terça-feira, 31 de maio de 2011







Leia nesta edição:

Editorial – No peito e na raça.

Coluna À flor da pele – Evelyne Furtado, crônica, “Deslocamento”..

Coluna Observações e Reminiscências – José Calvino de Andrade Lima, crônica “A perda de um amigo e fortalecimento de outrem”.

Coluna Lira de sete cordas – Talis Andrade, poema “A revolta vermelha”.

Coluna Porta Aberta – Fabiana Bórgia, crônica “Procura”.

Coluna Porta Aberta – Raul Fitipaldi e Tali Feld Gleiser, artigo, “Vinte e três meses”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


No peito e na raça

O escritor brasileiro produz, publica, faz sua obra chegar às mãos dos leitores e conquista seu espaço no cenário da literatura nacional no peito e na raça. Não encontra (salvo raríssimas exceções) as facilidades que lhe deveriam ser concedidas, dada sua importância cultural, para esbanjar seu talento e produzir, produzir e produzir cada vez mais idéias e conceitos e assim contribuir para a elevação da cultura e do conhecimento geral do seu povo. E, ainda assim, é um dos mais criativos do mundo, embora muitos jamais consigam publicar sequer seu primeiro livro. Considero isso um desperdício inconcebível num país em que a educação, em sentido lato, continua sendo seu ponto vulnerável, seu “calcanhar de aquiles”.
As coisas, todavia, foram piores, muito piores, e não faz muito tempo. Imaginem a odisséia dos escritores brasileiros do século XVIII e dos primeiros anos do XIX, quando não havia no Brasil sequer uma única editora ou mesmo uma rústica gráfica que tivesse capacidade para imprimir um livro! Acresça-se a isso o fato da virtual inexistência no País de um potencial público leitor, já que as taxas de analfabetismo quase beiravam a totalidade da população.
Quem sabia ler e escrever era honrosa exceção, visto como fenômeno, por se tratar de raridade. Os livros vinham todos de fora e os entraves para sua aquisição eram enormes. Os dos nossos teimosos escritores tinham que ser impressos, está visto, no exterior, notadamente em Portugal, envolvendo custos proibitivos, inacessíveis para a maioria dos bolsos. Ainda assim, tivemos homens de letras notáveis, que consolidaram seus nomes na história da literatura brasileira aos quais, hoje em dia, não raro não damos o devido valor. Foram intelectuais de fibra, que conquistaram seu espaço, literalmente, no peito e na raça.
As coisas começaram a mudar em decorrência de um fato (como classificá-lo?), digamos, político-militar, ocorrido um hemisfério de distância daqui, na velha Europa, à revelia, portanto, do Brasil e, logicamente, dos brasileiros. Napoleão Bonaparte tomou, na marra, a coroa francesa, autonomeando-se imperador, e com uma fome impressionante de conquistas, só comparável à de Alexandre, o Grande, da Macedônia, entre os anos de 335 AC, quando iniciou suas campanhas bélicas e 323 AC, quando morreu. As tropas napoleônicas varriam a Europa, como vorazes nuvens de gafanhotos, conquistando país após país. Portugal, claro, também estava na mira do corso guerreiro.
