terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Literário: Um blog que pensa

(Espaço dedicado ao Jornalismo Literário e à Literatura)

LINHA DO TEMPO: Dez anos, onze meses e um dia de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Carnaval e Literatura.

Coluna À flor da pele – Evelyne Furtado, poema, “Amigos”.

Coluna Observações e reminiscências – José Calvino de Andrade Lima, artigo, “Os três poderes”.

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire, conto, “Subestimar é perigoso”.

Coluna Clássicos – Machado de Assis, crônica, “Crônica de Carnaval”.

Coluna Porta Aberta – Antonio Lobo Antunes, crônica, “Carnaval”.

@@@

Livros que recomendo:

“Poestiagem – Poesia e metafísica em Wilbett Oliveira” (Fortuna crítica) – Organizado por Abrahão Costa Andrade, com ensaios de Ester Abreu Vieira de Oliveira, Geyme Lechmer Manes, Joel Cardoso, Joelson Souza, Levinélia Barbosa, Karina de Rezende T. Fleury, Pedro J. Bondaczuk e Rodrigo da Costa Araújo – Contato: opcaoeditora@gmail.com  
“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas” Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Boneca de pano” - Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Águas de presságio”Sarah de Oliveira Passarella – Contato: contato@hortograph.com.br
“Um dia como outro qualquer” Fernando Yanmar Narciso.
“A sétima caverna”Harry Wiese – Contato:  wiese@ibnet.com.br
“Rosa Amarela”Francisco Fernandes de Araujo – Contato: contato@elo3digital.com.br
“Acariciando esperanças”Francisco Fernandes de Araujo – Contato: contato@elo3digital.com.br   
“Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br




Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

 


Carnaval e Literatura


A quantidade de livros, de escritores brasileiros, tendo por tema o Carnaval, causou-me grande surpresa. Não achava que havia tantos! Não deveria me surpreender, mas surpreendeu. Bastava que eu atentasse para alguns aspectos óbvios para não ficar tão surpreso. Afinal, ao lado do futebol, essa festa popular, tão combatida por alguns moralistas de plantão, não raro com razão por causa determinados aspectos negativos que tem (violência, licenciosidade etc.etc.etc.), mas abraçada por milhões, é, sem dúvida, uma das grandes paixões nacionais. E antecede em séculos à introdução do também apaixonante esporte bretão em nosso País. A forma como o brasileiro festeja o Carnaval é peculiar, já que esta festa pagã ocorre não somente nesta terra descoberta por Cabral, mas em várias outras partes do mundo, embora em nenhuma com a mesma paixão demonstrada por nós.

Eu estava ensaiando escrever uma crônica, com ostensivas críticas aos escritores brasileiros, por explorarem tão pouco esse tema, por se tratar de uma das principais, se não a principal manifestação cultural brasileira. Por desencargo da consciência, como sempre faço antes de criticar o que quer que seja, resolvi fazer uma breve pesquisa, para ver se tinha razão e se minha impressão era a correta. Não era! Em primeiro lugar, decidi dar uma olhada na estante da minha própria biblioteca. E, de cara, topei com dezenas de livros sobre o Carnaval, praticamente de todos os gêneros, de romance à poesia e de escritores consagradíssimos. Fiquei a princípio surpreso, por assim dizer, boquiaberto e na sequência fiquei constrangido com a minha falta de atenção em relação ao que leio. É certo que minha leitura é copiosa e variada e não raro perfaz uma média de três livros por semana. Mas... isso não justifica o fato de não haver atentado como deveria para os temas abordados nos livros que leio.

