domingo, 22 de julho de 2012

Uma aprendizagem de leitura ou a maldição de escrever

* Por Anna Lee

Ganhei de um amigo o livro Diário de uma ilusão, de Philip Roth, autor que indevidamente quase não li. Em 2004, ele mereceu a canonização em vida. Sua obra começou a ser publicada na coletânea de clássicos Library of America – uma distinção feita normalmente aos grandes que já morreram há muito tempo, como Faulkner ou Melville.

Não fui merecedora do presente – uma “relíquia” resgatada num sebo da cidade – porque confessei a meu amigo que tinha apenas passado os olhos em Complô contra a América, no qual Roth constrói uma alegoria às avessas da história, a partir de questões tais como: e se Roosevelt tivesse perdido as eleições de 1940, que o credenciou ao terceiro mandato como presidente americano? E se o vencedor tivesse sido o piloto Charles Lindbergh, herói nacional, declarado anti-semita? A possibilidade de contar a história que jamais se passou, mas que poderia ter acontecido, despertou em mim interesse – que eu não soube prolongar – na obra de Roth.

Fui merecedora do presente porque meu amigo não pôde acreditar quando lhe contei que na minha mesa de cabeceira repousam atualmente cinco volumes: dois de Harold Bloom, Gênio e O Cânone Ocidental; um do Cortázar, O Jogo da Amarelinha; O Banquete, de Platão, que resolvi reler, e O Vôo da Madrugada do Sérgio Sant’Anna, também uma releitura. Ah! E ainda Cem Anos de Solidão que, just in case, sempre mantenho ao alcance das mãos, pois uma fugida para a Macondo do Gabriel García Márquez volta e meia se faz necessária.

Expliquei a ele que são esses os livros aos quais tenho me dedicado alternadamente, dependendo do humor e da disponibilidade de tempo para leitura. Limitou-se a balançar a cabeça e a resmungar a frase que tive dificuldade em compreender:
- Isso não é possível.

Coisa de uma semana depois, ele me apareceu com o Diário de uma Ilusão, que cheirava a mofo e tinha uma página marcada. Era a nº 54. No alto, a lápis, carregava a observação: “Essa página ensina a ler”. Havia um trecho sublinhado, também a lápis: “Precisaria eu de mais alguma coisa?
- Está tudo perfeito. Obrigado.

Lonoff fez uma careta ao levantar-se, pois sofria de lumbago por passar o dia inteiro jogando com frases. Disse que ainda precisava completar sua cota de leitura daquela noite. Não conseguia fazer justiça a um escritor a menos que o lesse em dias consecutivos, em sessões mínimas de três horas. Do contrário, a despeito de anotar e sublinhar as partes mais interessantes, perdia o contato com a vida interior da obra e desperdiçava o tempo. Às vezes, quando era irremediavelmente obrigado a falhar um dia, preferia voltar atrás e reler tudo do início a ser incomodado pela sensação de estar cometendo uma injustiça com um escritor dedicado.”

Não preciso dizer que nos dias seguintes, sem falhar sequer um, me dediquei religiosamente à “relíquia” que viera parar em minhas mãos. Não em sessões mínimas de três horas, mas no tempo suficiente para concluir a leitura em três dias. E o que resgatou o interesse que, antes, eu não conseguira prolongar em Complô contra a América não foi a aprendizagem de leitura proporcionada por Roth. Mas a descoberta de que escrever é uma maldição.

Isso se deu quando li o trecho em que o personagem Lonoff explica para o discípulo literário, Nathan Zuckerman, seu processo de escrita:

“Eu jogo com as frases. Eis minha vida. Escrevo uma frase e depois a altero. Em seguida, torno a lê-la e altero outra vez. Então, vou almoçar. Após o almoço, volto e escrevo outra frase. Mais tarde, tomo chá e altero a segunda. Depois, leio as duas e altero ambas. A seguir, deito-me no sofá e reflito. Levanto-me, jogo as duas frases na cesta de papéis velhos e recomeço tudo do princípio. Se me afastar dessa rotina por um só dia, fico frenético de tédio e sinto que desperdicei o tempo”.

Fui implacavelmente arremessada para a Clarice Lispector. Em A Descoberta do Mundo, no dia 14 de setembro de 1968, está registrado:

“Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. Não me lembro exatamente por que o disse, e com sinceridade. Hoje repito: é uma maldição, mas uma maldição que salva. Não estou me referindo a escrever para jornal. Mas escrever aquilo que eventualmente pode se transformar num conto ou num romance. É uma maldição porque obriga e arrasta como um vício penoso do qual é quase impossível se livrar, pois nada o substitui. E é uma salvação. Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada”.

Desde então, rogo aos céus que todo dia eu seja merecedora da maldição de escrever e da penitência de sessões de leitura mínimas de três horas. Que assim seja.


*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.

Nenhum comentário:

Postar um comentário