segunda-feira, 31 de janeiro de 2011




Leia nesta edição:

Editorial – Erro emocional.

Coluna Em verso e prosa – Núbia Araújo Nonato do Amaral, poema “Na hora certa”

Coluna Pessoas e histórias – Eduardo Murta, conto “Cartas a ninguém”.

Coluna Porta Aberta – Adélia Prado, poema “Os acontecimentos e os dizeres”.

Coluna Porta Aberta – Ed René Kivitz, crônica “No Brasil, futebol é religião”.

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, crônica “O terreiro de Santa Bárbara”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Erro emocional

O catarinense Cristóvão Tezza, quando indagado, recentemente, por que continua ainda lecionando e não se dedica exclusivamente às letras – já que já ganhou tantos prêmios literários nos últimos anos – afirmou uma coisa que nós, que somos do ramo, sabemos de sobejo, mas que o leigo desconhece. Ou seja, que no Brasil “talvez” (e note bem, “talvez” apenas) existam, no máximo, quatro escritores (e olhem lá!) que podem viver apenas de literatura. Eu por exemplo só conheço um nessas condições: Paulo Coelho. Os demais...

E olhem que Tezza tem tudo para ser um desses quatro. Pelo que afirmou, todavia, não é. Com 14 livros publicados (o 14º foi lançado em outubro de 2010), já conquistou, como informei acima, diversos prêmios, entre os quais um da Academia Brasileira de Letras e o Jabuti de 2008 de Melhor Romance, com “O filho eterno” (esta obra também lhe valeu, no mesmo ano, os prêmios da Portugal Telecom e da revista “Bravo!”). Portanto, quando afirmo que fazer literatura no Brasil não é bom negócio (nem financeiro e sequer de prestígio), não estou choramingando, como alguns me acusam. Limito-me a ser realista e nada mais.

“Se as coisas são tão difíceis, como você pinta, por que continua insistindo em produzir tanto, se o sucesso é meramente lotérico e a probabilidade de fracasso é tão grande?”, já me perguntaram. Boa pergunta. Mas não tenho resposta para ela. Não sei explicar a razão de tamanha insistência da minha parte. Paixão? Vaidade? Esperança? Masoquismo? Pode ser tudo isso, como pode, também, não se tratar de nada disso. Ademais, não estou só nesta indigesta empreitada, mas na ilustre companhia de milhares de brasileiros que buscam lugar ao sol na literatura nacional.

Mas, voltando a Cristóvão Tezza, informo, para quem não o conhece, que se trata de um competente e requisitado professor de Linguística da Universidade Federal do Paraná. Reside e trabalha há tantos anos nesse Estado, que muitos acham que seja paranaense. Não é. Nasceu em Lages, em Santa Catarina, em 1952, mas mudou-se, quando tinha dez anos de idade, para Curitiba, onde está até hoje. Integrou-se à vida da cidade. Transformou-se em autêntico cidadão curitibano.

Tezza deve amar de paixão essa cidade. E por que afirmo isso? Não, ele não me disse. Aliás, sequer o conheço pessoalmente. Cheguei a essa conclusão pelo fato dele fazer de Curitiba cenário de boa parte das histórias que escreve. Seus personagens transitam, com familiaridade e desenvoltura, pelas ruas, becos e praças da capital paranaense e, não raro, visitam seus principais pontos turísticos, que apresentam aos leitores. Se isso não é gostar da cidade, não sei o que seja ter paixão por algum lugar. Eu, por exemplo, sou apaixonado por Campinas, cenário de muitas das minhas histórias.

Mas, como ia dizendo, Cristóvão Tezza lançou, em outubro de 2010, seu 14º livro que tem tudo para se transformar em best-seller. O enredo é intrigante, os personagens, fascinantes, e o texto, como sempre, é primoroso. Aliás, era de se esperar que fosse. Afinal, o autor é um expert no idioma.

O novo romance narra as esperanças e temores de um casal de apaixonados. Beatriz, que é revisora, apaixona-se à primeira vista pelo escritor, que conheceu na noite anterior e cujo texto foi contratada para revisar. Paulo Donetti, de 42 anos, por sua vez, sonha que finalmente encontrou a mulher que vem procurando há anos, que esteja disposta a conduzi-lo.

A história começa com o escritor desabafando, numa frase truncada: “cometi um erro emocional...”. É a partir dessa declaração que a trama passa a ser urdida e desenvolvida. Não por acaso, o título do romance emerge dessa afirmação. Beatriz e Paulo pouco conversam ao longo da narrativa. Todavia, os dois passam e repassam as suas vidas nas lembranças de cada um deles. Com isso, criam uma ligação intensa, provavelmente à sua revelia até.

Todo escritor – salvo uma ou outra exceção – é parecido em suas reações em relação a cada livro que conclui. Por melhor que enredo e texto tenham ficado, sempre resta uma pontinha de frustração no autor, por achar que poderia ter ficado melhor. Eu, pelo menos, sou assim. Antes de dar alguma obra como pronta, reviso, e reviso, e reviso. Faço acréscimos (poucos) e corto, sem dó e nem piedade, não raro capítulos inteiros.
Tezza confessa que também sentiu essa natural insegurança. Em entrevista dada ao Caderno G, do jornal “Gazeta do Povo”, de Curitiba, perguntado se estava preocupado com a repercussão que o novo livro poderia ter, respondeu: “Quando comecei a escrever, não estava preocupado, mas à medida que o romance foi ficando pronto, senti aquele ‘medo de sair na rua’ que sempre tenho quando termino um livro. Depois, passou”.

Não sei qual o sentimento de vocês, mas também me sinto assim após cada “parto da montanha”. Fico com a sensação que todos com quem cruzo já viram o livro e que encontraram nele mil e um defeitos que não percebi. Felizmente, isso dura pouco e logo passa. Quanto a mais detalhes sobre o romance “Um erro emocional” (Editora Record), de Cristóvão Tezza, não direi mais uma palavra sequer. Se quiserem saber o desfecho comprem o livro, ora bolas! Imaginem o trabalho que ele deu até ficar pronto!

Boa leitura.

O Editor.

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Na hora certa

* Por Núbia Araújo Nonato do Amaral

Abro a porta
mas não acendo
as luzes.
Descalça, sinto
no frio do piso
o vazio à minha
volta.
Nas paredes
pintadas
de novo
sobraram apenas
os sussurros.
Os gerânios
sobre a pia
resistiram
bravamente.
Pelas janelas
que me observam
raios de sol se
esgueiram pelas frestas.
Ainda não estou pronta,
mas deixo escapar
um sorriso ao sentir
a vida jorrando
lá fora.

* Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário



Cartas a ninguém

* Por Eduardo Murta

O suspiro bafejado se convertia em formas densas, alongadas, gelificando ao ar daquela Paris. Lembrava soluços de abandonados. Na manhã fria da cidade, ele era um quase solitário ao banco da praça. Lia, pela terceira vez, o discurso de posse. Um rosário de promessas arrebatadoras. O fecho era o que mais lhe punha deslumbrado: “Construir uma nação sem fronteiras para o bem comum”. O que estava no papel ganhara morada definitiva nos compêndios da história. E só. Pouco ou nada fora transformado. Deserdados seguiram deserdados. Afortunados, mais afortunados. O texto não permitia reparos, porém. Se o reconstruísse, mudaria uma vírgula enviesada. Não mais.
O mal é que havia vírgulas desalinhadas país afora, numa indesejada profusão. Mas um homem que sequer abria maçanetas não iria percebê-lo. O saberia a reboque no fim daquele outubro. Quando avistou, de uma das centenas de janelas do palácio, massas de protesto se agigantando. E as vozes ganhando uma assombrosa nitidez. Fechou as cortinas. Ouviu o coro se adensando, agora em fúria. E partiu às pressas, pelas portas dos fundos. Os assessores que escolhessem seu destino. Distante que fosse. Estava então, ali, longe, a colar fragmentos, enquanto relia o discurso. Frases à beira da perfeição. Os sapatos lustrados com primor, como aguardasse a volta triunfal, nos braços do populacho. Sede de poder regada a formol.
Os cortejos lhe faziam falta. As filas dos beijos à mão em fins de ano. As paradas militares encomendadas fora de época. E, claro, os agrados finos. Gravatas de seda que assentavam sobre a curva de sua barriga. Pratarias, estátuas em miniatura. Retratos, milhares de retratos. Pintados de Norte a Sul do país. Sempre com um olhar mais generoso que o personagem vivo. Expostos nos imensos salões que mandara criar. Desfilava em passos de esquecimento pelos corredores. Admirado. Parava. Sorria ao que se punha como jogo de espelhos. E tocava parte dos quadros. Sentia as ondulações da tela. Como a se examinar numa prolongada autocarícia. Olhos até fechados.
A coleção de diplomas, os títulos de doutor honoris causa, é que ainda o avivavam. Boa parte agrupada agora nas paredes do apartamento acanhado. Cheirava a consolação de exílio. O restante, repousando em caixas no porão. Pouco as visitava. Lá estavam também o retrato da mulher, que o abandonou à porta do avião, e a faixa de quase dono de tudo e todos que governara. Atravessara noites insones a aproximar o tecido do peito, aconchegá-lo ao rosto. Sonhava com um retorno singular. Avenidas lotadas a saudá-lo, desde o aeroporto. Morreria construindo essa miragem.
E, nas passagens semanais ao confessionário, emprestaria mais tempo a dissolver os inimigos que à purgação dos erros. Consumia horas a descrever virtudes em autobenevolência. Era um incompreendido, sempre repetia. E viria logo o dia em que se curvariam a tal veredito. Arrependidos. O fraque e a cartola estariam preparados para o recomeço. Ganharia o perdão dos desafetos, e mesmo dos que caçou, como a ratos leprosos.
Resolvera tornar a escrever a velhos aliados. Dos quais não chegavam notícias havia anos. Reservaria o papel à amante, que o acolhera à porta naquela sexta-feira, como de costume.
O escalda-pés já estava pronto. Assentou os dedos gelados bem no fundo da bacia e começou a ditar. Falava, e mirava a ponta das unhas, pintadas num verde-e-amarelo. Tons de saudade. Ia pensando no arremate decididamente heroico do texto. A amante, mãos teatrais, inventava palavras. E expunha inspirações, ela mesma.