Em princípio, julgando tratar-se apenas de uma coincidência o fato de ter em minha biblioteca tantas obras literárias tratando do Carnaval, resolvi consultar escritores amigos. E não tardou para eu receber por e-mail muitas e vastas listagens elencando obras tratando dessa festa popular. Ainda bem que antes de redigir a tal planejada crônica, resolvi checar se estava certo sobre minha impressão inicial ao me propor a escrever a respeito. Escapei de cair em ridículo por muito pouco. Poderia, é verdade, não lhes revelar nada disso e simplesmente abordar a fartura de livros na nossa literatura tratando de Carnaval, como se fosse o maior “expert” no assunto. Porém, por uma questão de honestidade intelectual, faço esse “mea culpa” público, até porque, assim como eu, muitos intelectuais têm a mesma impressão que eu tinha antes de empreender minha pesquisa. Esta confissão, esclareço, não se trata de nenhum autolinchamento, mas de um alerta, tanto para mim mesmo quanto para terceiros, sobre a necessidade de sempre se apurar a veracidade daquilo sobre o que se vai escrever e, sobretudo, criticar.

Eu poderia citar, no mínimo, por baixo, uma centena de livros (e muito bons), tratando especificamente de Carnaval (e, reitero, de todos os gêneros), mas não o farei. Para não passar por mentiroso, todavia, relaciono, abaixo, alguns deles, na verdade dez, especificamente os volumes que tenho em minha biblioteca e que, portanto, já li (alguns com várias releituras) e dos quais não me lembrava, até me dar o trabalho de conferir. Não comentarei nenhum deles (não, pelo menos, hoje, embora talvez o faça oportunamente), pelo fato deste espaço não comportar tais comentários. Vamos, pois, ao meu seleto “top 10”:

NÚMERO 1 – “O país do carnaval” – Jorge Amado, romance, Companhia das Letras, 1931.

NÚMERO DOIS: “Orfeu da Conceição” – Vinícius de Moraes – tragédia carioca baseada no mito de Orfeu, Com´panhia de Bolso, 2013.

NÚMERO TRÊS – “Carnaval no fogo” – Ruy Castro, apaixonada crônica sobre a vida no Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 2000.

NÚMERO QUATRO – “Antes do baile verde” – Lygia Fagundes Telles, narrativas escritas ao longo de vinte anos (entre 1949 e 1969), Companhia das Letras, 2009.

NÚMERO CINCO – “Carnaval” – João Gabriel de Lima, romance, Editora Objetiva, 2006.

NÚMERO SEIS – “Carnaval de poesias”, Sérgio Gramático Junior, poesia, Editora Multifoco, 2010.

NÚMERO SETE – “Este mundo é um pandeiro – a chanchada de Getúlio a JK” – Augusto Sérgio, história das comédias cinematográficas de Carnaval produzidas no Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1989.

NÚMERO OITO – “O Carnaval dos animais” – Moacyr Scliar, contos, Editora Ediouro, 1968.

NÚMERO NOVE: “Carnaval brasileiro: o vivido e o mito” – Maria Isaura Pereira de Queiroz, pesquisa sociológica, Editora Brasiliense, 1993.

NÚMERO DEZ – “Na passarela do samba: o esplendor das escolas em 30 anos de desfiles de Carnaval no Sambódromo” – André Diniz da Silva e Diogo Cunha, história, Casa da Palavra, 2016.

Poderia citar dezenas, centenas de outros livros, alguns dos quais eu não tenho (mas que espero logo ter), como “O dia em que adiaram o carnaval”, de Luis Claudio Villafañe G. Santos; “O carnaval do jabuti”, de Walmir Ayala; “Aula de carnaval e outros poemas”, de Ricardo Azevedo; “Arlequim de carnaval”, de Ronaldo Correia de Brito; “Foi no carnaval que passou”, de Gustavo Malheiros e “Antologia de carnaval”, organizada por Wilson Louzada, entre tantos, e tantos e tantos outros. Cito, por fim, o livro “Passarela de sonhos”, de contos, todos de minha autoria. Este, porém, você, paciente leitor, não poderá ler, a menos que alguma editora se interesse por sua publicação. Até aqui, nenhuma se interessou (ainda). Ele permanece, portanto, inédito, ao alcance, somente, dos amigos mais íntimos e, claro, dos parentes que (ou se) o quiserem ler. Quem sabe algum dia... poderei anunciá-lo como meu novo lançamento! Quem sabe...

