quinta-feira, 31 de maio de 2012

Revanche dos suicidas


* Por Marcelo Sguassábia


Assis Valente, aquele gênio nem sempre lembrado da MPB, era o ídolo e a inspiração deles. Tinha um quadro em lugar de destaque na sede da associação, da qual era patrono oficial.

Para quem não sabe, Assis Valente tentou suicídio em 1941, saltando do morro do Corcovado. Na queda, quicou na copa de uma árvore, frondosa o suficiente para amortecê-lo e livrá-lo do sono eterno. O ex-futuro morto teve que administrar o próprio chabu, que rendeu-lhe não mais que umas costelas quebradas. Foi um caso único no até então 100% fatal cartão postal do Rio. Não bastasse ser uma figura conhecida na cena carioca de sua época, ganhou as páginas dos jornais no dia seguinte como o único sujeito a escapar da morte pulando do famoso morro. Viveu mais algum tempo, o suficiente para legar à humanidade mais algumas dezenas de obras-primas. Após nova empreitada cortando os pulsos, igualmente fracassada, partiu para a terceira tentativa em 1958 - esta certeira, ao pôr do sol na Praia do Russel, se contorcendo sob o efeito de um gole de guaraná batizado com formicida.

Como o autor de "Camisa Listada", aqueles homens, ali reunidos, carregavam o infortúnio de terem tentado e não conseguido dar fim à existência. Dividiam o peso da humilhação suprema: retornar do gesto abominável com o rabo entre as pernas. Situação constrangedora. Não bastasse o fracasso na vida, tinham fracassado também na morte.

Era vergonha demais, precisavam lavar a desonra com sangue, mostrando aos amigos e parentes que não mudaram de ideia e não se acovardaram. Longe disso: eram duplamente corajosos para buscarem, outra vez, o tão sonhado paletó de madeira.

Naquela assembleia ordinária, deliberaram um revide à altura. E bota altura nisso: os 324 metros da Torre Eiffel. Partiriam em excursão para Paris, os 21 frustrados suicidas, e saltariam de algum ponto menos vigiado do monumento em 3 grupos de 7 - de mãos dadas e no melhor estilo "um, dois, três e já!". Só não teriam muito tempo para ensaiar a coreografia macabra, sob risco de descobrirem e interceptarem o seu intento com o ostensivo esquema de segurança da torre.

Seria o primeiro suicídio sincronizado da história. Os saltos seriam filmados pelo guia turístico do grupo, também simpatizante da prática suicida mas ainda não suficientemente apto à derradeira atitude. A este caberia, ao fim do espetáculo, entregar a filmagem à imprensa, bem como os 21 envelopes com as últimas palavras dos herois aos remanescentes da raça humana.

Porém, o destino foi de novo caprichoso. Ao se afastar andando para trás, procurando um melhor ângulo para a foto, o guia acabou despencando sem querer, antes dos 21. Pronto: soou a sirene, a polícia foi acionada e a turma toda convocada para interrogatório, no inquérito para apurar a causa do acidente. Ficou adiada a revanche, e com ela a lavagem da honra.

Em tempo: já que falamos dele, fica a dica para conhecerem a fantástica obra de Assis Valente. Um legado que vai muito além do "Brasil Pandeiro", sua música mais executada. Grande Assis. Imortal, ainda que suicida.

• Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: www.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) www.letraeme.blogspot.com (portfólio)

3 comentários:

  1. Ah, Marcelo, como você bem sabe, eu adorei esse texto pela coragem e tudo que nele encerra. Copio e colo o que já disse sobre ele:Na nossa cultura ocidental vivemos como se a morte não existisse e quando tocamos no tema somos convidados a nos calar. Parabéns a Marcelo Pirajá Sguassábia que não só falou na morte, mas nela e no suicídio com uma graça séria, se é que isso é possível. Bom demais!

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  2. Olá Marcelo. Excelente texto sobre Assis Valente, este magnífico compositor. Foi interpretado também por grandes vozes da época como Orlando Silva, Altamiro Carrilho e muitos outros. “Tem Francesa No Morro”, foi um dos grandes sucessos gravado por Aracy Cortes.
    Foi um poeta, e como tal, não temia a morte. Foi encontrado no seu bolso seu último verso; "Vou parar de escrever, pois estou chorando de saudade de todos, e de tudo." Pois é, meu amigo... isso me fez lembrar uma citação do poeta José Félix; “O poeta nunca vive. Morre aos pedaços.”
    Edir Araujo - poeta e escritor independente... Forte Abraço !

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  3. Não vejo no suicídio um ato de coragem
    mas, de alguém que não sabe lidar com a vida que leva ou com aquilo que não pode mudar.
    Que essa revanche não logre sucesso.
    Abraços

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