Você é mulher, não entende nada de futebol!
* Por
Mara Narciso
Verdade, a mulher não
entende daquilo que não lhe interessa, mas caso queira aprender, qualquer
assunto é possível de ser retido na memória, mediante observação ou estudo.
Quando mal saí das fraldas, claro, não fui jogar futebol, mas passei a ouvir a
minha mãe Milena contar como foi dramático o dia 16 de julho de 1950, ocasião
em que ela tinha 16 anos. Foi a final da IV Copa do Mundo de Futebol,
acontecida no Brasil. Ela havia almoçado na casa do seu tio Antônio Carlos de
Souza Lima. Resolveu assistir lá o jogo entre Brasil e Uruguai. Seria ouvido
pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro.
Participariam desta
Copa Itália, Suécia, Suíça, Espanha, Iugoslávia, Inglaterra, Escócia, Brasil,
Uruguai, Chile, Paraguai, Bolívia, Estados Unidos, México, Turquia e Índia.
Seria aqui porque a Europa vinha sendo reconstruída após a 2ª Guerra Mundial, e
não houve nenhum outro país candidato. Getúlio Vargas vinha dando incentivo ao
futebol e o Maracanã, Estádio Jornalista Mário Filho, ter ficado pronto no ano
anterior. Três delegações desistiram. A Seleção Brasileira chegou a jogar
desfigurada no Pacaembu, e no final ficaram quatro seleções: Brasil, Uruguai,
Suécia e Espanha. Como o Brasil goleou dois adversários, ainda que a Seleção do
Uruguai detivesse o título de melhor do mundo em 1938, um misto de euforia e
presunção contra os vizinhos dava uma quase certeza de vitória do Brasil. O
primeiro da lista era nosso país e isso ampliou ainda mais a confiança, sendo
que o empate dava o título ao Brasil.
Apenas quem compreende
os espaços do campo com suas divisões, a escalação dos dois times para saber
para que lado vai se dirigindo a bola, os tipos de jogadas, além, obviamente
das regras, consegue se apaixonar e vibrar com um jogo, como foi o caso da
minha mãe, ouvindo a partida pelo rádio. Pelo estrago feito, pois ela voltou
para casa se arrastando, conforme me contou diversas vezes, como se os braços
estivessem pesados, e longos, encostados no chão, com os olhos inchados de
tanto chorar, posso deduzir, que, embora o clima de otimismo tenha feito a
cabeça de todos, ela gostava mesmo de futebol.
Para entender melhor o
sentimento dela, decidi ouvir a gravação completa do jogo fatídico, pela Rádio
Nacional do Rio de Janeiro, na voz do narrador Antônio Cordeiro. O som
engasgado e deteriorado pelos 64 anos, desde a audição do Hino Nacional,
considerado um ato de civismo, até a ovação da torcida inesquecível, de mais de
199 mil pessoas no estádio, foi melhorando aos poucos, eu também fui me envolvendo
com os fatos. Imaginar a cena do jogo pelo rádio exige mais do que atenção, é
preciso treino para se sentir o clima. Após o sorteio do campo, enfim, começa o
jogo.
A tensão da partida é
dada pelo tom do locutor, com sua linguagem pouco compreensível para os não
iniciados. Ele torce pelo Brasil, diante de uma falta contra o Uruguai, mas de
forma discreta. E vou ouvindo relíquias da linguagem futebolística. Lembro
algumas expressões e palavras tais como comandante do time, legado, dribles na
sequência, tiro livre, área penal, pegar forte, pelota rebatida, zagueiro
direito, recuperada pelo alto, vai levando a pelota. Outras: perigo para a meta
do Brasil, joga a pelota para fora, divisória do gramado, pronto para executar
a penalidade, ponteiro, bico da área, espetacular ação do arqueiro, cabeceada
infalível, bola na boca do gol, vantagem territorial, caído no terreno, cancha,
tiro de gol. Os verbos mais ouvidos foram: atrasou, devolveu, perdeu,
recuperou, bateu, pegou forte, contra-atacou e defendeu.
