Cinquenta anos que continuam doendo muito
* Por
Amilcar Neves
—
Você vê a situação indo para onde deveria? Acha aconselhável que façamos uma
intervenção militar? — pergunta o presidente dos EUA, John Fitzgerald Kennedy.
—
Essa é uma outra categoria, que eu chamo de "contingência perigosa
possivelmente requerendo uma ação rápida". Esse é o principal problema —
responde Lincoln Gordon, embaixador dos EUA no Brasil.
Conversa gravada em 7
de outubro de 1963 no Salão Oval da Casa Branca, sede oficial do governo
estadunidense. O assunto é o Brasil.
Alguns primórdios – sem
organização didática nem pretensão de esgotar o assunto
No segundo semestre de
2013 estive em uma escola pública municipal de Florianópolis. Convidado por
professores dentro de um programa de divulgação de escritores locais promovido
pela Secretaria da Educação, fui conversar com os alunos que haviam lido um
livro de minha autoria. A obra é um texto para teatro que faz referências
diretas ao período autoritário vivido pelo País durante a ditadura militar
brasileira, hoje mais apropriadamente chamada de ditadura civil e militar, pois
em verdade os militares, que assumiram os ônus do golpe, do governo e dos
diversos atos institucionais, um mais drástico e restritivo do que o anterior,
nada mais foram do que ingênuos servidores de interesses privados de grandes
grupos empresariais brasileiros, tanto da indústria, do comércio e da
agricultura quanto dos meios de comunicação, da classe média e das grandes
fortunas. Evidentemente que, muitas vezes, um mesmo indivíduo ou empresa
encaixava-se em mais de uma dessas classificações que abrigaram os golpistas,
em 1º de abril de 1964, e os beneficiários da grande festa restrita que foram
os 21 anos de 64 até 85.
O pior de tudo é que os
conspiradores, sabe-se hoje a partir de documentos inquestionáveis liberados
pelo governo dos EUA, tinham plena consciência de que agiam sob a cobertura
confortável do dinheiro e da máquina de guerra dos Estados Unidos (dinheiro de
cuja prestação de contas, alertava o próprio embaixador dos EUA no Brasil ao
seu presidente, não se poderia esperar qualquer transparência – pois a
corrupção nestes trópicos já era prática antiga, em especial por parte de
alguém que se vendia para atraiçoar o País). Ou seja: traíram a Pátria em favor
de uma potência estrangeira por conta de pretextos sabidamente esfarrapados, de
quimeras que foram exaustivamente difundidas pela imprensa estabelecida e pelos
canais alternativos existentes ou criados à época. Nos meus quinze anos de idade
em 1962, na minha insignificância de pequeno líder estudantil na distante
cidade de Tubarão, no Sul do Estado, na inexpressividade das minhas primeiras
crônicas lidas em programas estudantis nas duas rádios locais, Tubá e Tabajara,
recebi muito boletim colorido em verde e amarelo, impresso em papel cuchê de
alta qualidade, diagramado com excelência profissional, editado pelo IBAD.
Nesses periódicos pregava-se descaradamente a conspiração, advogava-se a
derrubada do governo, ridicularizava-se a pessoa do Presidente e aviltavam-se
as instituições republicanas de um país livre e soberano, regido por uma
Constituição legitimamente escrita, cujo povo votava regularmente em eleições
universais livres e democráticas.
O Instituto Brasileiro
de Ação Democrática (IBAD), voltado à propaganda intensiva, repetitiva, de
massa, foi criado em 1959, enquanto seu primo-irmão, e bastardos ambos, o
Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), é de 1962. Este preparava o
caminho junto às empresas e aos empresários em geral, procurando dar um tom
científico ou acadêmico às catástrofes que anunciava caso o País não mudasse de
rumo: ou seja, caso não se derrubasse um governo que ensaiava tornar-se
independente dos interesses dos EUA – uma novidade, esta, a qual, fora o caso de
Cuba exatamente em 1959, surgia no continente americano e passava a ser
intolerável: não se poderia admitir um País "amigo", do tamanho do
Brasil, abrigado no quintal da grande nação do Norte, com pretensões ao não
alinhamento, isto é, à busca de um caminho próprio que não se subordinasse
diretamente a qualquer dos polos que então dilaceravam o planeta com a Guerra
Fria: Estados Unidos e União Soviética. Dividido o mundo em duas partes mais ou
menos iguais, não cabia espaço para uma terceira via, independente e preocupada
com os interesses nacionais e do seu povo. Só haveria de haver vida sob uma das
duas bandeiras.