Boa leitura!


O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk   
Amigos


* Por Evelyne Furtado


Eu tenho um amigo que guardo na concha da mão.
Amigo de partida.
Amigo de chegada.
Amigo de sempre.
Eu tenho amigo-irmão.
Tenho amigos próximos
Amigos de meia-distância
Amigo que o mar separa, alojado no coração.
Amigos que me ouvem e amigo que tento ouvir.
Amigos de até logo e amigos (de talvez) nunca mais.
Amigos de ontem e de hoje formando minha canção


* Poetisa e cronista de Natal/RN.
Os três poderes


*Por José Calvino


A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) de número 300-A de 2008 trata da unificação dos salários dos policiais em todos estados do Brasil. Ora, se não unificar as polícias, como serão unificados os salários?

Bom, é notório que os três poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) infelizmente há anos estão corrompidos e que os cidadãos estão reféns dos desmandos de quem deveria defender seus direitos.

Os princípios democráticos em qualquer nação livre baseiam-se no senso de justiça de todas as instituições de governo, entre as quais deve existir respeito mútuo.

Assistimos, estarrecidos, as politicagens sobre a Operação Lava Jato, que investiga um esquema bilionário de desvio e lavagem de dinheiro envolvendo a Petrobras, empreiteiras...

A polícia Federal descobre esquema de lavagem de dinheiro a partir de avião que transportava o ex-governador que morreu após acidente de avião em Santos  cujo esquema foi feito por empresas fantasmas...? O esquema de corrupção e lavagem de dinheiro é antigo. No desvio do dinheiro do PAC, por exemplo, que denunciei em dezembro de 2013, cadê o Supremo Tribunal Federal?

Enfim, termino esta crônica com as palavras de Ingenieros:

“Os homens recusam-se a trabalhar e a estudar ao verem que a sociedade cumula de privilégios os ociosos e os ignorantes. E é por falta de justiça que os Estados se convertem em confabulações de favoritos e de charlatães, sempre dispostos a lucrar da pátria, mas incapazes de honrarem com obras dignas”.

*Escritor, poeta e teatrólogo pernambucano.Vejam e sigam Fiteiro Cultural: Um blog cheio de observações e reminiscências – http://josecalvino.blogspot.com/          


Subestimar é perigoso


* Por Eduardo Oliveira Freire


Desconfiava dos sedutores e belos, tinha medo de ser manipulado pela lábia deles. Só se envolvia com os feios e os pobres coitados.

Achava que assim estaria por cima e nunca seria enganado.

Entretanto, teve uma surpresa. A esposa desprovida de beleza roubou todo seu dinheiro, com ajuda de seu melhor amigo, que antes era seu capacho.

Concluiu que não são só com os indivíduos sedutores e lindos precisava ter cuidado, mas, inclusive, com o perigo de subestimar o outro, mesmo que seja aparentemente inferior ou sem atrativos.

* Formado em Ciências Sociais, especialização em Jornalismo cultural e aspirante a escritor - http://cronicas-ideias.blogspot.com.br/


Crônica de Carnaval


* Por Machado de Assis


4 de Fevereiro de 1894


QUANDO EU Li que este ano não pode haver carnaval na rua, fiquei mortalmente triste. É crença minha, que no dia em que deus Momo for de todo exilado deste mundo, o mundo acaba. Rir não é só le propre de l'homme, é ainda uma necessidade dele. E só há riso, e grande riso, quando é público, universal, inextinguível, à maneira de deuses de Homero, ao ver o pobre coxo Vulcano.