A publicidade é jogada
a todo instante: “De sensação em sensação, o prazer vai aumentando com Brahma
Chopp”, “Com Brahma Chopp, não precisa traduzir: É o carinho em garrafa”,
“Sabor de mais pureza, com Brahma Chopp em sua mesa”, “Ofereça aos seus amigos
o sabor de Brahma Chopp, a primeira palavra em cerveja”, “Não aceite uma
cerveja qualquer, exija Brahma Chopp”, “Em garrafa ou em barril, Brahma Chopp,
a cerveja preferida do Brasil”. Puros e ingênuos, jogados até mesmo na hora do
segundo gol do Uruguai.
Apesar da empolgação da
torcida, o Brasil faz muitas faltas e não marca gol na primeira etapa. Este
acontece no primeiro minuto do segundo tempo, marcado por Friaça, quando a
torcida naturalmente se empolga e grita mais. Após o gol do Brasil o narrador
aumenta sua alegria. Noutro momento, todo o quadro do Brasil estava na defesa.
Dezenove minutos depois vem o gol do Uruguai, de Schiaffino. O locutor diz que
“a defesa uruguaia é pesadíssima, chega violentamente e que o juiz assinalou um
impedimento”. Noutra hora, houve momento de pânico para a retaguarda
brasileira. O ataque uruguaio cabeceia pela linha de fundo, levando a um tiro
de gol para a equipe do Brasil, ficando a bola com o arqueiro brasileiro. Num
certo momento o guardião Máspoli quase faz um gol contra, pois ia chutar contra
sua própria rede. Mas se machuca, sendo interrompida a peleja. Depois um
jogador falhou e a pelota sobrou. Após uma cobrança pela direita, pelo nosso
poder ofensivo, ocorre um escanteio em favor do Brasil.
Aos 33 minutos do
segundo tempo acontece o segundo gol do Uruguai, de Ghiggia. O locutor não
culpa o goleiro. Há um grito seco e repetido de gol, sem uma anterior narrativa
de avanço do adversário pelo campo do Brasil. Como falta pouco tempo para o jogo
acabar, a Seleção Uruguaia prende a bola e cobra atrasando. A torcida,
contrariando a versão oficial do maior silêncio já ouvido no futebol, o
Maracanaço, vibra e torce até o fim. Também o locutor mostra-se profissional e
demonstra alguma animação. Ainda há um corner favorável ao Brasil no último
instante, mas é tarde demais. Terminada a partida, o selecionado brasileiro
some do campo, saindo chorando. O comentarista Jorge Cury elogia o jogo dos
uruguaios, afirmando que a peleja foi brilhante, disputada com entusiasmo, mas
os brasileiros não conseguiram fazer contra os adversários o que se esperava.
Antônio Cordeiro afirma que o espetáculo foi magnífico.
Os destaques desta copa
foram Roque Máspoli, Obdúlio Varela, Alcides Ghiggia, e Juan Schiaffino pelo
Uruguai, Ademir de Menezes, Zizinho, Jair da Rosa Pinto, e José Carlos Bauer,
do Brasil. O francês Jules Rimet, com a taça que leva seu nome debaixo do
braço, e certo que a entregaria ao Brasil, fica perdido, se irrita com a
invasão de fotógrafos, mas segue o cerimonial. O goleiro Moacir Barbosa, mesmo
sendo vice-campeão do mundo, e eleito pela FIFA como o melhor goleiro do
torneio, amargou críticas que o traumatizaram pela vida afora. Afirmou num
vídeo: “nunca houve silêncio maior do que aquele que eu ouvi. Havia um país, e
surgiu outro depois da derrota”. Sim, dá para entender o motivo do choro da
minha mãe, aos 16 anos, uma menina que começava a entender de dor e de futebol.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Que raridade, não sabia que existia esta gravação. Gostaria também de escutar e de certa forma participar, ainda que 64 anos depois e apenas por áudio, desse drama nacional. Ótimo texto, Mara.
ResponderExcluirEm qualquer lugar a gente lê coisas sobre esta partida. Para tentar entrar na história, li, mas principalmente ouvi este audio. Achei uma experiência interessante. Agradecida pela sua leitura e atenção, Marcelo. Agora, até 13 de julho, só se falará de futebol.
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