quinta-feira, 17 de maio de 2012

Ensebado


* Por Marcelo Sguassábia

Troco numa boa mil megastores de livros novos com cybercafés por um sebo mal arrumado e labirintuoso. Daqueles encravados nos centrões das metrópoles, com as paredes caindo aos pedaços como os volumes que abrigam. Até meados dos 80, nos sebos a gente só encontrava livros e revistas. Hoje tem vinis, CDs, fitas de vídeo e até DVDs. Muitos têm brinquedos usados, jogos de tabuleiro, vitrolas. Outros dividem espaço com brechó. Mas sempre sebos, honestos sebos, sem nenhum vendedor chato querendo te empurrar os últimos lançamentos.

O que frequento é muito grande, Pra dar uma espiada rápida em tudo vai pelo menos uma semana. Sério. Como a empreitada é longa, pelo comprido galpão há banquinhos espalhados pro pessoal se acomodar, além de umas duas ou três poltronas. Velhas, com o estofamento puído, mas um oásis pras suas costas depois de algumas horas naquela babel.

Embora o habitué do sebo seja, ou quase sempre aparente ser, muito tímido, nem todos têm o perfil do rato de biblioteca. Há o frequentador funcional, rápido e rasteiro. Esse tipo é pragmático e não gosta de antiguidade, vai lá porque é mais barato, geralmente está atrás de um livro específico pra faculdade ou coisa assim. “Tem? Vou levar. Não tem? Tchau”. Pronto. Sebo nas canelas.

O silêncio impera nos sebos, e isso às vezes é constrangedor. Dá pra escutar a respiração da pessoa na prateleira ao lado. E a consulta aos volumes vai aproximando fisicamente um freguês do outro. Aí a situação fica insustentável, parecida com o “efeito elevador”. Um dos dois acaba cedendo, indo ciscar em outras paragens até o outro desocupar.

Uma vez comprei um livrinho impresso em 1912. O carimbo da livraria, de Campinas, mostrava um número de telefone inacreditável: 27. As ligações, na época, inclusive as locais, eram via telefonista. “Senhorita, por favor, me liga no 36”. Parece morador de prédio falando no interfone com o porteiro.

Imagino a peregrinação daquele volume com o passar dos anos. Pode ter sido dado de presente pra filha mais nova de algum barão do café, que passou pro filho dela, que o doou a uma escola pública, que o emprestou a um aluno, que ficou com ele até vendê-lo ao sebo, em meio a um lote de outros 163 volumes. Quis o destino que estivesse agora aqui, a poucos metros das minhas fuças. E daqui a 100 anos, onde estará?

Não raramente se encontra, como marcador de página, algo devastadoramente íntimo. Veja esse bilhetinho, que veio no meu “Sagarana” de sebo:

“Pedro querido,

Às vezes dizemos besteiras sem pensar. Magoar você é a última coisa que quero nesse mundo. A comida está na geladeira, é só esquentar. Depois conversamos melhor.

Sua esposa, que muito te quer,

Odila Maria”

Odila Maria. Quem será, ou seria? Qual o motivo daquela briga, o que aconteceu e quando? Como era sua vida, a cor dos seus olhos e cabelos, onde morava? A vida lhe deu filhos ou acabou se separando do Pedro pra virar freira? Pode ter morrido tragicamente num acidente de carro, dias depois.

Dedicatórias de Natal, de aniversário, formatura. Páginas com anotações do leitor a lápis, trechos sublinhados. Às vezes umas manchinhas. Goiabada, purê de batatas, misto quente, bobó de camarão?

Na última visita levei 14 vinis. De “Vida Bandida”, do Lobão, até uma coletânea de Ismael Silva. Total de 53 reais. Faz por 50? Faço, claro. Se preferir tem redeshop. É, sebo hoje trabalha com débito automático e cartão de crédito. Mais: há grandes sebos de São Paulo e do Rio com portinha aberta na web. Tudo separado por assunto, descrevendo o estado do livro e ano da edição. E dá pra dar zoom na capa. Você escolhe, compra e entregam em casa.

Mas aí também não tem graça. O legal é banhar-se naquele mar de ácaros e escancarar os pulmões à deliciosa poeira. E foi entre um espirro e outro que pincei um DVD de “As Invasões Bárbaras”, Oscar de filme estrangeiro em 2004. No estojo alguém escreveu, em esferográfica verde: “ L’ Amitié. Notre chanson”. Pesquisei no You Tube. Apareceu uma espécie de clipe em preto e branco, de 1965 e produção rudimentar, onde Françoise Hardy canta “L’Amitié”, uma romântica canção que embala a cena final do filme de Denys Arcand. Acesse e emocione-se. Se for alérgico a ácaros, tudo bem. Pelo menos por enquanto eles não vêm pela internet.

• Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: www.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) www.letraeme.blogspot.com (portfólio)

Um comentário:

  1. A minha mãe tinha fobia de bactérias e nos contava histórias dos habitantes dos leprosários quando não havia tratamento para a hanseníase. Por total falta de que fazer, os doentes enviavam pelo correios cartas impregnadas de bacilos, pedindo ajuda. Então eu aprendi a temer objetos usados. Com a minha asma, seria difícil chegar perto dos ácaros. Nessa parte foi impossível não dar risada. Passear no sebo (nas canelas) foi um deleite. Parabéns, Marcelo! Nota dez!

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