As cartas, sabia, jamais chegariam ao destino. Eram lembranças a ninguém. Daí lançá-las ao vento sem endereço às margens do Sena. E inda que chegassem, tinha certeza, encontrariam aquela gente girando as maçanetas a outros senhores. Adoçando cafés que, tempos antes, temperariam a veneno. De resto, não queria correr o risco de perdê-lo. Porque o velho tirano se convertera em mestre na arte do mimo, dos perfumes, dos presentes, dos brilhantes. Mais: da linguagem dos lençóis. Fazia como devorasse a pátria. E a pátria, a pátria, afinal, ali era ela. Soberana.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.



Os acontecimentos e os dizeres

* Por Adélia Prado


Quem está vivo diz:
hoje às três horas padre Libério
dá a bênção na Vila Vicentina.
Ou assim: coisa boa é um banho.
Ou ainda: casamento é coisa muito fina.
Eu achei tanta graça quando aprendi a dar nós,
fiquei cheia de poder.
Entendi depois o que queria dizer:
"Toda convicção é apostólica",
fiquei cheia de espanto.
As palavras só contam o que se sabe.
Mas, quem disse: Deus é um espírito de paz,
está repetindo um menino de sete anos que acrescentou:
eu tenho medo é de dia; de noite, não, porque é claro.



* Adélia Prado é uma das principais poetisas brasileiras da atualidade, autora de vários livros de sucesso. .

No Brasil, futebol é religião

* Por Ed René Kivitz

Os meninos da Vila pisaram na bola. Mas prefiro sair em sua defesa. Eles não erraram sozinhos. Fizeram a cabeça deles. O mundo religioso é mestre em fazer a cabeça dos outros. Por isso, cada vez mais me convenço que o Cristianismo implica a superação da religião, e cada vez mais me dedico a pensar nas categorias da espiritualidade, em detrimento das categorias da religião.
A religião está baseada nos ritos, dogmas e credos, tabus e códigos morais de cada tradição de fé. A espiritualidade está fundamentada nos conteúdos universais de todas e cada uma das tradições de fé.
Quando você começa a discutir quem vai para céu e quem vai para o inferno; ou se Deus é a favor ou contra à prática do homossexualismo; ou mesmo se você tem que subir uma escada de joelhos ou dar o dízimo na igreja para alcançar o favor de Deus, você está discutindo religião. Quando você começa a discutir se o correto é a reencarnação ou a ressurreição, a teoria de Darwin ou a narrativa do Gênesis, e se o livro certo é a Bíblia ou o Corão, você está discutindo religião. Quando você fica perguntando se a instituição social é espírita kardecista, evangélica, ou católica, você está discutindo religião.
O problema é que toda vez que você discute religião você afasta as pessoas umas das outras, promove o sectarismo e a intolerância. A religião coloca de um lado os adoradores de Allá, de outro os adoradores de Yahweh, e de outro os adoradores de Jesus. Isso sem falar nos adoradores de Shiva, de Krishna e devotos do Buda, e por aí vai...
E cada grupo de adoradores deseja a extinção dos outros, ou pela conversão à sua religião, o que faz com que os outros deixem de existir enquanto outros e se tornem iguais a nós, ou pelo extermínio através do assassinato em nome de Deus, ou melhor, em nome de um deus, com d minúsculo, isto é, um ídolo que pretende se passar por Deus.
Mas, quando você concentra sua atenção e ação, sua práxis, em valores como reconciliação, perdão, misericórdia, compaixão, solidariedade, amor e caridade, você está no horizonte da espiritualidade, comum a todas as tradições religiosas. E quando você está com o coração cheio de espiritualidade, e não de religião, você promove a justiça e a paz.
Os valores espirituais agregam pessoas, aproxima os diferentes, faz com que os discordantes no mundo das crenças se deem as mãos no mundo da busca de
superação do sofrimento humano, que a todos nós humilha e iguala, independentemente de raça, gênero, e inclusive religião.
Em síntese, quando você vive no mundo da religião, você fica no ônibus. Quando você vive no mundo da espiritualidade que a sua religião ensina ou pelo menos deveria ensinar, você desce do ônibus e dá um ovo de páscoa para uma criança que sofre a tragédia e miséria de uma paralisia mental.

Nota: Este artigo foi motivado por um incidente ocorrido no dia 1°/Abr/2010. Naquela ocasião, o elenco do Santos, atual campeão paulista de futebol, foi a uma instituição que abriga trinta e quatro pessoas. O objetivo era distribuir ovos de Páscoa para crianças e adolescentes, a maioria com paralisia cerebral. Ocorreu que boa parte dos atletas não saiu do ônibus que os levou. Entre estes, Robinho (26 anos), Neymar (18 anos), Ganso (21 anos), Fábio Costa (32 anos), Durval (29 anos), Léo (24 anos), Marquinhos (28 anos) e André (19 anos), todos ídolos muito aguardados. O motivo teria sido religioso. A instituição era o Lar Espírita Mensageiros da Luz, de Santos-SP, cujo lema é Assistência à Paralisia Cerebral. Visivelmente constrangido, o técnico Dorival Jr. tentou convencer o grupo a participar da ação de caridade. Posteriormente, o Santos informou que os jogadores não entraram no local simplesmente porque não quiseram. Dentro da instituição, os outros jogadores participaram da doação dos 600 ovos, entre eles, Felipe (22 anos), Edu Dracena (29 anos), Arouca (23 anos), Pará (24 anos) e Wesley (22 anos), que conversaram e brincaram com as crianças.

• Ed René Kivitz é escritor, conferencista, pastor evangélico e santista desde pequenininho.

O terreiro de Santa Bárbara

* Por Clóvis Campêlo

Situado na Rua Severina Paraíso da Silva, no bairro de Beberibe, em Olinda, é um dos terreiros mais tradicionais da Nação Xambá em Pernambuco.
No ano de 2000, o Terreiro comemorou 70 anos de funcionamento, 100 anos do nascimento da ialorixá Maria Oyá, fundadora da casa, e 50 anos de reabertura do terreiro, fechado em 1938, no período do Estado Novo.
Para comemorar as três datas, no dia 17 de dezembro de 2000 foi realizado um toque para Iansã (Santa Bárbara, no sincretismo religioso), deusa dos ventos e das tempestades e orixá patrona da casa. Durante o toque, foi lançada a Cartilha da Nação Xambá.
A publicação fala sobre o povo Xambá, originário de tribos que habitavam os limites da Nigéria com Camarões, na África, e também sobre os 14 orixás cultuados no Terreiro.
No início de década de 20, o babalorixá Arthur Rosendo, fugindo da repressão às casas de culto afro-brasileiro em Maceió, veio para o Recife. Algum tempo depois, reiniciou as suas atividades em Água Fria.
Dentre as filhas de santo por ele aqui iniciadas, estava Maria das Dores da Silva, a Maria Oyá, que no dia 7 de junho de 1930 inaugurou o seu terreiro no bairro de Campo Grande.
Até hoje o terreiro conserva entre as suas tradições os rituais seculares da Nação Xambá. Os cantos são entoados na língua africana iorubá. Além disso, é o único que adota o regime matriarcal no seu comando.
Na época das festividades, o Terreiro de Santa Bárbara era comandado pela mãe-de-santo Donatila Paraíso do Nascimento, hoje já falecida.

• Poeta, jornalista e radialista de Olinda/PE

domingo, 30 de janeiro de 2011




Leia nesta edição:

Editorial – Ciência e cultura.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Explosão de luz”

Coluna Direto do Arquivo – Leandro Barbieri, crônica “Plutão injustiçado”

Coluna Clássicos – Amadeu Amaral, conto “Ratinha de esgoto”

Coluna Porta Aberta – Fausto Brignol, crônica “Belo Monte da morte”.

Coluna Porta Aberta – Abílio Pacheco, crônica “Cheiro de café”. ..

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Ciência e cultura


A Ciência, através do seu braço prático, a tecnologia, produz maravilhas que tornam nossas vidas cada vez mais práticas, seguras e confortáveis. É o reflexo por excelência da engenhosidade humana. De meados do século XVIII em diante, ou seja, desde o início da Revolução Industrial inglesa, teve uma “explosão” de descobertas, em todos os campos do conhecimento científico, da física à medicina, da química à eletrônica e assim por diante, impressionante. Revolucionou, portanto, o mundo, e continua revolucionando-o, tornando-o acessível e prático, encolhendo distâncias, aproximando pessoas, prolongando a vida e facilitando nosso dia a dia.

O automóvel, por exemplo, foi desenvolvido, “apenas”, há 105 anos. Hoje, milhões, mundo afora, dependem visceralmente dele. É muito tempo? Nem tanto. Há pessoas com essa idade que são contemporâneas desse invento. O que seria da nossa vida, homens modernos, sem essas facilidades com que contamos? Como viveríamos sem eletricidade, sem veículos rápidos e confortáveis de transporte, sem meios de comunicação instantâneos e eficientes, sem rádio, televisão, telefonia fixa, celular, computador, internet e vai por aí afora? Tudo bem, sobreviveríamos sem tudo isso. Mas a que custo? Com quantos sacrifícios? Não sou, pois, contra a Ciência e nem poderia ser.

Todavia, o homem conta com habilidades mais nobres, posto que menos práticas do que o conhecimento científico que parecem estar regredindo: a principal é a criatividade espiritual. É o talento artístico, é a capacidade de imaginar e de criar mundos abstratos e, no entanto, belos. Refiro-me, vocês já perceberam, às artes que têm, salvo exceções, número proporcionalmente à população mundial cada vez menor de praticantes e de adeptos.