Não veremos Vulcano estes dias, cambaio ou não, não ouviremos chocalhos, nem guizos, nem vozes tortas e finas. Não sairão as sociedades, com os seus carros cobertos de flores e mulheres, e as roupas de veludo e cetim. A única veste que poderá aparecer, é cinta espanhola, ou não sei de que raça, que dispensa agora os coletes e dá mais graça ao corpo. Esta moda quer-me parecer que pega; por ora, não há muitos que a tragam. Quatrocentas pessoas? Quinhentas? Mas toda religião começa por um pequeno número de fiéis. O primeiro homem que vestiu um simples colar de miçangas, não viu logo todos os homens com o mesmo traje; mas pouco a pouco a moda pegando, até que vieram atrás das miçangas, conchas, pedras e outras. Daí até o capote, e as atuais mangas de presunto, em que as senhoras metem os braços, que caminho! O chapéu baixo, feltro ou palha, era há 25 anos uma minoria ínfima. Há uma chapelaria nesta cidade que se inaugurou com chapéus altos em toda a parte, nas portas, vidraças, balcões, cabides, dentro das caixas, tudo chapéus altos. Anos depois, passando por ela, não vi mais um só daquela espécie; eram muitos e baixos, de vária matéria e formas variadíssimas.

Não admira que acabemos todos de cinta de seda. Quem sabe não é uma reminiscência da tanga do homem primitivo? Quem sabe se não vamos remontar os tempos até ao colar de miçangas? Talvez a perfeição esteja aí. Montaigne é de parecer que não fazemos mais que repisar as mesmas cousas e andar no mesmo círculo; e o Eclesiastes diz claramente que o que é, foi, e o que foi, é o que há vir. Com autoridades de tal porte, podemos crer que acabarão algum dia alfaiates e costureiras. Um colar apenas, matéria simples, na mais; quando muito, nos bailes, um simulacro de gibus para pede com graça uma quadrilha ou uma polca. Oh! a polca das miçanga. Há de haver uma com esse título, porque a polca é eterna, e quando não houver mais nada, nem sol, nem lua, e tudo tornar às trevas, últimos deus ecos da catástrofe derradeira usarão ainda, no fundo do infinito, esta polca, oferecida ao Criador: Derruba, meu Deus, derruba!

Como se disfarçarão os homens pelo carnaval quando voltar a idade da miçanga? Naturalmente com os trajes de hoje. A Gazeta de Notícias escreverá por esse tempo um artigo, em que dirá:

Pelas figuras que têm aparecido nas ruas, terão visto os nossos leitores Onde foi, séculos atrás, já não diremos o mau gosto, que é evidente, mas a violação da natureza, no modo de vestir dos homens. Quando possuíam as melhores casacas e calças, que são a própria epiderme, tão justa ao corpo, tão sincera, inventaram umas vestiduras perversas, falsas. Tudo é obra do orgulho humano, que pensa aperfeiçoar a natureza, quando infringe as suas leis mais elementares. Vede o lenço; o homem de outrora achou que ele tinha uma ponta de mais, e fez um tecido de quatro pontas, sem músculos, sem nervos, sem sangue, absolutamente imprestável, desde que não esteja a da pessoa. Há no nosso museu nacional um exemplar dessa ridicularia. Hoje, para dar uma idéia viva da diferença das duas civilizações, publicam um desenho comparativo, dous homens, um moderno, outro dos fins do século XIX; é obra de um jovem por um dos redatores desta folha, o nosso excelente companheiro João, amigo de todos os tempos.

Que não possa eu ler esse artigo, ver as figuras, compará-las, e repetir os ditos do Eclesiastes e de Montaigne, e anunciar aos povos desse tempo que a civilização mudará outra vez de camisa! Irei antes, muito antes, para aquela outra Petrópolis, capital da vida eterna. Lá ao menos há fresco, não se morre de insolação, nome que já entrou no nosso obituário, segundo me disseram esta semana. Não se pode imaginar a minha desilusão. Eu cria que, apesar de termos um sol de rachar, não morreríamos nunca de semelhante cousa. Há anos deram-se aqui alguns casos de não sei que moléstia fulminante, que disseram ser isso; mas vão lá provar que sim ou que não. Para se não provar nada, é que o mal fulmina. Assim, nem tudo acaba em cajuada, como eu supunha; também se morre de insolação. Morreu um, morrerão ainda outros. A chuva destes dias não fez mais que açular a canícula.

