O ser humano: porção consciente e inteligente da
Terra
* Por
Leonardo Boff
O ser humano
consciente não deve ser considerado à
parte do processo da evolução. Ele representa um momento especialíssimo da
complexidade das energias, das
informações e da matéria da Mãe Terra. Cosmólogos nos dizem que, atingindo
certo nível de conexões a ponto de criar uma espécie de um uníssono de
vibrações, a Terra faz irromper a
consciência e com ela a inteligência, a sensibilidade e o amor.
O ser humano é aquela
porção da Mãe Terra que, num momento avançado de sua evolução, começou a
sentir, a pensar, a amar, a cuidar e a venerar. Nasceu, então, o ser mais
complexo que conhecemos: o homo sapiens sapiens. Por isso, segundo mito antigo
do cuidado, de húmus (terra fecunda) se derivou homo/homem e de adamah, em
hebraico (terra fértil), se originou Adam — Adão (o filho e a filha da Terra).
Em outras palavras, nós
não estamos fora nem acima da Terra viva. Somos parte dela, junto com os demais
seres que ela também gerou. Não podemos viver sem a Terra, embora ela possa
continuar sua trajetória sem nós.
Por causa da
consciência e da inteligência, somos seres com uma característica especial: a
nós foi confiada a guarda e o cuidado da Casa Comum. Melhor ainda: a nós cabe
viver e continuamente refazer o contrato
natural entre Terra e Humanidade, pois é de sua observância que se garantirá a
sustentabilidade do todo.
Essa mutualidade
Terra-Humanidade é melhor assegurada se articularmos a razão intelectual, instrumental-analítica,
com a razão sensível e cordial. Damo-nos conta, mais e mais, de que somos seres
impregnados de afeto e de capacidade de sentir, de afetar e de ser afetados.
Tal dimensão possui uma história de milhões de anos, desde quando surgiu a vida
há 3,8 bilhões de anos. Dela nascem as
paixões, os sonhos e as utopias que movem os seres humanos para a ação. Esta
dimensão, também chamada de inteligência emocional, foi recalcada na
modernidade em nome de uma pretensa objetividade da análise racional. Hoje
sabemos que todos os conceitos, ideias e visões do mundo vêm impregnados de
afeto e de sensibilidade (M. Maffesoli, Elogio da razão sensível, Vozes,
Petrópolis, 1998).
A inclusão consciente e
indispensável da inteligência emocional com a razão intelectual nos move mais
facilmente ao cuidado e ao respeito da Mãe Terra e de seus seres.
Junto a esta
inteligência intelectual e emocional
existe no ser humano também a inteligência espiritual . Ela não é um dado
apenas do ser humano, mas, segundo renomados cosmólogos, uma das domensões do
universo. O espírito e a consciência têm o seu lugar dentro do processo
cosmogênico. Podemos dizer que eles estão primeiro no universo e depois na
Terra e no ser humano. A distinção entre o espírito da Terra e do universo e o
nosso espírito não é de princípio mas de grau.
Este espírito está em ação desde o primeiríssimo momento
após o Big Bang. Ele é aquela capacidade
que o universo mostra de fazer de todas as relações e interdependências uma unidade
sinfônica. Sua obra é realizar aquilo que alguns físicos quânticos (Zohar,
Swimme e outros) chamam de holismo relacional: articular todos os fatores,
fazer convergir todas as energias, coordenar
todas as informações e todos os impulsos para cima e para a frente de
forma que se forme um Todo e o cosmos apareça de fato como cosmos (algo
ordenado) e não simplesmente a justaposição de entidades ou o caos.
É neste sentido que não
poucos cientistas (A. Goswami, D. Bohm, B. Swimme e outros) falam do universo
autoconsciente e de um propósito que é perseguido pelo conjuntos das energias
em ação. Não há como negar esse percurso: das energias primordiais passamos à
matéria, da matéria à complexidade, da complexidade à vida, e da vida à
consciência que nos seres humanos se realiza como autoconsciência individual, e
da autoconsciência passamos à noosfera (Teilhard de Chardin), pela qual nos sentimos uma mente coletiva.
Todos os seres
participam de alguma forma do espírito,
por mais “inertes” que se nos apresentem, como uma montanha ou um rochedo. Eles
também estão envolvidos numa incontável rede de relações, relações estas que
são a manifestação do espírito. Formalizando, poderíamos dizer: o espírito em
nós é aquele momento da consciência em que ela sabe de si mesma, se sente parte
de um todo maior e percebe que um Elo misterioroso liga e re-liga todos os
seres, fazendo que haja um cosmos e não um caos.
Esta compreensão
desperta em nós um sentimento de pertença a este Todo, de parentesco com os
demais seres da criação, de apreço por seu valor intrínseco pelo simples fato
de existirem e revelarem algo do mistério do universo.
Ao falarmos de
sustentabilidade em seu sentido mais global, precisamos incorporar este momento
de espiritualidade cósmica, terrenal e humana, para ser completa, integral e potenciar sua força de
sustentação.
* Leonardo Boff é teólogo e autor de “Tempo de
Transcendência: o ser humano como projeto infinito”, “Cuidar da Terra-Proteger
a vida” (Record, 2010) e “A oração de São Francisco”, Vozes (2009 e 2010),
entre outros tantos livros de sucesso. Escreveu, com Mark Hathway, “The Tao of
Liberation exploring the ecology on transformation”, “Fundamentalismo,
terrorismo, religião e paz” (Vozes, 2009). Foi observador na COP-16, realizada
recentemente em Cancun, no México.
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