Já no tempo de Fernando Pessoa havia certo antagonismo entre cientistas e artistas. Para o poeta português, óbvio, caso tivesse que escolher uma das duas atividades, sua opção recairia, sem pestanejar, sobre as artes. Ou, mais genericamente, sobre o que denominamos de cultura. Pessoa legou-nos um poema revelador a propósito, intitulado “A Ciência, a ciência, a ciência...”, que diz em seus versos iniciais: “A Ciência, a ciência, a ciência.../Ah, como tudo é nulo e vão!/A pobreza da inteligência/ante a riqueza da emoção”. Exagero? Não acho!

Entre o pensamento e o sentimento, Fernando Pessoa valoriza muito mais o segundo. É algo incontrolável, que parte do âmago, do íntimo, das vísceras e que por isso é espontâneo, sincero e natural. Claro que não proponho a ninguém um confronto entre a Ciência e a Cultura (incluindo, aí, principalmente, as Artes), pois isso não faria o menor sentido. Sou a favor, isto sim, de um “casamento” entre ambos na formação de um ser humano ideal, prático e simultaneamente sensível. Mas na impossibilidade disso acontecer, serei sempre defensor do poeta, do músico, do escritor etc., em detrimento do cientista.

A escritora sueca do século XIX e início do século XX, Ellen Kay, tinha uma definição pitoresca, posto que verdadeira, de cultura. É verdade que não era nada prática, mas ainda assim concordo com ela. Escreveu, certa ocasião: “Cultura é o que nos resta depois de termos esquecido tudo quanto aprendemos”.

Quanto daquilo que nos ensinam na escola conseguimos reter na memória pela vida toda? Pouco, muito pouco, pouquíssimo. Quantas pessoas (a não ser as que se utilizem da matemática nas suas atividades profissionais), sabem, ainda, extrair uma raiz quadrada? E já nem falo da cúbica, que seria uma covardia! Quantos entendem de trigonometria? E de limites e derivadas? Quantos sabem fatorar? Refiro-me à fatoração e não à extração comercial de uma fatura, que é outra coisa. E não são apenas lições de matemática que esquecemos. Creio que pouco mais de 10%, apenas, do que aprendemos na escola fica retido na memória, se tanto.

Pessoa encerra o citado poema com estes versos: “A Ciência, como é pobre e nada!/Rico é o que a alma dá e tem.”. E não é?! Num longo texto em prosa, sumamente objetivo, o poeta parte do princípio de que ambos, ciência e cultura, (mas especificamente a arte), são invenções. Todavia, são bastante distintas na essência. Uma é objetivo, é prática, enquanto a outra é subjetiva. Escreveu: “Uma obra de arte é, portanto, em sua essência uma invenção com valor. Se não for invenção, o valor permanece a quem inventou; se não tiver valor não será obra de arte, pois que importa inventar o que não presta?”

Mais adiante, Pessoa constatou: “Ao contrário da invenção prática, que é uma invenção com valor de utilidade, e da invenção científica, que é uma invenção com valor de verdade, a obra de arte é uma invenção com valor absoluto”. Também entendo que seja. É por essa razão que, como o poeta português, caso tenha que optar entre Arte e Ciência, minha opção óbvia será sempre e sempre pela primeira. Como escritor, sou, sobretudo, criador. O cientista só considera fato científico o que possa ser reproduzido infinitas vezes nas mesmas condições. Já o artista considera obra de arte o que não pode ser reproduzido, a não ser “copiado”, ou seja, uma criação que, como tal, seja sempre e sempre original.

Pessoa caracterizou os adeptos das ciências como “realistas” e os da cultura (notadamente das artes), como “românticos”. Como homem sensato, admitiu que no mundo há espaço para ambos (e há, de fato), cada um em sua especialidade. E que este espaço é determinado pelas circunstâncias. Escreveu: “Os realistas realizam pequenas coisas, os românticos, grandes. Um homem deve ser realista para ser gerente de uma fábrica de tachas. Para gerir o mundo deve ser romântico. É preciso um realista para descobrir a realidade; é preciso um romântico para criá-la”. E você, o que é? É o “realista”, por descobrir a realidade, ou o “romântico”, que a cria?

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk






Explosão de luz

* Por Pedro J. Bondaczuk

A arte precisa ser instintiva, natural, selvagem e espontânea na sua concepção (claro que não na técnica) para merecer essa designação. Trata-se da única forma de sermos autênticos, sem representações e nem dissimulações. É a nossa carta de alforria, nossa absoluta e irrestrita liberdade. Ninguém é forçado a ser artista: músico, escritor, pintor, escultor, poeta... É uma escolha pessoal. Ou se é ou não se é. É o modo de que cada um dispõe para ser livre, para impor sua personalidade, para deixar sua marca no mundo. A aceitação ou não do que o artista produzir vai depender de critérios subjetivos de apreciação e de avaliação dos destinatários das obras produzidas. A arte, contudo, é o nosso "ADN"! É o nosso ser! É a nossa vez! É a nossa voz...e única...

Todos somos artistas potenciais, embora muitas vezes não pareça que seja assim. Ocorre que alguns (senão a maioria) sufocam esse pendor natural, voltados que estão para coisas aparentemente mais “importantes”, mais "sérias" e que, na verdade, quando submetidas a uma análise lógica mínima, se revelam supérfluas, triviais, fantasiosas e absolutamente dispensáveis. Só a arte dá dimensões divinas ao ser humano. É por seu intermédio que ele verdadeiramente se revela em toda a sua grandeza e transcendência. É a linguagem “dos anjos”, de que nos fala São Paulo, em uma de suas inspiradas cartas apostólicas.

A principal característica dos bons escritores (a arte que abracei) é a sua capacidade de observação. Ou seja, é o talento, desenvolvido com a prática e a disciplina, para captar todas as nuances da realidade e fazer delas matérias-primas de suas obras (poesia, conto, romance, crônica, não importa), conferindo-lhes a desejável verossimilhança.

Claro que o escritor deve dominar o idioma (exigência mínima, lógica, básica, óbvia e até primária), além de ser emérito comunicador. Tem que ser, sobretudo claro e inteligível, se possível para qualquer pessoa, mesmo que esta não tenha qualquer cultura. Quem escreve complicado é porque não tem, de fato, o que dizer. A beleza e a simplicidade andam sempre de mãos dadas.

Paulo Mendes Campos constatou que “o escritor, ao contrário da caneta-tinteiro, carrega-se devagar e se esvazia depressa”. Ou seja, despende muito mais tempo no estudo, na pesquisa, na observação, de tudo e de todos que o cercam, do que na redação dos seus textos, que fluem (se de fato tiver competência para a atividade) espontâneos e inteligíveis, sem maiores esforços.

Só a arte tem o condão de revelar a genuína grandeza do ser humano (em termos potenciais), a transcendência da vida e a beleza em toda a sua majestade e magnitude. Por meio dela, com a sua linguagem simbólica, realçada pelo talento, é que expressamos, sem enganos, dissimulações ou temores, os grandiosos ideais, tanto os individuais, quanto os coletivos (os da humanidade), esquecidos no dia-a-dia. Aqueles mesmos que nos empolgaram um dia, na juventude, mas que, na luta feroz do cotidiano, pelo pão nosso de cada dia, na batalha inglória pela sobrevivência, deixamos, pouco a pouco, se esvair e se perder no meio do caminho, em algum segmento do tempo.

Perguntam-me, amiúde, qual é minha fonte de inspiração. Ela é, confesso, a natural. É espontânea e, felizmente, freqüente. Gosto de dias quentes e ensolarados, de céu completamente azul, e cheios de luz. Um cenário radioso, como esse, faz com que eu releve meus problemas e os coloque em suas mesquinhas dimensões, para valorizar a vida no que ela tem de belo, transcendente e único. Ela é a matéria-prima dos textos que produzo.

Não nascemos, convenhamos, para desperdiçar nossas melhores energias com isso que aí está. Ou seja, com a luta mesquinha e desesperada por bens materiais que nada nos acrescentam, em detrimento do que nos é oferecido de graça pela natureza. Temos uma oportunidade única, que é o privilégio de viver, à qual não damos o devido valor. Transformamos, com nossa cobiça e intolerância, o paraíso num inferno.

Marc Chagall confessou, certa feita: “Em Paris a luz explodiu em mim como uma centelha de liberdade, de revolução”. Essa luz, essa centelha de liberdade e de revolução, essa veneração pela beleza explode em meu peito todas as manhãs, ao meu redor e ao redor de todas as pessoas que, no entanto, raramente se dão conta desse privilégio. Vêem mas não enxergam. Apostam na infelicidade e acabam, de fato, infelizes.

Uma das minhas maiores satisfações, físicas e espirituais, é o contato com a natureza. É, por exemplo, um passeio despreocupado por um bosque, com todos os sentidos alertas, usufruindo o aroma das flores, o canto dos pássaros, o frescor da sombra e o sabor exótico dos frutos silvestres. Ou é a caminhada preguiçosa e sem rumo por um jardim florido, com a explosão de cores, em cada canteiro, ao meu redor. Essa é a minha fonte de inspiração.

Claro que aquilo que tenho para expressar está em mim, adormecido no fundo da memória, pronto para ser despertado. E é a beleza o despertador da minha sensibilidade. Concordo com Le Corbusier quando diz: “A poesia está no coração dos homens; por isso, é preciso se abrir para as alegrias da natureza”. Temos que cuidar dela. Infelizmente, quase nunca fazemos isso. A natureza é, cada vez mais e há tanto tempo, extremamente agredida e muito judiada pela insensatez e pela cobiça dos estúpidos! Somos, porém, suas partes integrantes. Procedemos dela e a ela retornaremos.

Sem a natureza (se isso fosse possível), ou com ela devastada (o que ocorre há tanto tempo), certamente não sobreviveríamos (e não sobreviveremos). Morreríamos sufocados, esturricados e de inanição! Seria nossa inexorável extinção, tanto a física, quanto a espiritual (ambas, claro, definitivas). E, neste último caso, perderíamos o que de mais nobre e elevado temos e raramente exercitamos. Ou seja, a fome imensa, permanente e insaciável de beleza. Esta é a morte que luto, com todas as forças, para evitar! Daí apostar todas as “fichas” que a vida me deu na arte!