De resto, a morte escreveu esta semana em suas tabelas, algumas das melhores datas, levando consigo um Dantas, um José Silva, um Coelho Bastos. Não se conclui que ela tem mais amor aos que sobrenadam, do que aos que se afundam; a sua democracia não distingue. Mas há certo gosto particular em dizer aos primeiros, que nas suas águas tudo se funde e confunde, e que não há serviços à pátria ou à humanidade, que impeçam de ir para onde vão os inúteis ou ainda os maus. Vingue-se a vida guardando a memória dos que o merecem, e na proporção de cada um, distintos com distintos, ilustres com ilustres.

Essa há de ser a moda que não acaba. Ou caminhemos para a perfeição deliciosa e terna, ou não façamos mais que ruminar, perpétuo camelo, o mesmo jantar de todas as idades, a moda de morrer é a mesma ... Mas isto é lúgubre, e a primeira das condições do meu ofício é deitar fora as melancolias, mormente em dia de carnaval. Tornemos ao carnaval, e liguemos assim o princípio e o fim da crônica. A razão de o não termos este ano, é justa; seria até melhor que a proibição não fosse precisa, e viesse do próprio ânimo dos foliões. Mas não se pode pensar em tudo.


Machado de Assis, crônicas publicadas em A semana. Machado de Assis, Obra Completa, vol. III. Editora Nova Aguilar.

* Poeta, romancista, cronista, contista, jornalista e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras.



Carnaval

* Por Antonio Lobo Antunes


O Carnaval eram homens vestidos de mulher, de lenço na cabeça, muito rouge na cara e enchumaces a fingir de peito, aos encontrões uns aos outros à porta das tabernas. Eram serpentinas atiradas das varandas por meninas solitárias mascaradas de espanholas, serpentinas que ficavam março, abril, maio a desbotar nos ramos das árvores até a chuva as levar. Era eu na matiné do São Luís, campino pindérico enrolado de vergonha no fundo de um camarote, a olhar de longe príncipes, fadas e polícias (as três únicas profissões que à época achava sublimes e ainda agora, no mais secreto de mim, continuo a achar) que se jogavam saquinhos, atafulhavam a boca uns dos outros de papéis coloridos, iniciavam namoros de rasteiras e puxões de cabelo (formas de dizer amo-te aos oito anos antes de complicarmos tudo com flores e rapapés) e desfilavam no palco, aplaudidíssimos, a receberem prêmios de bicicletas e caixas de bombons enquanto eu, campino reles, os seguia roído de admiração invejosa, lutando contra as lágrimas a chupar o polegar.

No Carnaval dava-me melancolicamente conta da minha condição terrestre: num mundo povoado de piratas-da-perna-de-pau, de mosqueteiros, de generais com bigodes de rolha queimada e de Brancas de Neve sem anões, a chamarem pela madrinha aos gritos, eu permanecia o mesmo triste futrica de joelhos esfolados desejoso de assassinar o universo com a pistola de água comprada na capelista que se avariava ao segundo jato, adereço inútil cuja única vantagem consistia em enfurecer a minha mãe (— Não quero essa porcaria aqui em casa) enxotando-me para o jardim onde me acocorava num degrau, de revólver pendurado na mão como um Al Capone sem emprego, a olhar a coluna de formigas que subia ao comprido de uma racha de parede indiferente à minha desdita sem remédio.

