da Petrobrás chorarem com a lembrança de "un pueblito aqui,
otro más allá" – de Catamarca - e despirocarem ao cantar guitarra nochera
dos saltenhos Los Chalchaleros:
- Mojada de luz, es mi
guitarra nochera, ciñendo voy tu cintura encendida por las estrellas.
O velho amor
São tantos os ritmos:
tango, milonga, chacarera, chamamé, gato, cueca, samba – sim, eles têm até
samba, que lá é feminino. O Brasil certamente torceria pela Argentina se, no
lugar do hino nacional - "al gran pueblo argentino, salud!" - os
jogadores entoassem no Maracanã a Zamba de la Candelaria, de Eduardo
Falú,nascida na boquinha da noite, “cuando la luna lloraba astillas de plata la
muerte del sol”. Ou Caminito. Ou ainda a Tonada del viejo amor: “no tengo miedo
al invierno con tu recuerdo lleno de sol”.
Descobri, numa peña em
Buenos Aires, que o bairro de Aparecida e toda Manaus cabiam dentro de Santiago
del Estero ouvindo Como um pájaro en el aire de Cuti e Roberto Carabajal. Lá
estava dona Elisa e suas proezas culinárias:
- As mãos de minha mãe / parecem pássaros no ar
/ Histórias de cozinha / entre suas asas feridas de fome.
Não foi sequer preciso
recorrer a Gardel, o Martín Fierro do tango, para fazer um golaço na arena da
música. No placar: Amor pelos argentinos 1 x 0 Ódio. O jogo podia terminar
aqui, mas está apenas começando.
No meio de campo da
literatura, os argentinos têm muitos craques que nos fazem amá-los. O maior
deles, Jorge Luis Borges, romancista e poeta, produziu uma obra que contém todo
o fervor de Buenos Aires e a história universal da infâmia: fantasias,
delírios, jogos de espelhos, labirintos, sendeiros que se bifurcam. Cego e
poeta, via no escuro, e assim sempre acertava o gol como em El Aleph com suas
metáforas em histórias inventadas. Fazia com as palavras o que Messi faz com a
bola: criava.
Nos anos 1960, o sonho
de todo latino-americano era viver em Paris para escrever como o
"cronópio" Júlio Cortázar, o
outro craque argentino que lá morava e que criou tantos personagens
inesquecíveis que jogavam amarelinha: Horácio, a distraída Maga e seu filho
Rocamadour, Morelli, Perico Romero e tantos outros. Um dia, em 1972, ouvi
Cortázar falar num Congresso de Literatura Latino-americana nos arredores de
Paris, na Abadia de Royaumont, organizado por Jacques Leenhardt, nosso
professor de sociologia da literatura. Foi nesse encantamento que redimensionei
a minha, a nossa identidade. Somos todos cronópios.
Ernesto Sábato, com seu
desconcertante informe sobre os cegos; Bioy Casares, o inventor de Morel, e
Ricardo Piglia com nome falso e respiração artificial seriam escalados em
qualquer seleção literária do planeta, da mesma forma que Juan Gelman, esse
filho de judeu ucraniano, cuja poesia tem ironia, humor, amor – Amor que serena, termina? – e está marcada
pela dor e pela morte. Lutou contra a ditadura militar que assassinou seu filho
e viveu como "um esperançoso sem remédio". No campo da literatura, o
segundo gol: Amor 2 x 0 Ódio. Terminou o primeiro tempo.
Locas de Mayo
O segundo tempo começa
com a história recente. Um pênalti contra o ódio. Os argentinos prenderam os
torturadores, incluindo ex-presidentes e generais de quatro estrelas.
Reconquistaram a sua história roubada. Golaço: 3 x 0 para o Amor aos hermanos.
Às vezes, é preciso conciliar, nesse caso não chame argentinos, mas brasileiros
- e essa parece ser uma virtude nossa. Mas se for pra sair pro pau, chamem um
argentino - essa é a virtude deles. As benditas locas de Plaza de Mayo não me
deixam mentir. É o que chamamos popularmente de raça. Quando no Monumental de
Nuñez, em 1993, a Colômbia derrotou a Argentina por 5 x 0, os hermanos morreram
lutando com garra até o último minuto.