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk

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O que comprar:

Cronos e Narciso (crônicas, Editora Barauna, 110 páginas) – “Nessa época do eterno presente, em que tudo é reduzido à exaustão dos momentos, este livro de Pedro J. Bondaczuk reaviva a fome de transcendência! (Nei Duclós, escritor e jornalista). –
Preço: R$ 23,90.

Lance fatal (contos, Editora Barauna, 73 páginas) – Um lance, uma única e solitária jogada, pode decidir uma partida e até um campeonato, uma Copa do Mundo. Assim como no jogo – seja de futebol ou de qualquer outro esporte – uma determinada ação, dependendo das circunstâncias, decide uma vida. Esta é a mensagem implícita nos quatro instigantes contos de Pedro J. Bondaczuk neste pequeno grande livro. –
Preço: R$ 20,90.

Como comprar:

Pela internet
WWW.editorabarauna.com.br – Acessar o link “Como comprar” e seguir as instruções.
Em livraria – Em qualquer loja da rede de livrarias Cultura espalhadas pelo País.



Plutão injustiçado

* Por Leandro Barbieri


Imagine-se acordando em um dia ensolarado. Saindo da cama, tomando café, indo para o trabalho. Toca o telefone. É alguém. Alguém que você não conhece. Houve uma mudança. Você, oficialmente, não é mais ser humano. Como não? Não importa. Alguns répteis estavam reivindicando a condição de humano e para acabar com a discussão mudaram a definição da nomenclatura. E você não se encaixa na nova descrição. Obrigado pela atenção dispensada.

A história flerta com o ridículo. Mas aconteceu. Semana passada. Com o tradicional planeta Plutão. Ou melhor, ex-planeta. Grosso modo, aconteceu o seguinte:

Ceres e Xena, dois asteróides, entraram com requerimento junto à escola de astronomia para receberem o título de planeta. Os proclamas correram. Mas os títulos não saíram. O casal recorreu e a única saída foi alegar que ambos não se encaixavam na definição de planeta. “Mas Plutão também é assim”, retrucaram. E Plutão se ferrou.

O temperamento do novo planeta-anão pode ter sido decisivo para a resolução dos cientistas. “Ele sempre foi meio isolado”, declarou um planeta que não quis se identificar. Não é a opinião de Urano, vizinho de Plutão e amigo desde 1930, quando o ex-último planeta do sistema solar foi descoberto: “Sempre nos demos bem. Plutão é um ótimo vizinho. Só gosta de ficar na dele. Não é arrogância, é timidez”.

As reportagens soltas na Internet sobre a desclassificação de Plutão foram humilhantes: “Conferência confirma que Plutão deixa de ser planeta”, “Plutão é agora um planeta a menos para decorar”, “Cientista que descobriu Plutão entenderia mudança, diz viúva”, “Plutão perde status de planeta”, “Planetário se adapta ao novo status de Plutão”, “A queda de Plutão”, “Astrônomos festejam exclusão de Plutão”, “Rebaixamento de Plutão é tema de aula” etc... “Não precisava disso. A imprensa foi insensível ao momento”, afirmou Júpiter durante o jantar de desagravo oferecido anteontem na Assembléia Legislativa.

A crise do sistema (solar) dividiu os cientistas. Alguns foram categóricos: Plutão estaria mais para cometa gigante que para planeta. E assim chamá-lo seria um erro de vocabulário. Outros defenderam o reclassificado.

A definição de planeta parte da idéia de que “ele precisa limpar as áreas vizinhas a sua órbita”, o que, segundo os mudancistas, não seria o caso de Plutão. O cientista Stern observa que, se Netuno tivesse limpado sua área, Plutão não estaria ali. Neste caso, Netuno também não seria um planeta. Nem Netuno, nem Júpiter, nem Marte... E nem a Terra. Sim, a discussão vai longe. E mais cabeças podem rolar.

“Nós vamos recorrer”, afirmou o advogado do então novo planeta-anão. “Confiamos na justiça e temos certeza que ela prevalecerá”. Só falta definir onde o caso vai ser julgado. Se for no Brasil, que mudem os livros. Plutão vai ser anão por um bom tempo...

* Roteirista, diretor e pesquisador de Telenovelas nacionais. Escreveu Retrato da Lapa (a primeira novela da TV a Cabo brasileira) e Umas & Outras (a primeira novela da Internet), as quais também dirigiu em parceria com Silvia Cabezaolias. Assina o roteiro da webnovela Alô Alô Mulheres na allTV, onde é diretor do núcleo de dramaturgia.



Ratinha de esgoto

* Por Amadeu Amaral

(Na praça, depois de
dois minutos de prosa)



- Dá-me um cigarro, Timóteo.
- Um Abdula?
- Oh! não me atrevia a tanto.
- É que eu não fumo Abdula. Eu uso fumo Veado, de pacotinho amarelo, e mortalhas de Gaston d'Argy.
- Que ignomínia, Timóteo!
- Talvez tenhas razão, meu caro Ramalho. Realmente...
- Parece-me que te aborreci. Garanto que não tive intenção...
- Realmente!
- Estava brincando...
- Olha, queres tomar um café?
- Vamos lá, Timóteo.

(No café, a uma das
mesinhas do fundo)



- Garçom, café para dois. - Então, o amigo Ramalho acha que é uma ignomínia fumar do Veado, de pacotinho amarelo... Entretanto, este pacotinho é tão cômodo! Olhe, tiro uma porção de fumo, maior ou menor, conforme a hora, conforme o apetite; puxo por esta mortalha, arranco-a como quem arranca uma pequenina página inútil do livro da vida, enrolo nela este punhadinho de tabaco desfiado, ponho-lhe fogo... e... fuuu!... fico a olhar a fumaça que sobe e que se dispersa...
- Quanto a isso de soltar fumaça e ficar olhando, não é só com o Veado que se pode fazer.
- De fato. Mas há uma diferença: É que eu o faço unicamente para isso, ao passo que tu fumas os teus Abdulas, Sakelarides etc., só por fumares Abdulas e Sakelarides, para teres entre os dedos um cigarro fino, adocicado, caro, e da moda. Acresce que,. a mim, o único cigarro que vejo queimar com prazer, é esse. Tirem-me o Veado, e tiram-me o vício.
- Não há outro. Nenhum outro.
- Ora, esta.. . Vejo que estás comovido, Timóteo! Ora esta... Mas que diabo disto é aquilo, ó seu Timóteo?
- Não há outro...
- Mas...
- Quer que eu lhe conte? Eu tinha dezoito anos (porque posso garantir-lhe que já tive dezoito anos), morava no Rio, freqüentava uma roda horrível de boêmios machos e fêmeas. Um dia, conheci uma menina, uma criatura ordinaríssima, uma ratinha de esgoto, uma vesícula vanólica da cidade. Eu era um bruto, um palhaço, um bicho sem alma. A boêmia, a minha roda de boêmios, todas as rodas de boêmios da Terra me aclamavam o mais feroz, o mais divertido e mais grotesco dos boêmios.
- Isso é conto.
- Não crês? É o mesmo. Encontrei-me um dia, ao acaso das troças e distúrbios, com essa menina sem graça, sem beleza e sem coração. Uma bebedeira, um capricho, uma luta a copos e garrafas num botequim de marinheiro, de contrabandistas e de rufiões - e, no fim, eu, na rua, sozinho, às três da madrugada, a rebocar a minha pobre amiga, que eu não amava, nem queria. Simpatizou comigo. Não sei se gostou do meu cinismo, ou da minha fachada, que naquele tempo era menos má. Depois, encontrei-a outras vezes, na mesma zona. Quando dei acordo, tinha-se-me agarrado, com um carrapicho que se leva na roupa de passagem pela macega. Protestei contra o seu desmazelo: tratou de se alindar... e começou a procurar-me com maior insistência. Reclamei contra as suas maneiras desconjuntadas e reles: tratou de se emendar, emendou-se... e entrou a procurar-me todos os dias.
- Uma paixão, enfim.
- Da graúda. Para encurtar: a páginas tantas, adoeceu. Coisa do peito. Levei-lhe o médico. Dei-lhe todos os remédios. Para arranjar os meios, acabei por me empregar. Isso durou meses. Afinal, morreu. E, quando morreu, morreu quase bonita, - parecia impossível! - morreu bonita, muito branda, muito leve, muito fina, com um sorriso delgado e virginal de criatura renascida. Era outra. E eu, também, era outro. Completamente outro. Pela primeira vez conheci a gravidade, o recolhimento e a ternura.
- ... Mas, isso é sério, Timóteo?
- Como tudo quanto há de sério.
- Mas, agora, que é que tem tudo isso com o fumo Veado?
- Por enquanto, nada. Escuta. Larguei o Rio, larguei a boêmia, larguei a vadiação e a troça, vim para esta nossa terra, tratei de encaminhar-me na vida... e cheguei a esta pacífica posição que estás vendo, - pequeno proprietário e empregado público. Meu pai, que morreu há dezoito anos, fez tudo para que me casasse. Minha mãe, que morreu há cinco, punha-me no caminho todos os laços e arapucas matrimoniais que podia. Minhas irmãs indicavam-me cada semana um partido inexcedível. Levaram-me a bailes, introduziram-me na sociedade. Fizeram-me até viajar, para conhecer meninas e viúvas. Fui requestado por duas ou três damizelas bonitas e graciosas, - uma clara e breve, uma trigueira e forte, uma pálida e sentimental... Não pude. Não pude de todo. Nunca encontrei uma carinha que tivesse o sorriso dolorido e reconhecido de Amanda, aquele sorriso de meiguice enlaçante e magoada, aquele sorriso-flor, aquele sorriso-gota d'água, aquele sorriso-recompensa, inconfundível, indefinível, indescritível, que me entrou na alma durante seis meses, que a perfumou, a amoleceu, a revolveu, a tocou em todas as suas obras, que me deu a conhecer, com a doçura da lágrima e a ânsia do desespero, a volúpia da minha primeira e única obra de arte.
- Mas, o fumo?
- Muito simples. Nesse tempo eu, pobre boêmio sem mesada, sem emprego e sem vergonha, fumava Veado, porque era muito barato e saía ainda mais barato do que custava, pois eu podia regular à vontade a grossura do cigarro. Muitas vezes, reparti com ela o meu pacotinho. Muitas vezes. Nos meus dias amargos de boêmio sem vintém, almocei e jantei cigarros de fumo Veado. Toda a minha história com Amanda correu entre nevoeiros de fumo Veado. Contraí com isso o meu hábito mais tenaz, - um hábito feito, hoje, de saudades, de remorsos, de obsessões doces e dilacerantes, da infinita tristeza de um nunca-mais que me purifica e me aniquila... A minha vida inteira teve o seu pináculo na hora em que a minha ratinha de esgoto morreu sorrindo nos meus braços. Tudo o mais que se seguir são ondulações que se prendem, num ritmo decrescente, a essa altitude remota... Impossível esquecer.
- Mas, que diabo! isso tudo é verdade?... Estás chorando, Timóteo?
- Alto lá! Bem vê que não estou chorando. Então eu sou homem que chore! Garçom, outro café; mas bem quente!
(Uma pausa. Sorve-se o café em silêncio. Timóteo saca do seu pacotinho de fumo)
- Portanto, o amigo Ramalho já sabe porque é que eu prefiro fumar desta ignominiosa maneira.
- Mas, ainda não voltei do meu espanto, Timóteo! Então, isso tudo é mesmo verdade?...
- Veja lá como eu estou mestre em fazer os meus cigarros. Sou capaz de os enrolar com uma só mão. Aqui está o fumo, vê? Agora, arranco a mortalha, - mais uma pequenina página inútil do livro da minha vida - ponho-lhe o fumo, estendo-o, enrolo... Está vendo? Pronto... Dá cá o fogo... fuuu!... Olha essa espiral que se esgueira por cima de todo esse burburinho, de todas essas cabeças... Olha, olha, lá vai ela... Acabou-se. - Moço, cobre aqui quatro cafés. Jesus, estou na horinha do meu bonde! Ande com isso, ó funcionário!