Avós desvanecidos passavam na Estrada de Benfica a caminho da Foto Águia de Ouro, tangendo noivas minhotas, Zorros de espada e mascarilha, imperadores romanos e lavadeiras de Caneças em miniatura, comigo à janela, com o bibe de todos os dias, a engolir as lágrimas de garganta apertada. Num bairro de coroas de papel e túnicas douradas, com os homens vestidos de mulher a vomitarem o tinto no passeio, sentia-me insignificante e supérfluo: ninguém me admirava, se extasiava, se interessava. A cozinheira, com dó de mim (as cozinheiras eram seres compassivos que tentavam levantar-me o moral deixando-me rapar o fundo das tigelas de mousse) vinha anunciar-me que estava ali o Cabecinha para brincar comigo.

O Cabecinha morava numa cave da Travessa do Vintém das Escolas, era feio, pobre, órfão de pai e tratava-me por menino devido a uma conformada consciência das diferenças sociais que o obrigava a não me ganhar nos jogos de futebol de baliza a baliza, muda aos cinco e acaba aos dez. Vingado por existir alguém mais miserável do que eu ordenava à cozinheira que mandasse vir o Cabecinha (soube no outro dia que o Cabecinha faleceu de uma doença tão obscura como a sua vida, Manuel da Costa Cabecinha baixo e humilde, sozinho na cave — Entre menino entre menino depois da mãe morrer) e o Cabecinha surgiu de rei mouro, com turbante e tudo, montado num cavalo de pau.

Estava magnífico, refulgente, digno de um harém de odaliscas e nunca compreendeu (— Entre menino entre menino) o motivo porque voltei as costas e, durante anos, deixei de lhe falar. A coisa que mais me arrependo na vida é ter cortado relações com o Cabecinha. Se ele não tivesse morrido ia hoje mesmo à Travessa do Vintém das Escolas para nos mascararmos de mulher, de lenço na cabeça, imenso rouge na cara e enchumaces a fingir de peito a fim de passearmos aos encon­trões um ao outro de taberna em taberna, no meio de príncipes, fadas e polícias, e desaparecermos de braço dado, Estrada de Benfica fora, a caminho de um país sem pobreza e sem caves enquanto as meninas espanholas nos atiravam das varandas serpentinas que ficavam a desbotar-se nos ramos das árvores até a chuva as levar.


(in Livro de Crônicas, Dom Quixote)


 * Escritor e psiquiatra português.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Literário: Um blog que pensa

(Espaço dedicado ao Jornalismo Literário e à Literatura)

LINHA DO TEMPO: Dez anos e onze meses de existência (corrigido).

Leia nesta edição:

Editorial – Feri-me, mas me curei.

Coluna Em Verso e Prosa – Núbia Araujo Nonato do Amaral, poema, “A cigarra e a formiga”.

Coluna Lira de Sete Cordas – Talis Andrade, poema, “O)s mortos vivos”.

Coluna Direto do Arquivo – Cândido Rolim, poema, “No circo”.

Coluna Porta Aberta – Blima Bracher, crônica, “As máscaras caem no Carnaval”.

Coluna Porta Aberta – Debora Bottcher, crônica, “Carnaval”.

@@@
Livros que recomendo:

“Poestiagem – Poesia e metafísica em Wilbett Oliveira” (Fortuna crítica) – Organizado por Abrahão Costa Andrade, com ensaios de Ester Abreu Vieira de Oliveira, Geyme Lechmer Manes, Joel Cardoso, Joelson Souza, Levinélia Barbosa, Karina de Rezende T. Fleury, Pedro J. Bondaczuk e Rodrigo da Costa Araújo – Contato: opcaoeditora@gmail.com  
“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas” Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Boneca de pano” -  Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Águas de presságio”Sarah de Oliveira Passarella – Contato: contato@hortograph.com.br
“Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.
“A sétima caverna”Harry Wiese – Contato:  wiese@ibnet.com.br
“Rosa Amarela”Francisco Fernandes de Araujo – Contato: contato@elo3digital.com.br
“Acariciando esperanças”Francisco Fernandes de Araujo – Contato: contato@elo3digital.com.br   
“Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br



Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Feri-me, mas me curei


As cicatrizes são as verdadeiras medalhas que atestam o mérito de um guerreiro. Onde quer que vá, estão com ele. Não as retira nem quando se despe para banhar-se ou para dormir. Estão estampadas em sua pele. Acompanham-no vida afora a atestarem que se feriu, porquanto lutou, mas que teve forças para se curar.