Todavia, os portugueses levavam vantagem sobre boa parte dos países europeus. Contavam com colônias de além-mar, entre as quais, o Brasil. O então príncipe-regente, mais tarde Dom João VI, tomou uma decisão, na época muito contestada, mas que, no correr dos acontecimentos, se mostrou coerente e sábia. Decidiu transferir a corte portuguesa para uma de suas colônias, a com maior potencial de todas, Veio, com mala e bagagem para onde? Claro que para o Brasil.
Ao chegar ao Rio de Janeiro, o regente, que substituía a mãe, Dona Maria I, acometida de insanidade mental, baixou dois decretos de importância capital para nós, brasileiros. O primeiro foi o de abertura dos nossos portos às nações amigas. Mas é o segundo que nos interessa. E qual foi ele? Foi a criação, nesse mesmo ano de 1808, da Impressão Régia. Ou seja, determinou a instalação, no Rio de Janeiro, da primeira gráfica-editora em território brasileiro. É a partir daí que começa a história dessa agente de tamanha importância para nós, escritores, que possibilita, bem ou mal, a publicação e distribuição dos livros que escrevemos.
Estes e outros tantos fatos estão narrados num preciosíssimo volume, de 663 páginas, lançado recentemente, numa feliz parceria entre a Fundação Biblioteca Nacional, órgão vinculado ao Ministério da Cultura, e a Editora Unesp. Refiro-me ao livro “Impresso no Brasil – dois séculos de livros brasileiros”, obra coletiva de pesquisadores de instituições de diversos Estados. São 35 capítulos, na verdade 35 ensaios, abordando mais de duzentos anos de publicações ocorridas de Norte a Sul do País. São historiadas desde as primeiras tipografias, pequenas e rústicas, até as modernas e bem equipadas editoras atuais, que em nada ficam a dever a nenhuma outra existente nos países industrializados.
A introdução, a exemplo de toda a obra, é uma preciosidade. Traz um texto, super pertinente, do bibliófilo José Mindlin, falecido recentemente, sobre o qual já escrevi neste espaço (aliás, personalidade muito bem escolhida para esse fim, dado o profundo amor pelos livros que demonstrou ao longo de toda a vida), escrito em 2007, em que trata do centenário da Impressão Régia.
“Impresso no Brasil – dois séculos de livros brasileiros” analisa, entre outras tantas coisas, a história de editoras de grande importância, quer no passado, quer na atualidade, como Garnier, Melhoramentos, Civilização Brasileira, Companhia das Letras e Abril.
É uma obra essencial não apenas para os estudiosos de literatura, mas para leigos, ou seja, leitores em geral. Sua leitura, certamente, o conduzirá à mesmíssima conclusão com que iniciei estas reflexões. Ou seja, a de que o escritor brasileiro produz, publica, faz sua obra chegar às mãos dos leitores e conquista seu espaço no cenário da literatura nacional no peito e na raça. Foi assim no passado e, a despeito dos avanços, continua sendo do mesmo jeito, embora, possivelmente, em menores proporções.
Outro tema abordado, e que muitos escritores ainda desconhecem, é o que se refere a direitos autorais. Por fim, são analisados dois fenômenos editoriais, ambos campeões de vendas, ou seja, os livros de Paulo Coelho, que esgotam edições após edições mundo afora, e a série Harry Potter, da britânica J. K. Rowling, que empolga leitores brasileiros de todas as idades, mas, sobretudo, os jovens.