• Poeta, folclorista, filólogo e ensaísta, natural de Capivari/SP



Belo Monte da morte

* Por Fausto Brignol


Haverá guerra.

Ariranha, Boto Cor de Rosa, Jacaré Açu, Poraquê, Peixe-Boi, Tartaruga, Anta, Capivara, Preguiça de Três Dedos, Coatá, Onça Pintada, Guariba de Mão Vermelha, Veado Mateiro, Tucandeira, Sagüi, Macaco de Cheiro, Anacã, Ararajuba, Gavião Real, Garça Branca Grande, Canindé, Guará, Pavãozinho do Pará, Tucano do Peito Branco.

Esses são só alguns. Duas mil espécies de peixes, cerca de 950 tipos de pássaros e 300 espécies de mamíferos.

E a belíssima flora. Na Floresta de Terra Firme tem Angelim-Pedra, Cedro, Pau D’Arco, Acapu, Mogno, Maçaranduba, Copaíba, Castanha do Pará. Na Floresta de Várzea: Andiroba, Samaúma, Seringueira, Açaí. Na Floresta de Igapó, Tachi Preto, Vitória Régia, Orquídea, Mamorana, Buriti. Nas Restingas: Ajiru, Muruci, Cajueiro. Nos Manguezais: Mangueiro, Siriubeira, Tinteiro. Nos campos e Campinas: Gramíneas e Ciperácias.

E todos serão afetados, direta ou indiretamente, pela construção da hidrelétrica de Belo Monte.

E os Amanayé, Anambé, Apiaká, Arara, Araweté, Assurini, Atikum, Guajá, Guarani, Himarimã, Hixkaryána, Juruna, Karafawyána, Karajá, Katwena, Kaxuyana, Kayabi, Kaiapó, Kreen-Akarôre, Kuruáya, Mawayâna, Munduruku, Parakanã, Suruí, Tembé, Timbira, Tiriyó, Turiwara, Wai-Wai, Waiãpi, Wayana-Apalai, Xeréu, Xipaya e Zo'e. Trinta e quatro etnias indígenas, vivendo da natureza e protegendo a natureza, que serão expulsas de suas terras.

Os Kaiapós declararam guerra ao governo, devido à construção de Belo Monte. E as demais etnias indígenas seguirão os Kaiapós, caso o imenso predador seja realmente construído. Por enquanto, os combates acontecem nos sites, nos blogs, nos jornais, nos protestos dos povos do Xingu – devidamente escondidos pela “grande imprensa”. Somente é notícia aquilo que os empresários do jornalismo dizem que é notícia. Existem mais de 250 países no mundo e os jornais escolhem as notícias diárias sobre meia dúzia, como se nada acontecesse nos demais.

O Xingu também não existe para o jornalismo comprado pelo governo. Passará a existir quando da inauguração de Belo monte. Por enquanto é uma informação guardada, escondida, escamoteada.

E alguns dirão: mas o que é isto, perto do que acontecerá em 2012, ou com a aproximação do planeta X, ou com o movimento das placas tectônicas, com a mudança do eixo da Terra ou, ainda, com o aquecimento global?

Considerarão que “isto” é nada. Mas foi pensando assim que no século XX cientistas loucos – literalmente loucos – construíram a bomba atômica. Por prazer ou por dinheiro. Mas construíram para ver no que é que dava; se os seus cálculos realmente estavam certos e poderiam destruir milhares de uma só vez. Depois, eles foram considerados gênios pela imprensa política aliada ao sistema: Openheimer, Niels Bohr, Einstein... E a humanidade enlouqueceu com eles.: Como era bom ter a bomba atômica! Os gênios não previram as conseqüências, ou, se previram, não se importaram.

Fizeram tantas experiências subterrâneas com as suas bombas cada vez mais poderosas – e ainda continuam fazendo – que realmente mexeram com as placas tectônicas que sustentam os continentes, e provocaram terremotos e maremotos porque o magma central, o fogo interior da Terra se aqueceu além do que deveria normalmente.

Alguns desses terremotos - como o último acontecido no Chile, ano passado - gradualmente provocam uma mudança no eixo da Terra, alterando as estações e dando origem a bruscas mudanças climáticas.

E o aquecimento global. “O que está em cima é igual ao que está embaixo”, como diz a “Tábua de Esmeralda” de Hermes Trimegistus. A loucura do crescimento a qualquer custo. Da necessidade de produzir e vender, produzir e vender e ganhar muito à custa da escravização dos outros. Fábricas aos milhares, motores aos milhões ou bilhões e fumaça podre para o céu liquidando com a camada protetora da Terra, a camada de ozônio, como se estivéssemos, aos poucos, arrancando a epiderme da Terra.

Plantações de transgênicos, sementes híbridas que acabam com a vida da terra. Monocultura, desmatamento. Loucura total, porque não pode ser apenas maldade total ou ignorância total.

E a suprema maldade: a destruição súbita da natureza.

O nome de Belo Monte, dado por Dilma e seus asseclas é sarcástico. Será um belo monte da morte. Quando a ditadura militar decidiu construir a usina de Itaipu, ambientalistas do mundo inteiro vieram para o local para tentar salvar as espécies ameaçadas com a monstruosidade. Nunca se pensou em energias alternativas, porque uma hidrelétrica rende mais, a ponto de se poder exportar energia para outros países. Enquanto que fontes de energia alternativa, como a energia dos ventos (eólica) ou a energia do Sol (solar) captam energia para o local onde estão instaladas. Não se pensou em cobrir o Brasil com uma rede de fontes de energias alternativas: isso não dá dinheiro.

Mas, naquela época de Itaipu, a desculpa foi de que era uma decisão da ditadura militar que, só pelo nome de ditadura, já parecia algo maléfico. E ficou tudo explicado: uma ditadura mata, tortura, constrói reatores nucleares e destrói a natureza. A perversidade é típica das ditaduras. E adeus Sete Quedas.

Mas agora há democracia no Brasil. Democracia para poucos, para quem tem dinheiro, mas você pode andar na rua sem ser preso. Ou não pode? Pode falar do que quiser, principalmente se for de futebol, não é? E pode ir para os estádios, gritar bastante; andar pelado durante o carnaval, coisas assim...

Pode até ter o seu blog ou site, desde que seja comedido, caso contrário estará sempre apreensivo porque o Grande Irmão do Norte poderá mandar uma mensagem de desagrado para o Pequeno Vassalo do Sul e você poderá ter o seu veículo de comunicação bloqueado. Motivos não faltarão: você poderá ser acusado de terrorismo virtual, por exemplo. Democracia é isso. Você até pode votar naquelas máquinas suspeitas.

Mas nesta democracia você não pode evitar que o governo democrático destrua a Natureza. Poderá gritar, escrever, amarrar-se em uma das árvores do Xingu, xingar a Dilma – que é apenas um instrumento – mas nada disso adiantará. Depois que o governo democrático decidiu, decidido está.

Agora mesmo, mais de 60 organizações ambientais do Pará estão denunciando a liberação da licença ambiental para a destruição da natureza – também apelidada de usina hidrelétrica de Belo Monte - como sendo o primeiro grande crime da atual democracia, versão Dilma Roussef. E o Ministério Público Federal quer cassar essa espúria “licença ambiental”, que só aconteceu depois que o presidente do IBAMA foi demitido.

Notícia no jornal Norte do Pará:

“O MPF entrou com uma ação civil pública ambiental, com pedido de liminar, contra o Ibama, a empresa Norte Energia e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para que seja suspensa imediatamente a Licença de Instalação e a autorização de ‘supressão de vegetação’ emitidas pelo Ibama para obras do complexo hidrelétrico de Belo Monte.