Sei que a metáfora é um tanto inadequada, ainda mais levando em conta que sou absolutamente avesso a qualquer tipo de violência. O “guerreiro” a que me refiro não é, pois, o sujeito que, de armas na mão, investe contra outra pessoa num campo de batalha, tentando matá-la para não ser morto. Oponho-me a qualquer guerra, mesmo as eufemisticamente classificadas como de “defesa”. Afinal, quando um não quer, dois não brigam.

Essas explosões de ódio e de violência já causaram inúmeras desgraças, História afora. Resultaram na morte de milhões de pessoas, a maior parte das quais inocentes, apenas para satisfazer a ambição e a sede de poder de tiranos. A esse tipo de guerra abomino, e irei abominar enquanto existir.

O guerreiro a que me refiro, porém, é quem luta pela vida. Sou eu, é você, são seus amigos e conhecidos etc. São os que todas as manhãs, saudáveis ou doentes, dispostos ou indispostos, alegres ou tristes, saem de casa em busca do sustento, do sucesso e da felicidade.

Esta é uma guerra sem fim, que atravessa gerações e que se repete sempre, ano após ano, século após século, milênio após milênio, posto que com novos personagens e cenários bastante diversos. Sua maior batalha, portanto, é a da sobrevivência. Contudo não a qualquer custo, mas com honra e dignidade.

É uma luta às vezes insana, em que nos vemos muitas vezes confrontados com situações críticas e aflitivas, que surgem à nossa revelia, sem que tenhamos a menor condição de prever. E não raro nos ferimos com maior gravidade nas circunstâncias aparentemente mais inocentes, triviais e potencialmente menos perigosas, tomados, que somos, de surpresa, inertes e indefesos.

Ora esses ferimentos vêm, por exemplo, de pessoa que amamos sem restrições, que acreditávamos nos fosse leal e fiel e que, no entanto, nos apunhala pelas costas, desmerecendo nossa confiança. E como isso dói!

Trata-se de situação das mais comuns e nem assim conseguimos nos prevenir para elas. Ora esses ferimentos provêm, por outro lado, de algum amigo, desses que estimamos como a um irmão, em cujas mãos seríamos capazes de depositar nossas vidas e que, no entanto, nos trai, sem essa ou mais aquela, não raro por míseros “trinta talentos” (como Judas fez com Jesus Cristo).

Muitas dessas feridas não cicatrizam jamais. Permanecem abertas, em carne viva, doendo e sangrando e não raro arruínam uma vida. Claro que não podemos ser sensíveis a esse ponto. Os que se deixam abater por circunstâncias, como essas, jamais ostentarão as medalhas do bom combate, representadas pelas cicatrizes. Não foram fortes para se curar. Perderam uma batalha e deram a própria guerra por perdida. Os consultórios de especialistas estão abarrotados de gente assim, que se feriu e não soube como se curar.

Há, por exemplo, quem jamais volte a amar, condenando-se à perpétua solidão. Há quem não confie em mais ninguém, tornando-se arredio, brusco e hostil e espantando todos ao seu redor, inclusive quem poderia lhe prestar amparo e auxílio. São atitudes até compreensíveis, embora nada pragmáticas e, sobretudo, autodestrutivas.

Não há demérito algum em cair. Há, porém, quando não temos forças ou não sabemos como nos levantar. A vida não é constituída de um só dia e nem de um único episódio. O fracasso de hoje, pode se constituir no sucesso de amanhã (e vice-versa).