A crueldade das prisões
arbitrárias, das cassações de mandato dos opositores, do fechamento de jornais,
da censura generalizada à imprensa, da suspensão dos direitos individuais e das
garantias constitucionais, da supressão da liberdade, da submissão da Justiça,
do fechamento do Congresso, das torturas medievais, das mortes cruéis, dos
sequestros e dos desaparecimentos de pessoas, grande parte delas sumida até
hoje, que se seguiu àquele 1º de abril são histórias que só não conhece quem
não quer e só não se sente enfurecido e revoltado contra seus autores quem
esconde interesses escusos e abriga vantagens auferidas às custas do sangue e
da dignidade de brasileiros.
A memória coletiva que
vai ficando
Naquele início de tarde
numa escola do Norte da Ilha de Santa Catarina, a professora de Literatura me
recebeu com evidente satisfação por ter um escritor ao vivo em sala de aula
para conversar com seus alunos. Ela se achou no dever de informar que
solicitara a colaboração do professor de História – e apressou-se a nos
apresentar um ao outro. E explicou:
- É muito importante
isso que o senhor escreve sobre os fatos históricos do Brasil, os estudantes
precisam entender bem o que aconteceu e que o senhor relata com força e
precisão. A gente conhece isso tudo que houve, mas, sabe como é, com as tarefas
do dia a dia nem sempre se consegue lembrar dos detalhes, das datas, dos
personagens... Por isso pedi a ajuda do nosso professor de História para
esclarecer os acontecimentos aos nossos alunos, acho que foi uma boa ideia, não
acha?
Acho, sim, disse-lhe
que achei muito bom, até mesmo porque o interessante em uma obra literária é
exatamente essa multiplicidade de disciplinas que ela abarca, essa
possibilidade de discutir diversos temas do conhecimento e da experiência
humanos. Mas me assustei na hora. Pensei cá comigo: como então um professor de
colégio, seja de que matéria for, não se encontra em condições de discutir com
clareza e pleno conhecimento de causa golpe e ditadura no Brasil e na América
do Sul? Verdade que 50 anos estão (estavam, na época) prestes a transcorrer
desde aquele momento em que os militares rasgaram a Constituição e se
insubordinaram contra seu comandante em chefe, o Presidente da República. Para
a caserna, uma das faltas mais apavorantes é a quebra da sagrada hierarquia – e
eles próprios violaram esse princípio de respeito e acatamento da autoridade ao
destituírem, com o apoio declarado de um país estrangeiro, o Chefe da Nação.
Além desse ato de insubordinação e desrespeito às regras castrenses e aos
preceitos constitucionais, mandaram para a geladeira da reserva, ou mesmo
prenderam e expulsaram das Forças Armadas, centenas de oficiais, de patentes
superiores ou inferiores, que se posicionaram francamente contrários à
arbitrariedade cometida – pois havia militares democratas no Exército, na
Marinha e na Aeronáutica, mas este tipo de soldado, incomodado com a
ilegalidade dos atos praticados, não servia aos propósitos do grupo que
assaltou o poder e submeteu a Nação ao arbítrio e à violência.
Assustei-me ao
perceber, nas palavras da boa e bem-intencionada professora, um sintoma grave
que certamente se espalha gradativamente pela sociedade brasileira: a perda da
memória dos acontecimentos trágicos vividos desde 1964 até 1985, com a
consequente possibilidade de que algo semelhante viesse, ou venha, a se
repetir, para desgraça geral e benefício de uma minoria já injustamente
privilegiada. Para quem prega a necessidade do conhecimento dos fatos de
cinquenta anos atrás para evitar que eles tornem a acontecer, a amnésia social
é uma tragédia. O curioso é que aceitamos pacificamente a condenação de Hitler
e do nazismo, pelas barbáries cometidas por eles, mas não conseguimos enxergar
com os mesmos olhos as barbáries cometidas contra o povo brasileiro, e muitas
vezes encontramos gente que defende o que houve, pregando um novo golpe de
Estado com nova ditadura militar como solução mágica para os males que nos
afligem.
Arautos dos "bons
tempos" reescrevem a História
A coisa talvez seja
mais séria do que se pensa. Há um senhor, de nome Marco Antonio Villa, que
publicou um livro pela Editora Leya neste início de 2014. Tem por título
Ditadura à Brasileira – 1964-1985: A Democracia Golpeada à Esquerda e à
Direita. Villa é doutor em História e professor do Departamento de Ciências Sociais
da Universidade Federal de São Carlos. Ele afirma ter sido sempre contrário ao
golpe. Uma das teses que defende em sua obra é que não houve ditadura no Brasil
antes de 1968, quando foi assinado o famigerado Ato Institucional nº 5, que
aprofundou o despotismo, nem depois de 1979, quando, pressionada pelos
acontecimentos, a ditadura inventou e impôs uma Lei da Anistia que permitia a
volta ao Brasil dos exilados e refugiados, mas, acima de tudo, isentaria para
todo o sempre os assassinos do regime que torturam, mataram e sumiram com
opositores: alguns que pegaram em armas contra os usurpadores do poder, outros
que cometeram o gravíssimo crime de ter opinião discordante e por denunciarem
os abusos e irregularidades. Com esse artifício, Villa reduz a nossa ditadura
para 11 anos e corta, de um só golpe, 10 anos de arbítrio e o próprio golpe de
64.
