Ladrões de vida
* Por Cecília França
Passara mais de sessenta e cinco
anos ao lado dele numa vida que considerava vitoriosa, emocional e
materialmente. No entanto, a imprevisibilidade a surpreendia agora. Aqueles
dois corpos estendidos na estrada de chão punham fim à sua certeza de morte
tranqüila, tão esperada, quem sabe durante o sono. Naquela idade, imaginava,
nada mais de trágico poderia acontecer a ela ou ao marido.
Octogenários, já haviam superado
as armadilhas da juventude e as rixas que inevitavelmente permeiam a vida e
desencadeiam desafetos que podem promover tragédias. Até então, estava certa de
que restava a eles dormir todas as noites na expectativa de não mais despertar.
Esse era o esperado, o correto. Mas dois tiros acabavam de roubar-lhe esse
sonho tão bem-moldado. Dois balaços fatais levavam-lhe não apenas o companheiro
fiel como também o fruto único daquela união.
Ambos jaziam de bruços, inertes,
já com os membros rígidos. Haviam deixado a casa da cidade na manhã anterior
rumo ao sítio da família e, daquela vez, não retornaram às sete da noite
ansiando pelo jantar. Os corpos só foram encontrados na manhã seguinte.
Latrocínio, diziam os policiais. Incompreensível para ela. Bastava o que via:
dois corpos sendo lacrados, cobertos por uma mistura de sangue coagulado e
terra.
O rosto de seu querido
companheiro, por sorte, em nada fora deformado pelo tiro. Parecia até que lhe
sorria, o que a fez pensar que, talvez ele, de onde estivesse, já soubesse que
ela não tardaria em
reencontrá-lo. Não haveria muito tempo para sofrer. Era o que
esperava.
Ao ver as urnas já fechadas
sentiu o peito encolhendo, enchendo-se de uma dor que não deixava espaço para o
trânsito do ar. Viu-se desfalecendo à espera de uma outra urna que a acolhesse.
Mas seu corpo não quis se entregar e ela foi levada de volta para casa como uma
sonâmbula. O desfecho de sua história de vida, de roteiro tão lapidado e
apropriado, o qual ela imaginava dominar e agora pregara-lhe uma peça,
trazia-lhe desconforto impossível de ser amenizado.
Sentou-se no sofá e lá está ainda
hoje, com os olhos parados no dia em que lhe roubaram o final da vida.
*Jornalista.
Inspira-se em fatos do cotidiano para escrever seus contos.
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