Santa destruída em uma igreja de Montes Claros - MG
Em nome de Deus
* Por
Elaine Tavares
No dia em que morreu
havia parado, como sempre, para conversar com Idaléia. Ficara mais de hora, na
tarde modorrenta de maio. Gostava da guria. Casaria com ela, pensava. Depois,
atravessara o campinho até o mercado, onde compraria pão e leite. Assoviava um ponto de macumba, distraído. Não
sentiu dor. Só a sensação de explosão, como se múltiplas luzes piscassem de
forma brutal. Enquanto caia, ouviu uma voz: “matamos o feiticeiro”. Não
entendeu!
No átimo de tempo entre
as luzes e frio do chão, Artur passou a vida em tela. Viu-se à beira da sanga,
no interior do Rio Grande, cantarolando a mesma cantiga que a mãe. Ela lavava a
roupa devagar, com as pernas negras e luzidias estendidas na margem. Tinha
porte de rainha e riso de pérolas. Nas noites escuras lhe contava as histórias
dos orixás. “São deuses?”, perguntava. “Sim”. Cada um guardava algo do sagrado:
as águas, os ventos, os raios, os trovões, a luz. “Mas e esse, do qual fala o
padre Miro?”, insistia, confuso. “É outro deus. Existem muitos deles. Cada povo
tem os seus. E é bom que sejam muitos, porque assim não nos aprisionam”.
Na escola, o padre
dizia: “só há um deus verdadeiro. Os demais são `falsos ídolos´, só Jesus
salva”. E o guri apavorava, temendo que a mãe ficasse fora do céu. Ela ria:
“não tem sentido um povo eleito. Que deus seria esse que escolhe uns e não
outros? Seria como eu gostar mais de ti que da tua irmã. Não, não, não. Há
deuses em tudo que vive, assim, nenhum nos domina”. Aquilo era pura teologia.
O tempo passou, ele
entendeu. A religião tinha de ser libertadora. Re-ligare. Ligar com o sagrado,
com o profundo em nós. Quem disse que precisava existir um deus? Ele vira que o monoteísmo (religião de um
único deus) fazia era mal. Quantas guerras, mortes e maldades foram realizadas
por conta do deus único? Quantos terrores foram impingidos em nome de ser um
povo escolhido? Não, de fato era melhor viver na harmonia com a vida,
encontrando as coisas sagradas em tudo o que há.
Agora, já homem, ele
via na televisão alguns pastores dizendo que alguém estava “possuído” pelo
diabo. E outros dizendo que “deus”, o único, repudiava os homossexuais, porque
eram anormais. E outros que pregavam ódio aos negros, aos índios, aos ciganos,
ou a qualquer outro que não fosse igual. E outros que diziam que os deuses dos
outros eram o próprio demônio. E se arvoravam em sabedores da verdade
verdadeira, ditada por deus, o único. Ele se recolhia e seguia vivendo na
harmonia com a terra, estabelecendo vínculos sagrados com cada coisa viva, as
auroras, os entardeceres, as noites escuras, o sol. E quando chegavam os
solstícios e equinócios ele dançava, nu, no quintal de casa, revivendo antigos
rituais de amor com a vida.
Era um homem comum na
pacata vila. Um funcionário público, cumpridor de deveres, pagador de contas.
Brincava com as crianças, ajudava os velhos, cuidava dos bichos. Seu rosto era
plácido, terno e rescendia a pureza. Ninguém lhe prestava atenção até o dia em
que uma das mulheres da igreja próxima o vira dançando entre tochas de fogo,
fazendo amor com a terra. “É o capeta”, espalhou.
E, do nada, os bons
cristão da vila começaram a hostilizar o homem que amava a terra. Ele não
entendeu, mas seguiu a vida. Até que naquela tarde, alguns lhes arrebentaram o
crânio com um pedaço de pau. Ele suspirou e, entre luzes, pareceu ver a mãe,
com seu riso de pérolas a lhe estender os braços. Os vizinhos entraram na casa
em busca das coisas do diabo. Tudo o que acharam foi um lar, simples e limpo,
de alguém que só tinha amor no coração.
* Jornalista de
Florianópolis/SC
Nenhum comentário:
Postar um comentário