O que assusta em Villa,
um suposto pensador acadêmico, é sua absoluta falta de isenção para analisar a
História e debruçar-se sobre eventos do passado e do presente. Basta buscar por
ele na Internet e ler apenas os títulos dos artigos que escreve
sistematicamente para O Estado de São Paulo e O Globo, dos debates dos quais
participa frequentemente na Veja e na Globo News, e dos comentários semanais
que grava para a Rádio Metrópole, de Salvador. Além disso, com tantos
compromissos rotineiros, custa crer que lhe sobre um mínimo de tempo sequer
para dar uma aula no interior de São Paulo.
Villa, porém, é
historiador, especialista e membro do Instituto Millenium (IMIL), mantido pelos
grupos Abril (comunicação), Gerdau (siderurgia) e Pottencial (seguros). O IMIL
tem sido extremamente bem sucedido no seu empenho de fabricar pensadores
"jovens" e "independentes" que critiquem a ditadura
passada, defendam os valores conservadores e as virtudes do mercado, e invistam
acidamente contra a figura do (ou da) Presidente da República (ou seja, contra
o Executivo), contra os políticos em geral (ou seja, contra o Legislativo),
contra os defensores do meio ambiente (ou seja, contra a sociedade civil que
pensa em formas alternativas de vida) e contra juízes de todos os graus que
contrariem suas vontades (ou seja, contra o Judiciário) – promovem a
desmoralização das instituições democráticas como forma de aniquilamento de
resistências a fim de justificar e possibilitar um novo golpe, um novo 1964.
Villa não está só. Há
dezenas de exemplos. Como o caso de Reinaldo Azevedo, blogueiro e colunista da
Veja, que descobriu a tradução correta da frase citada na epígrafe deste artigo
e que, segundo ele, muda totalmente o sentido da conversa e da História. De
acordo com suas pesquisas, o que Kennedy fala para Gordon é:
— Você vê uma situação
iminente em que nós poderíamos considerar conveniente intervir militarmente?
Parece-me que a ideia
de intervenção militar no Brasil permanece viva e igualmente afrontosa em ambas
as versões. Conforme o sítio do IMIL, Azevedo é Convidado (seja lá o que isto
signifique) do Instituto Millenium.
A razão da dor
semissecular
Essa dor de meio século
nasce de uma ferida que ainda não fechamos porque não respeitamos os fatos
objetivos da História (ainda que um indivíduo possa se colocar à margem da Lei,
não é dada em hipótese alguma ao Estado, nem aos seus agentes, e especialmente
se estiverem armados, a opção de violar a Lei): trair o País é crime, derrubar
um governo legítimo e democrático é crime, manter alguém preso sem processo,
sequestrar, torturar e matar pessoas são crimes. Enquanto não encararmos de
frente essa realidade, responsabilizando ainda que seja a memória dos
criminosos, estaremos mantendo e aprofundando a divisão da sociedade
brasileira.
Para construir uma
visão geral da História
Aos que gostam de ler,
um excelente ponto de partida é o livro A Ditadura Militar no Brasil – A
História em cima dos fatos, publicado em 2007 na forma de fascículos pela Caros
Amigos Editora.
Aos que preferem ver, a
indicação é o didático e incontestável documentário O Dia que Durou 21 Anos,
dirigido por Camilo Tavares e lançado em 2012.
Aos que usam teclar, a
dica é ir até http://app.vc/ditadura_na_memoria1, baixar gratuitamente o app
Ditadura na Memória, desenvolvido por alunos do Colégio I. L. Peretz, em São
Paulo, e navegar no smart ou no tablet pela História recente do Brasil. Para
não esquecer jamais.
Conversa gravada em
abril de 1962 entre o presidente John Kennedy (assassinado no ano seguinte) e
Lincoln Gordon.
—
Podemos fazer algo contra Goulart? — pergunta o presidente.
—
Sim, acho que podemos — responde o embaixador.
* Amilcar Neves é escritor com oito livros de
ficção publicados, alguns dos quais à venda no sítio da TECC Editora, em http://www.tecceditora.com. A
partir de 26 de agosto de 2013 integra o Conselho Estadual de Cultura, na vaga
destinada à Academia Catarinense de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 32.
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