Boa leitura.

O Editor.




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Deslocamento

* Por Evelyne Furtado

Érica nasceu da imaginação de um escritor noir . Vivia em uma cidade cinza onde o sol era paisagem na parede. Deslizava entre ternos e olhares escuros, respirando segundo a vontade do criador.
Em muitas ocasiões o ar lhe faltava, em outras o tomava em golfadas. Páginas e páginas frenéticas davam lugar a lacunas decorrentes da falta de vontade do autor. A ansiedade a tomava em tais hiatos e para se acalmar fazia versos. Odes ao criador, resmungos impacientes, recados.
Em alguns momentos chegava a acreditar que tinha vida própria e saía por aí inventando figurino, mudando cor de cabelo, treinando novas atitudes. Mas de uma de uma hora para outra sentia que algo estava modificando seus passos.
O chamado do autor mudava outra vez a marcha e ela ganhava novos traços na personalidade, um olhar mais vago e missões inéditas ao fim das quais ganhava dias de bons sonhos e noites paradisíacas.
Imaginava-se contracenando com Humprey Bogart, pois era dada a ver romance através da fumaça e, assim, espargia tinta colorida nas linhas escritas por outras mãos deixando vestígios de seu sonho mais íntimo: ser a protagonista de uma comédia romântica.

• Poetisa e cronista de Natal/RN






À perda de um amigo e
fortalecimento de outrem

* Por José Calvino de Andrade Lima


Há dois anos, numa de minhas farras com um grupo de poetas, escritores e jornalistas, houve um acontecimento desagradável que me fez ficar sem animação em participar dessas festividades. Achei por bem mostrar aos leitores do Literário as cartas recebidas:

a) “Só um momento assim me faria enviar-te este. Estou desolado pelo inusitado acontecimento. Poderia ter ‘fonado’, não o fiz, preferi escrever-te, uma ação mais concreta, mais material. Nós não merecíamos o acontecido.
Um amigo tão bom, tão correto, tão leal e tão solidário como és; não considerei, foi um momento infeliz da minha vida, um desperdício de valores, uma má ação de minha parte, por fim uma amizade desperdiçada.
Espero que encontres outras amizades mais dignas de tua convivência.
Não penses que atribuo o ocorrido apenas à bebida, não. Minha capacidade de tolerância, de sociabilidade esvaiu-se, tão-só pelo inexorável da velhice, que a cada dia nos torna mais casmurro, mais triste, mais sorumbático.
Portanto quero que saibas: Perdi um bom amigo, mas a vida ainda é muito ampla diante de ti, tens ainda muitos dias pela frente, aproveita-os e não chores o Leite azedo que entornamos.
Adeus.”

b) “ Calvino, como costumo fazer, estou relendo todos os seus romances. No Grande Comandante, reli, com grande júbilo o prefácio por Maria do Carmo, sua filha: ‘ Porém, embora procure alertar ao próprio homem, dos seus próprios problemas, fica a tristeza de não conseguir resolvê-los, já que o ‘próprio homem’ não aceita a realidade e, mais adiante: ... mas também as futuras gerações, saibam que aqui, no Nordeste do Brasil, nasceu um homem, e com ele, uma obra. (M.C.).
Evidente que também o menino da rua (...), seria no porvir também um grande comandante!
Calvino, as aparências às vezes nos traem. Certa vez você sentenciou: ‘...você é um homem feliz! Eu ri; não sabias que dentro daquele invólucro havia uma alma atormentada, tropeçando ínvios caminhos, sem oriente adredemente colimado.
E agora voltando a você. Estive refletindo a seu respeito. Relendo seus livros com mais vagar, refleti nas simples palavras, no vocabulário de trato, meditações profundas, idéias afiadas, ferinas, às vezes de intuições filosóficas, inquirições surrealistas, um querer de quimeras, convicções de futuras realizações. Enfim, um caminho.
Concluindo: você nunca se aproveitou do que fez, não bajulou, não rastejou, sempre imune a conluios e panelinhas, tão comuns nas cenas dos teatros hodiernos exibidos a cansaço.
Enfim a convicção de que em breve seu trabalho virá à luz, isto porque você escreve de maneira muito pessoal, com estilo próprio, fugindo de imitações estéreis.
Cheguei à conclusão de que às vezes um incidente brutal como o acontecido ultimamente entre nós (de triste memória) venha estranhamente mais fortalecer nossa amizade, de minha parte eu me declaro como seu amigo, espero que você não guarde rancor e que a vida continue sem animosidades.”


* Formado em comunicações internacionais, escritor, teatrólogo, poeta, compositor, teólogo e rei do Maracatu Barco Virado. Como escritor e poeta, tem trabalhos publicados nos jornais: Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio, Folha de Pernambuco e em vários sites... Tem 11 títulos publicados e um (1) inédito. Todas edições esgotadas. Em 2007, integrou-se na Antologia (Poetas Independentes).






A revolta vermelha

* Por Talis Andrade

Os comunistas instauraram à bala
o Governo Popular Revolucionário
O primeiro governo marxista
das Américas visionário sonho
depois de cinco dias
terminou em prisão
tortura e morte
Nessas horas de medo
aparece o verdadeiro guerreiro
O cavaleiro sem medo
e sem mácula
os poderosos temem
porque o reverso
dos presos e dos carcereiros
o cavaleiro que tem como penacho
a altivez e a honra
É nas horas sombrias
quando todos se escondem
na cúmplice tranqüilidade do silêncio
que aparece o verdadeiro Homem
em nome da Liberdade e da Justiça

Veio Djalma Marinho redigiu
os habeas corpus
Djalma esqueceu
se quinhentos ou seiscentos
São Pedro pintado de verde
do alto da igreja do Alecrim
faça a contagem
Veio um anjo do Senhor de noite
abriu as portas do cárcere
Fora da cadeia os resgatados
exaltavam o anjo
que sem o poder das armas
foi capaz de quebrar os grilhões
pela força da palavra
pela força do nome

A Diógenes da Cunha Lima

Livro “Os Herdeiros da Rosa”.

* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).






Procura


* Por Fabiana Bórgia

Tenho evitado. Escrever. Pensar. Lembrar. Amar. Você. Evito o que eu não consigo evitar, por fazer parte de mim. Evito ser eu. Quero a distância longe de mim. Nós nunca somos os mesmos. Superamos? Sempre haverá uma marca em forma de conselho.

Às vezes, sinto como se estivesse nesta vida para acertar. Mas eu mereço errar. Sou alegria constante, apesar dos pesares. Sempre haverá o "apesar dos pesares" na minha alegria intensa de existir. Alegria quase infantil, mas desprovida da falta de propósitos, a coisa mais ingênua e gostosa que já conheci.

Eu, em plena sexta-feira, depois de tanta inércia de escrita, resolvi despejar um pouco do que quero dizer. Digo o que sinto e o que não sinto. E nem sei para quem. Por quê? Porque o tempo é curto para uma vida intensa. E o tempo é intenso para uma vida curta. Vida que eu ainda procuro. Desconheço. Mereço. E amo.


• Escritora por vocação e advogada por formação. Paulista por natureza e carioca por estado de espírito. Engenheira de sonhos: alguém em eterna construção. Autora do livro “Traços de Personalidade”



Vinte e três meses

• Por Raul Fitipaldi e Tali Feld Gleiser.


Acordar com um Golpe de Estado, seja onde for, é como abrir os olhos na Idade Media. É uma viagem no tempo à negação da civilização. É o atraso, é um passo humano em direção às cavernas, à intolerância e a miséria espiritual e física. Mas, quando o estupor do barulho nos acorda,quando abrimos a janela para ver o que acontece, também podemos respirar um ar novo, reconhecê-lo, aspirá-lo profundamente. É assim que de Um Golpe, Honduras, conseguiu cumprir com a máxima leninista de dar um passo atrás para dar dois para frente. A Resistência Popular do Povo Hondurenho é o maior acontecimento de massas da América Latina em aras de mudar os rumos de um país, e vai desde o espanto medieval à liberdade definitiva. Irmana-se, por efeito e ação, ao resgate do Presidente Chávez conduzido pelas massas caraquenhas.
23 meses são nada, um ponto na história da humanidade, mas 23 meses são suficientes para lhe dar luz e conhecimento a um povo que resiste unido ao golpe, à morte, o desespero, a fome e todas as misérias do mundo.
23 meses são nada para mudar o rumo da história, mas 23 meses são suficientes para não ter medo nem mais um dia, para enfrentá-lo ao patrão, para se descobrir como UM e ÚNICO em um coletivo de milhões de almas. Bastaram algumas horas desses 23 meses para se dar conta, e se consolidar em marcha irreversível desde a vida cegada de Isis Obed Murillo.
23 meses são nada para acabar com injustiça, mas 23 meses são suficientes para se dar conta de que a palavra precisa sulcar os ventos e que o martírio do povo é a semente insurgente que inaugura a árvore da vitória. Nas praças, nas escolas, nas fábricas, no Bajo Aguán, essa palavra é levada pelo espírito justo de Omar Rodríguez, a poesia rebelde de Roberto Sosa.
23 meses são nada para apagar 500 anos de genocídio, mas 23 meses são suficientes para clarear as ideais, se sustentar de pé, acumular as energias, descobrir o objetivo supremo, marchar a caminho do palácio, limpar seus salões e enche-los de justiça, liberdade e independência.
23 meses são um cálculo para uma multinacional, mas 23 meses são suficientes para doar a cada dia à memória de Vanessa Zepeda, Wendy Ávila e todos os outros que se uniram aos mártires da família Velázquez, e com essa memória no punho entender que é Agora ou Nunca.
23 meses são una página da história da Nossa América, mas 23 meses são suficientes para que esta página seja definitiva, e que o Império seja derrotado na sua tentativa de nos separar, nos invadir, nos privar, nos escravizar e nos enterrar em sua cova de ódio, violência, guerras e iniquidade.
Talvez a história diga que a Liberdade e a Independência definitiva de Honduras se forjaram em 23 meses, para sempre, para bênção da nossa Pátria Grande, para orgulho da Pacha Mama, Madre Terra de todos os filhos de Morazán, de Artigas, de San Martín, de Martí e do Che.
Que venham outros 23 meses de Resistência e de Marcha imparável se for necessários. Nessa Marcha estaremos, a cada dia, a cada instante, como irmãos privilegiados que participam da Vitória da Gente Pobre, das Gentes da Nossa América. E que venham dias melhores!