“Os procuradores federais também pretendem que seja imposta à empresa Norte Energia a obrigação de cumprir todas as condicionantes previstas na Licença Prévia 342/2010 antes de requerer novamente a Licença de Instalação, sob pena de multa diária. Ao Ibama, que seja determinado que se abstenha de emitir uma nova Licença de Instalação, enquanto as condicionantes previstas não forem integralmente cumpridas e que o BNDES não repasse qualquer tipo de recurso enquanto as Ações Civis Públicas contra o empreendimento estejam tramitando.”

Você duvida que essa liminar não seja cassada?

A construção de Belo Monte é um crime ambiental. O maior que será perpetrado no Brasil. Dilma, o PT, o governo, os aliados do governo, as empreiteiras interessadas, as multinacionais interessadas, todos eles sabem disso. Mas farão de tudo para construir Belo Monte. Mesmo que contra a lei, acima da lei ou fora da lei. Para governos democráticos como o nosso, lei ambiental, ecologia, ecossistema, meio-ambiente são expressões somente usadas em época de eleição.

Eles não estão interessados com as conseqüências do que estão planejando; o que importa é o lucro.

Eles pouco estão ligando para a Ariranha, a Onça, o Jacaré, o Boto Cor de Rosa, o Guará e tantas outras espécies da fauna paraense.

Eles não estão preocupados com a Orquídea, a Mamorana, a Andiroba, a Copaíba, o Ajiru, o Muruci, o Cajueiro... Para eles, flora é sinônimo de lucro.

Eles não estão nem aí para todas aquelas etnias indígenas que serão desalojadas da sua terra ancestral e legítima.

Nesta democracia é assim: o governo não toma conhecimento do povo, da flora ou da fauna do seu país. Para os que governam o Brasil, país significa um território e território um produto a ser vendido, trocado leiloado pelo maior preço. O que estiver dentro do território não interessa. Ou somente interessará se também representar um bom negócio.

Haverá guerra.


• Poeta, jornalista e escritor

Cheiro de café

* Por Abílio Pacheco

Não há nada que mais me pareça com a crônica que o cheiro do café.
É uma metáfora olfativa, sinestésica; não deveria explicá-la. Fico tentado a encerrar o texto por aqui. Continuo.Afinal posso até escrever contos curtos, mas ainda não optei por treinar as crônicas curtas, embora elas pareçam correr no meu dia a dia. Quem sabe eu tente ainda escrevê-las.
O cheiro do café: matutino, fresco, suave, de leve amargor… Caminhando pelo condomínio pela manhã, fazendo academia, assistindo ao noticiário matutino ou tentando se fechar do mundo num escritório/gabinete é sempre esse gostinho que chega às narinas trazendo um novo dia, as novidades do dia. Mesmo os barulhos da cidade chegam com o café e, antes dele, o seu cheiro.
A crônica seria esse agradável sabor de fragrância noviça e breve. Relativamente pontual e tão ligada ao presente. Logo surgindo e logo esvaecendo, mas sempre retomada.
A crônica, a despeito de ser chamada gênero menor, tem seu mistério. Mesmo quem não gosta de café, gosta de seu cheiro, mesmo quem não aprecia literatura ou não tenha hábito de ler, curte uma crônica. Se bem usada, a crônica traz para literatura o leitor iniciante, como o cheiro do café chama para a mesa, convida para uma boa conversa e, mesmo não o bebericando, a mesa fica rodeada e o diálogo flui.
A crônica, atrativa… logo o leitor prova de toda literatura: haicais, sonetos, poemas mais longos, contos, romances…

• Professor de Literatura da Universidade Federal do Pará, escritor e revisor de textos

sábado, 29 de janeiro de 2011




Leia nesta edição:

Editorial – Pensamento em comunidade..

Coluna Direto do Arquivo – Laís de Castro, conto “Velha leoa”.

Coluna Clássicos – William Blake, poema “Londres”.

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, crônica “Sílvio José”.

Coluna Porta Aberta – Leonardo Boff, artigo “É dando que se recebe?”.

Coluna Porta Aberta – Luiz Carlos Monteiro, crônica “Carlos Pena Filho: 50 anos de memória”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Pensamento em comunidade


O escritor é uma usina de idéias, ou pelo menos tem que ser, caso pretenda sustentar essa condição. Um dos seus maiores dramas, todavia, é quando se senta junto da sua mesa de trabalho, diante de uma folha de papel em branco, ou, o que é mais comum nesta era da informática, à frente da telinha do computador, mas não sabe o que escrever. Isso acontece. E ocorre com muito maior freqüência do que o leigo possa imaginar.

Às vezes, nem é falta de assunto. Não raro, o problema decorre exatamente por causa inversa a essa, ou seja, excesso de temas que se atropelam na mente do atônito redator, sem que este se decida por um. Boa parte das pessoas com as quais converso a respeito confessa que, em dias como esse, simplesmente desiste de escrever e vai fazer outra coisa.

E se o sujeito não pode adiar? Se tem compromisso com algum jornal, ou editora, ou seja lá com, quem for, de entregar o texto, pronto e revisado, naquele mesmo dia e tem poucas horas, ou nem isso, para cumprir a tarefa? Nesse caso, a crônica, artigo ou seja lá o que for têm que ser arrancados a fórceps. É o momento em que bate a insegurança. O redator opta por determinado assunto, mesmo achando que não o pesquisou o suficiente para não cometer erros de informação, respira fundo e põe mãos à obra, mesmo a contragosto.

A insegurança é a maior inimiga do escritor. Trata-se de conversa mole, dessas para boi dormir, a afirmação de alguns que, na hora que estão escrevendo, não estão nem aí para quem vai ler. Estão! Sempre estão! E esta é sua fonte de angústia. Não se dão conta de que, aquele texto que julgam vazio e sem paixão, e que não gostam quando dão por concluído, mas mesmo assim encaminham ao jornal, ou sabe-se lá para quem com o qual se comprometeu, é exatamente o que tende a agradar mais o leitor. É certo que isso nem sempre acontece. Mas, comigo, ocorre com tamanha freqüência, que até já considero uma espécie de regra.

Frustro-me, a todo o momento, com textos que elaboro com o máximo esmero, rigorosamente corretos em todos os aspectos, originais e criativos, que aprecio tanto a ponto de duvidar que fui eu que os produzi, e que, no entanto, merecem inúmeros reparos dos seus destinatários ou, pior, passam batidos, como se sequer tivessem sido escritos Isso é de doer! Como em tudo na vida, em literatura, também, há gostos para tudo.

Quanto a essa história de alguns, que garantem que quando estão escrevendo, não se preocupam nem um pouco com quem vai ler, é pura balela. Como não se preocupar?! Escrevemos sempre para os outros e não para o próprio deleite. Textos particulares, que não são voltados a olhares indiscretos, existem, sim, mas em bilhetes para a esposa ou empregada, em registros em nossos diários e coisas desse tipo. Mas os literários... ora, ora, ora, nenhum escritor é tão maluco a ponto de fazer literatura para si, e só para si! Isso não faz o menor sentido.

O filósofo Emmanuel Kant me dá razão, nesse aspecto (como se ainda fosse necessário buscar apoio tão ilustre para uma constatação tão óbvia). Escreveu: “Para onde iriam nossos pensamentos e qual seria sua justeza se não pudéssemos pensar de algum modo em comunidade com os outros; a quem comunicaríamos nossas reflexões, assim como eles informariam de suas idéias?”. Pois é, essa é a lógica. Esse é o objetivo da literatura, ou seja, o de “pensar em comunidade”.

Por tudo isso é que fico decepcionado (para não dizer furioso), quando escrevo textos que me dão trabalho imenso de pesquisa e de revisão, posto-os neste espaço, que como o próprio nome diz, é voltado, exclusivamente, à Literatura, e ninguém dá a mínima para eles. E quando reclamo dessa omissão, ainda há quem interprete minha reclamação como “surto exacerbado de vaidade”. Vaidoso eu sou, de fato, como ademais todo intelectual, e por extensão todo escritor, também o é. Mas o que me decepciona e irrita é a perda dessa preciosa oportunidade de “pensar em comunidade”, mencionada por Kant. E, pior, isso acontece num espaço que eu criei e que me dá tanto trabalho para manter.

Se pessoas cultas e com grande facilidade de expressão tratam a literatura com tamanho descaso e desdém, o que esperar da massa inculta e ignara? Podemos nos queixar do baixo índice de leitura do brasileiro se damos nossa parcela de contribuição nesse descaso, nesse desleixo, nesse relaxo cultural? Será que não estamos passando aquela mensagem subliminar do “faça o que falo, mas não o que faço?”.

Este espaço foi idealizado para ser interativo. À medida que deixa de ter essa interatividade, perde, até mesmo, a razão de existir. Exibir por exibir meus textos é coisa que, posso fazer com muito mais vantagens e menos trabalho do aqui. Por isso renovo o apelo (mesmo ciente de pregar no deserto) para que os “participantes” deste espaço o sejam de fato. Ou seja, participem, ora bolas!

Ninguém está aqui buscando a fama, que é tremenda enganação e que frustra os que apostam nela. Aliás, Hannah Arendt escreveu a propósito:
“Nada mais efêmero em nosso mundo, nada de mais precário que esta forma de conquista conferida pelo renome. Nada ocorre com tanta rapidez e facilidade do que o esquecimento”. Para sermos de vez esquecidos basta reles piscar de olhos. É só deixarmos de aparecer por certo tempo, ou de escrever, ou de nos comunicarmos, para que em três tempos esqueçam da nossa existência. Que tal pensarmos com maior freqüência em comunidade? Afinal, este é o objetivo primário de todos os tipos de comunicação, entre os quais, óbvio, a literatura.