O quarto gol é no campo
do cinema. Se você quer torcer neste domingo contra o adversário da Alemanha,
não veja nenhum filme argentino, porque você ficará enfeitiçado. Os hermanos,
com pouca grana, estão fazendo filmes de tirar o fôlego. Não foi por ação
marqueteira que O Segredo dos seus olhos ganhou o Oscar de Melhor Filme
Estrangeiro de 2010. A História oficial, Nove Rainhas, Buenos Aires na era do
amor virtual são obras primas, sem falar na delicadeza de Kamchatka, que narra
as lembranças de uma criança, cuja família é perseguida pela ditadura.
Os que torcem contra a
Argentina podem alegar que os filmes são geniais, mas que eles tem um único e
solitário ator: Ricardo Darín. E eu vos digo que é verdade, mas que eles não
precisam de mais nenhum ator, porque Darín vale por mil.
Finalmente, vem o
quinto e último gol que acontece no campo do futebol. Aqui pra nós, falo bem
baixinho, que eles não nos ouçam para não inflar ainda mais o ego, mas quem
gosta de ver belas jogadas, ama os argentinos. Maradona e Messi são dois gênios
que deram muita alegria, como Garrincha e Pelé. Amor 5 x 0 Ódio á Argentina.
Aos 45 minutos do
segundo tempo, nasce o gol de honra na grande área do ethos nacional. Os
hermanos são pretensiosos, arrogantes, desabusados, cheios de empáfia,
marrentos – dizem as más línguas. Já perguntei a amigos latino-americanos,
autores de tais acusações, se os argentinos que conhecem se enquadram nesse
perfil. A resposta é sempre: "no, ese es diferente, es mi argentino".
Formulei, então, a tese de que argentinos em abstrato são arrogantes, mas os de
carne e osso são afáveis e doces.
Exatamente como meu gato León, que se acha independente, mas não é de
porra nenhuma.
- Qué raro, che! A
gente pensa exatamente o contrário: o brasileiro genérico é divertido, alegre,
extrovertido, mas o concreto é uma porcaria - me disse um argentino de
brincadeirinha, só pra sacanear.
e qualquer forma, o
bandeirinha não considera impedimento o fato de os hermanos concretos
cultivarem como ninguém o dom da amizade pessoal. O juiz valida o gol. O jogo
terminou: Amor 5 x Ódio 1.
Os cronópios
Com tal resultado,
neste domingo, estarei torcendo apaixonadamente pela Argentina em lunfardo.
Afinal, como já cantou Belchior, sou "apenas um rapaz
latino-americano". Podeis obtemperar que os imigrantes alemães deram uma
cor nova ao Brasil, que a Alemanha tem créditos para ser amada, com um timaço
de primeira nos campos citados: Wagner, Goethe, Thomas Mann, Brecht, Marx,
Engels, Hegel, Rosa Luxemburgo, Murnau, Fritz Lang, Fassbinder, Dietrich - o
Gerhard, mas também a Marlene de Anjo Azul con sua sensualidade e sua voz rouca
e até os artilheiros Müller e Klose.
É verdade, mas os
alemães são "famas" - ordenados, disciplinados e realistas, planejam
tudo. Já os argentinos são "cronópios" como nós - sonhadores,
criativos e anárquicos: improvisam tudo. Por isso, os bairros populares da
América Latina, com toda sua diversidade de cores, não se encaixam nesta Alemanha austera e
sisuda, mas cabem inteirinho dentro desta Argentina briosa.
Esta declaração de amor
aos hermanos não impede que em 2018, na Rússia, a gente não queira comer o
fígado deles. Por isso quero que ganhem no Maracanã: sei que se vitoriosos
ficarão in-su-por-tá-veis, mas vai ser um prazer esmagá-los como tricampeões em
Moscou.
Agora, se a Argentina
perder no Maracanã - digo, é uma forma de dizer e bato três vezes na madeira
toc toc toc - ah, se a Argentina
perder, meninos do mundo, ide a
salvá-la.
P.S. - Errata: há
brasileiros torcendo pela Alemanha que, aliás, merece o carinho dos meus amigos
luteranos do Rio Grande do Sul e dos pomeranos da Giralda Seyferth, da
Charlotte Emmerich e do Ismael Tressmann.
________
(*) Apropriação
indevida do poema España aparta de mi este cáliz (1937) do peruano César
Vallejo sobre a guerra civil espanhola. A versão original: Niños del mundo, si
cae España - digo, es un decir - salid, niños del mundo; id a buscarla!
* Jornalista
e historiador
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