• Raul Fitipaldi é jornalista

segunda-feira, 30 de maio de 2011







Leia nesta edição:

Editorial – Ainda é aventura.

Coluna Em verso e prosa – Núbia Araújo Nonato do Amaral, poema, “Ardendo”

Coluna Pessoas e histórias – Eduardo Murta, conto “Ah, o maldito cálice da insanidade”

Coluna Lira de sete cordas – Talis Andrade, poema “Um homem no mundo”.

Coluna Porta Aberta – Raul Longo, artigo “A Commons e nossa cultura”.

Coluna Porta Aberta – Bernardo Gutierreza, artigo “A #spanishrevolution explicada a um brasileiro”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Ainda é aventura

A publicação de livros, no Brasil, notadamente de brasileiros, ainda é uma aventura, cheia de riscos e incertezas, tanto para os autores, quanto para as editoras. mesmo havendo passado 203 anos da criação dos meios para tal. Lançar escritores estrangeiros é menos arriscado, não porque eles sejam melhores do que os nossos, mas porque, quando suas obras chegam ao nosso país, já esgotaram inúmeras edições nos seus locais de origem. Ademais, seus direitos autorais são baixos, porquanto os originais (salvo exceções) são comprados aos lotes, não raro por preços meramente simbólicos.

O que dificulta a vida do escritor brasileiro é o baixo índice de leitura da população. E, creiam, as coisas já foram muito piores. Ainda no início da segunda metade do século XX, a taxa de analfabetismo no Brasil beirava (ou ultrapassava) os vergonhosos e contundentes 50%. Oficialmente, ela caiu, e muito, quase ao nível dos países desenvolvidos, mas apenas em decorrência de uma distorção estatística.

Explico. O cidadão que junte letras para formar palavras (mesmo que não entenda patavina do que soletra em voz alta) ou que “desenhe” seu nome, com garranchos incertos e tortuosos, não é mais considerado analfabeto. Claro que ainda é analfabetíssimo! Ninguém vai querer que o sujeito com esse tantinho de instrução leia e entenda um livro qualquer, mesmo os mais simples, de histórias para crianças de sete anos.

Mas o problema não está aí (ou não só aí). Mesmo aquele que sabe ler e tem capacidade de compreender e interpretar textos, ou não gosta de leitura, ou, em decorrência de carências econômicas, não tem condições de acesso a livros que, para os padrões brasileiros, ainda são muito caros. Além do que, muitos ainda não entenderam que se trata de gênero de primeira necessidade, como os alimentos, o vestuário etc. A comida alimenta o corpo e garante sua sobrevivência. Sem ela, ou com sua insuficiência, morreríamos de inanição ou de subnutrição.

O livro também alimenta, mas o cérebro e o espírito. Sem ele, corremos o risco de experimentar a “morte”, não a definitiva, como a do corpo, mas igualmente indesejável: a do espírito. Creiam-me, não é exagero. Da mesma forma que precisamos alimentar o organismo, temos a necessidade de fazer isso com o espírito. E isso só é possível mediante a leitura.

E o que acontece no Brasil? As pesquisas mais atualizadas (e mais confiáveis) apontam que a média anual de livros lidos por habitante é de 4,7. Baixa. Baixíssima se comparada já não digo com os Estados Unidos e com, praticamente, todos os países da Europa (o que seria covardia), mas com nossos vizinhos, Argentina e Uruguai, ou então com o Chile, que é entre quatro e cinco vezes maior que o nosso pífio índice. Claro que essa cifra é mera média. Há quem leia até 300 livros ou mais por ano. E a esmagadora maioria, em contrapartida, jamais teve um único e reles livrinho, desses bem finos e repletos de gravuras, à sua frente, em toda a sua vida.