Compete-nos adquirir maleabilidade. É prudente sempre termos alternativas, um “Plano B” por exemplo, na eventualidade do fracasso do que planejávamos (não importa se um relacionamento afetivo estável, uma atividade profissional para a qual nos preparamos com afinco por anos ou a concretização de um sonho que estava em nossas mãos e nos escapou por entre os dedos).          

Há um poema belíssimo, de Rabindranath Tagore, cujos versos finais dizem:

“Quando eu estiver contigo no fim do dia
 poderás ver as minhas cicatrizes,
 e então saberás que eu me feri
 e também me curei”.

Seja, pois, o guerreiro do cotidiano que, quando ferido, saiba se curar e ostentar, com orgulho, a medalha indestrutível das suas cicatrizes.


Boa leitura!

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk



A cigarra e a formiga

* Por Núbia Araujo Nonato do Amaral


O homem leva pra casa o pão,
encerra no final do dia uma
jornada cansativa
que garante
o sustento da família.
O filho corre a lhe mostrar
Desenhos bobos onde
o pai mal rabiscado
interage com borboletas.
-Isso é coisa de poeta!
Que não tem o que fazer!
Permita-me Dona Lua,
Musa de inspiração,
eu careço é de descanso
e pausa no coração.
Da janela, a cria do homem
observa ao longe o poeta
que ressentido, recolhe as poesias
que agonizam no chão...

* Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário




Os mortos vivos

* Por Talis Andrade


Mãos como garras
me arrancam as vestes
Sou o desvalido
Um cão perdido
Os colegas fecharam as portas
que não pertenço a nenhum partido
a nenhuma organização secreta
nem ao sindicato do crime

Nenhum conhecido reclama o meu corpo
esquartejado corpo
as vísceras espalhadas
pelos ruas e avenidas
do Recife   a cidade infame
dos mortos vivos

* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).


No circo

* Por Cândido Rolim

zanza lúcido
de fome
o tigre
irado
olho
vis-à-vis
cera
seu pasto
ali
a um
palmomo

* Poeta



As máscaras caem no Carnaval


* Por Blima Bracher


Agora dei pra chorar de alegria. Um choro tão intenso que não dá pra prender na garganta. Ele escorre, forte e genuíno rosto afora, molhando a fantasia e borrando a maquiagem sem dó.

Escorre na cadência das baterias, no repique dos surdos, no repinique dos tamborins.

Acelera o coração ao passar dos catitões, naquele grito uníssono de alegria tão forte que se materializa em lágrimas.

E sigo ladeira acima e abaixo atrás desta endorfina para a alma.

Dentro de um bloco de Carnaval, nos tornamos um só.

Uma energia mútua, como se fôssemos apenas parte integrante de um todo gigante. E nos tornamos fortes e lindos, independente das diferenças. A energia pulsa, contagiante. Células de vida naqueles breves dias da folia de Momo.

Nesta hora, não adianta a fantasia. Cada um tem a sua, mas todos somos um. As máscaras caem.

De repente, um olhar de cumplicidade no meio da multidão. E vem o sorriso de comunhão. Sim, estamos todos comungando de um sopro de vida divino. Creio eu.

E o catador de latinhas para pra ver o bloco passar. E pega duas já amassadas, que agora viram o mais forte dos instrumentos, batendo na cadência da bateria.

É Deus que desce à Terra nos dias de folia. E, de algum lugar, sopra alegria como lança perfume.

Estaria ele escondido debaixo do Zé Pereira?

Ou dançando no Balanço da Cobra?

Quem sabe rindo de nós pelos dentes brancos das caveiras do Bloco do Caixão?

E na quarta tudo vira cinzas.

Sinto o fio gelado da navalha a perfurar meu coração.

O frio da morte ronda.

Deus subiu de novo aos céus.

E alguns foliões inconformados insistem em bater surdos sem ritmo, sem paixão.

Mas Ele de novo entre nós, fantasiado e fanfarrão, só no ano que vem.


* Jornalista e cineasta.