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk



Velha leoa

* Por Laís de Castro


Foi quando joguei meus óculos de pesada miopia pela janela do ônibus. Dali para a frente, não precisaria ver mais nada. Aquela música, o batuque, todos aqueles instrumentos de lata e couro até agora cadenciam as batidas do meu coração num benéfico ritmo que me embala e anima. Comemora-se a liberdade do opressor e o nascimento de um novo país. Dia 12 de setembro de 1948, República dos Diamantes: no extremo norte da malfadada América do Sul, o sonho invade o ar como a fumaça das cigarrilhas, esse é nosso país e vai dar certo, que de ilusão também se vive e ninguém corta ilusão com faca. A Amazônia brasileira abaixo, o oceano acima, uma colônia francesa a oeste, a possessão holandesa explorada a pleno vapor a leste. O que farão eles com seu pequeno país, espremido entre tantas forças, ensanduichado entre duas colônias paupérrimas, o mar imenso e uma floresta. Importa, mas não importa e seria curioso, se não fosse trágico.

Esses caribenhos são duros na queda, têm personalidade, mas não dinheiro. São honestos, mas há focos de corrupção, feito pontos de catapora que, de repente, podem se unir sobre toda a superfície da pele e da terra daquele país ainda limpo, se eu acreditasse em deuses faria promessas pela salvação terrena daquela gente de bom senso e ótima vontade. No entanto e apesar disso, as máquinas das quatro indústrias que não se retiraram com a independência estão velhas e sem lubrificação, feito a alma deles que chega até aqui sucateada de tantas lutas, o coração coberto da poeira das estradas que levaram à libertação, o estômago vazio como as lojas, os pés sangrando e feridos como as mentes, tantas são as humilhações desde que se tornaram colônia de um país forte e cruel.

Nessa jardineira em que me meti depois dos dois dias de festas, todos falam espanhol, não dou um pio, para não ser identificada como uma estranha.

Enfiar a cabeça como avestruz num espaço que a luta não destruiu, que o sangue não manchou, entre os sonhos virgens daqueles ribeirinhos que o arrastão do horror das últimas lutas e o fugaz êxtase da vitória não embriagaram, carregando na mala a certeza de que óculos e tortura nunca mais, porque o que de pior e de melhor poderia ter visto, já vi.

A menina mais velha varre o terreiro de terra batida, lisa e dura como uma bola de bilhar, na faixa estreita que se fez morada, entre o caudaloso rio Cournatyne e a floresta tropical úmida. A casa de toras, o fogão de barro, as cadeiras toscas e uma rede. Uma só, mas logo haverá outra, porque as cordas vêm sendo cuidadosamente trançadas pelas mãos do irmão, artesão nato, perfeito, detalhista e cuidadoso. Ninguém lhe ensinou nada. Um dia, muitos anos depois deste, alguém lhe dará papel e tesoura e o menino se tornará um fenômeno, mas este dia está longe, por enquanto ele tece redes e canta a música dos bichos.

Tudo começou quando o pai e um irmão se puseram a caminho, na barcaça, e apearam onde o peixe era farto, bem longe de tudo e de todos, para uma pescaria e nada mais. Sem esperança, foram ficando e tocaram a vida como se toca a canoa, primeiro uma choupana, depois uma casa de madeira, frutos da floresta, sustos e medos dos bichos bravios que apareciam repentinamente, mas aqui sem mulher não dá para viver e se a gente for buscar duas na cidade. Duas mulheres, duas casas, dois anos e dois filhos depois a mulher do irmão encasquetou que ali naquela pobreza de comer peixe e fruta não vivia mais e foram embora na barcaça em que vieram. Na mesma barcaça que deixava ali, em regime de escambo, pleno século XX, o açúcar, o sal, um pequeno espelho e um sabonete uma vez, fósforos, melhoral e panos velhos de cama, mesa e banho, roupas próximas de trapos, contudo ainda de serventia. O tempo foi passando e entre os filhos nascedores e morredores restaram seis, os outros quatro estão enterrados atrás do mulungu, “mi padre no tenia ni pico para trabajar la tierra, tubo que usar un palo para hacer los agujeros”.

As crianças não têm nome nem fome, não têm documentos nem lamentos, não têm televisão mas o rio, a floresta e o pôr-do-sol se encarregam dos mais lindos espetáculos diários para seus olhos ávidos de novidades. Não tomam vacinas, mas não pegam piolhos dos colegas de escola, quem nunca pegou que levante a mão agora ou cale-se para sempre. Os dias não são numerados e nem batizados com nomes arbitrários, ninguém sabe se é domingo ou segunda-feira, o passar do tempo só se revela quando o calor vira o frio, a chuva vira sol, a lua cheia clareia as noites desenhando o perfil das árvores sobre as águas do rio e a minguante escurece tudo, enchendo de fantasmas a densa selva ali do lado. Ninguém vai ponderar o esvair de trinta janeiros ou de dezenas de natais, não há carnavais nem dias de finados, muito menos eleições ou revoluções, políticos infestados de poder, glória ou afundando como machado sem cabo em águas turvas.

Num dia qualquer, ao ver, da proa da barca, a menina varrendo o terreiro, um marinheiro desembarcou e pediu pra ficar. O pai vislumbrou ajuda naqueles braços fortes e um macho para cuidar da filha, ele andava cansado de pescar e caçar, os meninos demoravam a crescer. O homem da água doce veio com disposição dobrada, trouxe martelo e pregos, fez uma casa de madeira e vários filhos, eu gosto desse lugar, mas preciso comer galinha e ovos, trocou cem quilos de peixe por duas poedeiras com seu ex-capitão e foi daí que passou a existir um insólito galinheiro em plena selva, na distante década de 50, daquele século XX que ninguém verá mais.

Era assim quando eu cheguei imaginando que não haveria de existir nada mais a ver ou ouvir, nada mais a buscar além da paz daquelas margens, o rio azul descendo em vogas, como os sonhos. Pois havia. Acostumei à pouca roupa, a lavar a cabeça e os dentes com joá, você vai ver é melhor do que pasta de dente da cidade que um dia a barca deixou.

Criei defesas contra os borrachudos, os marimbondos-cavalo e outros monstros voadores e chupadores de sangue, que existem lá às toneladas e hoje nem vejo. Embalei os meninos menores com histórias de fadas e heróis que um dia eles iriam conhecer. E inventei que todos precisavam saber ler e escrever. Haja peixe pra trocar por lápis, cadernos e cartilhas. Haja peixe pra trocar por revistas, que um deles se tornou curioso. Haja peixe para a primeira viagem, que o outro quis ver a tal da cidade. Haja peixe para trocar por batom, pois a vaidade faz parte do inconsciente coletivo feminino.

As notícias políticas também chegavam, acérrimas. Eu me embrenhava pela mata, com medo do mundo real. Sentia a proteção da escuridão e dos bichos, seus olhos sobre mim, mas eles nunca atacam como os humanos, apenas se defendem, como a natureza.

A cidade estava chegando lá e eu tinha pavor, na fraqueza de meus já adiantados anos, não sabia mais quantos, a pele amassada feito um papel de seda velho, as pernas, antes torneadas e agora fornidas, os passos já trôpegos, o cabelo mais ralo e os olhos míopes sem os óculos que atirei longe. Primeiro veio a equipe de televisão. Por quatro longas horas me mantive entocada num buraco da floresta do entorno, que já conhecia palmo a palmo. Depois veio o jornal. E a revista. Trazendo balas, doces e brinquedos vagabundos, uma toalha de mesa. Davam de presente, para estragar os dentes dos meninos, o meu humor e excitar o consumo, nós que nada precisávamos, tínhamos esquecido o mundo e sido por ele esquecidos.

Queriam levar meu diário, de mais de vinte anos (imagino, pois também acostumei a não contar o tempo). Não deixei, fingindo de brava, escondendo assim minha fragilidade interior. Deixei tirar uma foto só, sentada no bote de tronco, meio de longe. Registraram em acetato e celulose meus olhos azuis e o cabelo esbranquiçado que guardava alguns sinais do antiqüíssimo louro dourado natural, que seduzia os tolos. Todavia nunca souberam que eu tinha um passaporte vencido do império britânico, era parte do colonizador que submetera o povo local a privações, por mais de um século. E expiava ali a culpa de ter servido a essa maldita causa por três décadas. Meu nome não digo nem sob tortura, os meninos me chamam de clara.

Eu me tornei uma velha e sábia leoa da selva. Atacar não ataco, mas sei me defender.

(Conto do livro “Um velho almirante e outros contos”)

* Jornalista, 36 anos, está há 18 no grupo Abril (3 prêmios Abril). Trabalhou, ainda, 8 na Editora Três (sob Luís Carta), 11 na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e, agora, é da Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano.



Londres

* Por William Blake

Vagueio por estas ruas violadas,
Do violado Tamisa ao derredor,
E noto em todas as faces encontradas
Sinais de fraqueza e sinais de dor.

Em toda a revolta do homem que chora,
Na Criança que grita o pavor que sente,
Em todas as vozes na proibição da hora,
Escuto o som das algemas da mente.

Dos Limpa-chaminés o choro triste
As negras igrejas atormenta;
E do pobre soldado o suspiro que persiste
Escorre em sangue p'los palácios que sustenta.

Mas nas ruas da noite aquilo que ouço mais
É da jovem prostituta o seu fadário,
Maldiz do tenro filho os tristes ais,
E do matrimônio insulta o carro funerário.

