segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Um quê de ameaça e de revanche no ar

* Por Daniel Santos

Aconteceu dia desses de eu trabalhar até mais tarde que de costume e, depois, ao me encaminhar ao ponto de ônibus para regressar a casa, percebi que a população urbana modificara-se: em vez do pessoal dos escritórios e dos executivos, uma gente encardida saía de todos os cantos.

Descalços, maltrapilhos, no mais das vezes cabisbaixos, eles vinham para se servir dos restos. Raro emitiam uma frase inteira e se comunicavam por monossílabos roufenhos ou interjeições guturais que se esgarçavam na cartilagem da laringe com resultado quase medonho.

Dois deles e, com o passar dos minutos, uma pequena multidão, me observavam do outro lado da calçada. Sorriam entre si de maneira sinistra, encarvoada, mas fiz que nada percebi e dei graças a Deus, quando meu ônibus finalmente chegou, o motor resfolegante na iminência da fadiga.

Logo, deixávamos o centro da cidade e, não apenas cansado, mas ainda por força de um grande alívio, adormeci; por uns quinze minutos, talvez, E, ao acordar, já não reconhecia o itinerário, mas, a julgar pela indigência da paisagem, tomara o ônibus errado: estava na periferia!

Pessoas que à luz do dia se mostrariam cordatas no centro da cidade expressavam, àquela hora e naquele lugar, um quê de ameaça e de revanche. Estavam, afinal, em seu território, em grupos, sem qualquer necessidade de mostrar boa-educação e me sorriam com algum escárnio.

Poucas delas entraram no ônibus, que prosseguiu viagem. Quando o motorista retomou a estrada, perguntei-lhe se passaria pelo meu bairro e ele respondeu com gestos imprecisos. De qualquer forma, não saltei e, para minha felicidade, logo adiante, reconheci ruas próximas à minha casa.

Voltara, finalmente, ao meu sítio! Estava a salvo, recobrara a segurança, se bem logo ao saltar percebi que, sem me perder de vista, um dos passageiros anotava qualquer coisa. Meu endereço? Ou nada que me afetasse? O que fosse, apressei o passo e desapareci na primeira esquina.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

Um comentário:

  1. Possível mania de perseguição. A personagem sente e vê coisas, numa explanação típica de paranoia. Estranheza de si, dos outros e do ambiente. Finalmente foi salvo pela segurança do lugar conhecido. Um bom suspense, Daniel.

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