Reconciliação
com o passado
* Por Pedro J. Bondaczuk
A poesia entrou cedo em minha vida. Eu tinha de
quatro para cinco anos, quando meu pai iniciou-me nessa arte. Profundamente
religioso, evangélico, fazia-me decorar versos e mais versos de poetas que falavam
de Jesus e de seus ensinamentos. E lá ia eu, todo orgulhoso, a exibir-me, feito
um pavão, invariavelmente recompensado, depois, por beijos e mais beijos das
tias, de suas amigas e de minha carinhosa avó paterna.
Tão logo aprendi a escrever, comecei a perpetrar
meus próprios versos. Rimados, claro, mas sem nenhuma noção de métrica. Pudera!
As rimas eram pobres, paupérrimas, coisas bem de criança, tipo “dor, flor e
amor”. Ou “canção e coração”. Ou “cruz e Jesus”. Diante dos elogios, porém,
julgava-me um grande poeta, um Drummond, um Bandeira, um João Cabral de Mello
Neto e vai por aí afora. E, ainda por cima, precoce. Tolices de menino, claro.
Um pouco mais crescido, já adolescente,
desmanchei-me em versos melosos, quando não dramáticos, para um número incontável
de meninas, pelas quais me julgava apaixonado. Algumas caíam na lábia. A
maioria, porém, ignorava-me solenemente. Nada novo, como se vê. Raros eram os
rapazes na época que não perpetravam arremedos de poesias para as namoradinhas
(ou candidatas a isso). A esse propósito, não sei quem escreveu, certa ocasião,
que, “quando apaixonados, até os cachorros latem em versos”. E, de fato,
parecem latir (ou quase).
Mas só fui mostrar uma certa aptidão para a poesia,
a que realmente merecia essa designação, por volta dos 17 anos. Foi quando
venci um concurso na escola, que tinha por volta de 50 candidatos. Ganhei, a
título de prêmio, o livro “Viola de Bolso”, de Carlos Drummond de Andrade, que
tenho até hoje, com dedicatória e tudo. E recebi muitos elogios do professor de
Português, o que massageou o meu ego. Mas por pouco tempo. Reservadamente, ele
fez tantos reparos no meu poema premiado, que me senti como o último colocado,
e não o primeiro.
Na ocasião, vaidoso como só, não percebi o bem que o
mestre tentou me prestar, por ver em mim um diamante bruto que precisava ser
devidamente lapidado. E põe lapidado nisso! Desde então, passei a compor com
regularidade e a registrar num caderno essas composições e não mais me limitar
a dar aquelas (ainda) canhestras poesias para as meninas (sempre com segundas
intenções, claro). O furor criativo atingiu o paroxismo e passei a guardar meus
versos, escritos em maços de cigarro, papel de embrulhar pão, guardanapos e
margens de revistas, em uma gaveta. Até hoje, tenho pilhas e pilhas desses
rascunhos à espera de revisão que espero um dia fazer.
Quando comecei a trabalhar como jornalista (e logo
de cara como editor), repudiei, de pronto, minha “obra”. Fiquei com vergonha
dela. Passei a achar meus versos infantis, caricatos, ridículos. Os tais
cadernos em que registrava meus poemas, nos mais variados estilos e formas, de
todas as tendências e escolas literárias – de parnasianos a concretistas, ora
rimados e metrificados, ora sem rima ou métrica, espontâneos, livres e com infinidade
de metáforas – se perderam por entre os meus papéis e livros, da minha volumosa
e caótica biblioteca. Mas não me livrei dos rascunhos que entupiam (e ainda
entopem) cinco ou seis gavetas. Pura preguiça! Passei vinte anos sem compor um
único verso. Dediquei, então, cada minuto da minha vida a construir uma
carreira jornalística, às voltas com os dramas e patifarias do cotidiano.
Nunca disse a nenhum colega de redação que era
poeta. Na verdade, jamais me considerei como tal (e ainda hoje tenho muitas
dúvidas a respeito). Lembro que em certa ocasião, o editor do caderno de Artes
& Variedades do jornal que então trabalhava quis me fazer uma “surpresa”.
Publicou, em uma edição de domingo, um poema meu, que não sei como lhe chegou
às mãos. Provavelmente, uma das minhas filhas encontrou os tais cadernos, que
eu julgava perdidos para sempre, e na empolgação com o que leu, enviou a tal
poesia à redação (nunca fiquei sabendo da verdade). Irritado, rompi relações
com o colega, com o qual jamais voltei a conversar.
Na oportunidade, não percebi o quanto havia de
generosidade nesse gesto daquele excelente editor. Agi com impulsividade e
ignorância, pelo que, hoje, certamente me arrependo. Voltei a compor há somente
uns oito anos, se tanto. Não com a regularidade desejável, já que o jornalismo
é extremamente absorvente (e avaro no que diz respeito a tempo). Recentemente,
juntei todos os cadernos daquele período de juventude em que respirei poesia.
Fiz uma revisão, aqui e ali, em alguns versos e consolidei aquela obra, que
julgava perdida (e que um dia quis que de fato estivesse) na memória do
computador. Claro que não tenho a desejável isenção para julgar essas
composições. Deixo a tarefa para a posteridade.
Tenho publicado (posto que homeopaticamente) esses
poemas em vários sites da internet (inclusive aqui, no Literário), com
surpreendente aceitação. Claro que, em termos práticos, se você não for um
Drummond, um Bandeira, um Jorge Luís Borges ou um Octávio Paz (entre outros)
não conseguirá viver de poesia. Creio que nem eles conseguiram. Nem ao menos
conseguirá publicar um mísero livro do gênero (a menos que banque uma edição do
próprio bolso, o que jamais farei com qualquer coisa que venha a escrever). As
editoras sequer aceitam ler os originais, quanto mais adquirir os direitos de
impressão. Lançar no mercado? Nem pensar!. Argumentam (não sem razão,
convenhamos) que poesia é “um produto invendável”. Parece mesmo que é.
A importância de tudo isso é a minha reconciliação
comigo mesmo. É o resgate de um passado que, tolamente, cheguei a tentar
repudiar (hoje entendo que não deveria). Não que esses milhares de poemas
tenham eventual valor literário (sinceramente, não sei se têm). Faço isso não
tanto por vaidade (embora essa seja uma característica de todo o artista, não
importa a arte e nem se é bom ou ruim), mas como homenagem ao meu pai,
recentemente falecido, que me iniciou nesse fascinante gênero.
* Jornalista,
radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual
Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do
Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe,
ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova
utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance
Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
Twitter:@bondaczuk
Perfeito, meu amigo! Em alguns casos devemos nos reconciliar com o passado, especialmente neste seu caso em particular. Confesso que na minha mocidade também me senti acanhado e não me atrevia sequer mostrar meus canhestros poemas temendo me expor ao ridículo. Ainda conservo guardado alguns deles.
ResponderExcluirContudo, se estou a anos-luz de distância dos grandes e consagrados poetas, pelo menos me envaideço de ser um teimoso apreciador desta nobre arte.