William Blake, in "Canções da Experiência" Tradução de Hélio Osvaldo Alves

• Poeta e pintor inglês do século XVIII



Silvio José

* Por Urda Alice Klueger

(Para Sílvio José Bittelbrunn Sardanha)

Tenho o privilégio de ser vizinha de Sílvio José há quase ano e meio, o que significa que o conheci muito menino – atualmente, com dez anos, esticou um bocado, está ficando com jeito de mocinho e, além de ser bom aluno na escola, recém fez sua primeira comunhão com a solenidade e a seriedade de um pequeno noivo.
Não sei muito do seu passado, mas imagino que um dia sua mãe o recebeu da Cegonha como o grande prêmio da vida dela, e que cuidou daquele bebezinho e do menino que veio depois com tal desvelo e carinho que não havia como ele não se tornar o menino educado, prestativo e gentil que acabei conhecendo há menos de ano e meio, pois sempre ele foi assim comigo e com meu cachorro Atahualpa, desde que nos mudamos para a nossa nova casinha que hoje é rosa e branca e onde somos tão felizes!
Temos, acima, uma pequena biografia de um menino bastante comprido e alto para a sua idade, tendo já no rosto e no corpo as marcas certas do moço bonito que vai ser, e sempre é um prazer estar com ele, mas há algo nele que o diferencia dos outros meninos que conheço, e é sobre tal coisa que quero falar.
Como menino normal do seu tempo, Sílvio José tem passado muitas e muitas horas da sua infância brincando com videogame e com outros jogos assemelhados.
- E com que brincas? –perguntei-lhe, curiosa.
Ele brincava com lutas de monstros, pelo jeito as suas preferidas.
- E como foi que aprendeste espanhol?
Ele me explicou que havia diversas probabilidades de línguas para escolher, quando se abria os jogos com que brincava. Menino alfabetizado e morador do Brasil, a lógica é que escolhesse a língua materna, a portuguesa, este português que é língua de Camões e de Saramago e que tem palavras únicas no mundo sobre as nuances de determinados sentimentos. Uma lógica de pernas mais fracas nos diria que talvez escolhesse as línguas ancestrais, as que seus antepassados trouxeram um dia da Alemanha e da Itália – mas não, Sílvio José estava mais conectado ao seu tempo. Mesmo sem saber nada destas coisas de Mercosul e de outras necessidades futuras, ele firmemente optou pelo espanhol, e fiquei admiradíssima quando o vi dirigir-se a mim pela primeira vez com expressões novas:
- Hola, como estas? – no mais puro sotaque da Espanha. Embatuquei – numa cidade como a nossa, onde as pessoas ainda marcam passo nas línguas dos imigrantes e na do dominador decadente, era estranhíssimo ver aquele menino falar com tal desembaraço a utilíssima língua espanhola que tão importante será nestes tempos que já começaram, o tempo da integração da América dita Latina.
- Como aprendeste esta língua? – quis saber.
- Jogando videogame! – explicou-me com candura
- Mas sozinho?
- Não, com os jogos de monstros!
Claro está que ele ainda está longe de poder ser um professor do Instituto Miguel de Cervantes, mas Sílvio José está falando o mais legítimo portunhol, ainda misturando vocabulários, mas com noções de gramática, excelente entonação, conhecimento de expressões e até de gíria. E tudo isto aprendeu com os monstros do seu videogame, sem nenhuma pessoa a lhe dar nenhuma aulinha. É ou não é uma pessoa especial esse meu pequeno vizinho? Tento imaginar onde será o limite do futuro de um menino assim! Haverá limite? E ainda há quem diga que as crianças não gostam de aprender!

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR

“É dando que se recebe?”


* Por Leonardo Boff

Estamos em tempos de montagem de governos. Há disputas por cargos e funções por parte de partidos e de políticos. Ocorrem sempre negociações, carregadas de interesses e de muita vaidade. Neste contexto, se ouve citar um tópico da inspiradora oração de São Francisco pela paz “é dando que se recebe” para justificar a permuta de favores e de apoios onde também rola muito dinheiro. É uma manipulação torpe do espírito generoso e desinteressado de São Francisco. Mas desprezemos estes desvios e vejamos seu sentido verdadeiro.

Há duas economias: a dos bens materiais e a dos bens espirituais. Elas seguem lógicas diferentes. Na economia dos bens materiais, quanto mais você dá bens, roupas, casas, terras e dinheiro, menos você tem. Se alguém dá sem prudência e esbanja perdulariamente acaba na pobreza.

Na economia dos bens espirituais, ao contrario, quanto mais dá, mais recebe, quanto mais entrega, mais tem. Quer dizer, quanto mais dá amor, dedicação e acolhida (bens espirituais) mais ganha como pessoa e mais sobe no conceito dos outros. Os bens espirituais são como o amor: ao se dividirem, se multiplicam. Ou como o fogo: ao se espalharem, aumentam.

Compreendemos este paradoxo se atentarmos para a estrutura de base do ser humano. Ele é um ser de relações ilimitadas. Quanto mais se relaciona, vale dizer, sai de si em direção do outro, do diferente, da natureza e até de Deus, quer dizer, quanto mais dá acolhida e amor mais se enriquece, mais se orna de valores, mais cresce e irradia como pessoa.

Portanto, é “dando que se recebe”. Muitas vezes se recebe muito mais do que se dá. Não é esta a experiência atestada por tantos e tantas que dão tempo, dedicação e bens na ajuda aos flagelados da hecatombe socioambiental ocorrida nas cidades serranas do Rio de Janeiro, no triste mês de fevereiro, quando centenas morreram e milhares ficaram desabrigados? Este “dar” desinteressado produz um efeito espiritual espantoso que é sentir-se mais humanizado e enriquecido. Torna-se gente de bem, tão necessária hoje.

Quando alguém de posses, dá de seus bens materiais dentro da lógica da economia dos bens espirituais para apoiar aos que tudo perderam e ajudá-los a refazer a vida e a casa, experimenta a satisfação interior de estar junto de quem precisa e pode testemunhar o que São Paulo dizia:”maior felicidade é dar que receber”(At 20,35). Esse que não é pobre, se sente espiritualmente rico.

Vigora, portanto, uma circulação entre o dar e o receber, uma verdadeira reciprocidade. Ela representa, num sentido maior, a própria lógica do universo como não se cansam de enfatizar biólogos e astrofísicos. Tudo, galáxias, estrelas, planetas, seres inorgânicos e orgânicos, até as partículas elementares, tudo se estrutura numa rede intrincadíssima de inter-retro-relações de todos com todos. Todos co-existem, inter-existem, se ajudam mutuamente, dão e recebem reciprocamente o que precisam para existir e co-evoluir dentro de um sutil equilíbrio dinâmico.

Nosso drama é que não aprendemos nada da natureza. Tiramos tudo da Terra e não lhe devolvemos nada nem tempo para descansar e se regenerar. Só recebemos e nada damos. Esta falta de reciprocidade levou a Terra ao desequilíbrio atual.

Portanto, urge incorporar, de forma vigorosa, a economia dos bens espirituais à economia dos bens materiais. Só assim restabeleceremos a reciprocidade do dar e do receber. Haveria menos opulência nas mãos de poucos e os muitos pobres sairiam da carência e poderiam sentar-se à mesa comendo e bebendo do fruto de seu trabalho. Tem mais sentido partilhar do que acumular, reforçar o bem viver de todos do que buscar avaramente o bem particular. Que levamos da Terra? Apenas bens do capital espiritual. O capital material fica para trás.

O importante mesmo é dar, dar e mais uma vez dar. Só assim se recebe. E se comprova a verdade franciscana segundo a qual ”é dando que recebe” ininterruptamente amor, reconhecimento e perdão. Fora disso, tudo é negócio e feira de vaidades.

* Leonardo Boff é teólogo e autor de “Tempo de Transcendência: o ser humano como projeto infinito” e “A oração de São Francisco”, Vozes (2009 e 2010), entre outros tantos livros de sucesso. Escreveu, com Mark Hathway, “The Tao of Liberation exploring the ecology on transformation”. Foi observador na COP-16, realizada recentemente em Cancun, no México.

Carlos Pena Filho: 50 anos de memória

* Por Luiz Carlos Monteiro

Encerrou-se no dia 16 de janeiro último a exposição Carlos Pena Filho: 50 anos de memória. Passaram pelo Santander Cultural cerca de 10.000 pessoas, para apreciar esculturas, pinturas, painéis fotográficos, livros e objetos pessoais do poeta morto precoce e tragicamente. A exposição, promovida pelo governo do estado e executada pela agência publicitária Atma Promo, abrigou eventos paralelos, como a realização de quatro mesas-redondas sobre a obra de Carlos Pena e a visitação de alunos de ensino médio, que dispuseram de apresentação teatral e musical curtas e simultâneas.

As mesas-redondas, todas com a nossa mediação, ocorreram no intervalo de tempo entre os dias 30 de novembro de 2010 e 12 de janeiro de 2011. Na primeira delas, com as palestras irreverentes e bem-humoradas de Ângelo Monteiro e Paulo Gustavo, discutiu-se o lirismo em Carlos Pena Filho como uma das tendências mais fortes e características de sua poesia. A segunda mesa, contando com Marcus Accioly, Irma Chaves e Homero Fonseca, ressaltou a poesia participante de Pena Filho no seu livro Nordesterro, como uma escrita que tematiza de preferência o mundo rural pernambucano em suas vertentes ideológicas e sociais.

No terceiro encontro, os expositores Carlos Newton Júnior e Marco Polo Guimarães dedicaram-se a analisar como a pintura influenciou a obra do poeta de Cinco aparições. Certa empatia com as artes plásticas aparece referencialmente em poemas e sonetos que escreveu, desdobrando-se na ocorrência de cores e paisagens de feitio local ou universal. Aparece ainda, de modo sintomático, na sua forte relação de amizade com pintores do Recife e de Olinda. Além do mais, a pintura já se fazia presente em sua própria casa, sabendo-se que ele foi casado com a artista plástica Tânia Carneiro Leão.

A conversa final teve a participação de Cida Pedrosa e Marcelo Pereira, enfocando o Guia prático da cidade do Recife. Cida Pedrosa recitou trechos do Guia prático, voltando-se mais para a boemia recifense a partir dos anos 1980. Já Marcelo Pereira estabeleceu elos entre a década de 1950 e os dias atuais em termos de configuração urbana e histórica da cidade. O fato é que conseguimos, apesar de todos os contratempos que envolvem hoje os eventos culturais, realizar satisfatoriamente e com afluência de público, a manutenção da memória viva de Carlos Pena Filho no cerne destes quatro encontros.

(Diário de Pernambuco, 28 de janeiro de 2011).

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com