Convenhamos, sem leitores, não há literatura. Para quê escrever se não for para outros lerem? Seria um baita desperdício de tempo e talento! Jorge Luís Borges escreveu, no prólogo da primeira edição de sua “História universal da infâmia”: “Às vezes acredito que os bons leitores são cisnes ainda mais negros e singulares que os bons autores”. E complementou, mais adiante: “Ler, além do mais, é uma atividade posterior à de escrever, é mais resignada, mais atenciosa, mais intelectual”.

Em outro texto seu, que conheço de cor, mas não me recordo em qual de seus livros o li, Borges acrescenta: “Sem leitura não se pode escrever. Tampouco sem emoção, pois que a literatura não é, certamente, um jogo de palavras. É muito mais. Eu diria que a literatura existe através da linguagem, ou melhor, “apesar” da linguagem”.

Ainda sobre a média de leitura anual do brasileiro, de 4,7 livros por habitante, baixíssima para nosso grau de desenvolvimento, há uma agravante, péssima para autores nacionais e para as editoras. A imensa maioria das obras lidas não é de volumes adquiridos nas livrarias, mas de exemplares emprestados de parentes, amigos e conhecidos ou das carentes e escassas bibliotecas públicas e particulares.

Com jornais ocorre fato mais ou menos parecido em termos de leitura. Não conheço um único deles, notadamente dos maiores, como “O Estado de São Paulo”, “Folha de S. Paulo”, “O Globo” ou “Zero Hora”, cuja tiragem tenha chegado, em algum dia, a 500 mil exemplares. Sua média diária, salvo casos excepcionais, gira em torno de 200 mil, se tanto. Isso, num país de quase 200 milhões de habitantes!

A maior tiragem desses jornais, os gigantes da nossa imprensa, equivale à de órgãos de imprensa considerados médios ou pequenos nos Estados Unidos, na Europa ou no Japão. O mais chato é que não há nenhuma evidência de que essa situação tenda a melhorar, mesmo que lentamente. Por isso, geniais escritores brasileiros vendem tão poucos livros. Não se trata de falta de qualidade no que escrevem, mas de carência de leitores. Fenômenos como foi Jorge Amado e como é Paulo Coelho são raríssimos e não podem ser considerados como regras, mas como exceções.

Volta e meia, até por questão de lógica, dada a natureza deste espaço, retornarei a este assunto. O ideal seria que ele provocasse acalorados debates entre os freqüentadores. Não acalento, todavia, esta esperança. Contamos com mais de uma centena e meia de seguidores, no entanto, os comentários aos textos publicados oscilam de zero, nos finais de semana (principalmente aos sábados) a no máximo dez, em um ou outro dia.

Outro assunto que pretendo abordar com os senhores é o que se refere a suposto risco de extinção do livro, pelo menos o de papel. Não creio nessa possibilidade, pelo menos no médio prazo. É possível, contudo, que isso aconteça no futuro por razões, digamos, ecológicas. O processo de produção de papel, nos moldes atuais, é altamente poluente e poluição certamente será, muito em breve (posto que tardiamente) preocupação prioritária da humanidade. Vai daí...

Mas já que citei Jorge Luís Borges, e por três vezes, é interessante conhecer sua opinião também a esse propósito. E o autor do “Aleph” assim se expressou sobre essa tão sombria previsão: “Fala-se do desaparecimento ou da extinção do livro. Creio que isto é impossível. Dir-se-á: que diferença pode haver entre um livro e um jornal ou um disco? A diferença é que um jornal é lido para ser esquecido; um disco é ouvido, igualmente, para ser esquecido – é algo mecânico e, portanto, frívolo. O livro é lido para eternizar a memória”.

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk






Ardendo

* Por Núbia Araújo Nonato do Amaral

O vento sibila teu nome.
Tapo os ouvidos, mas
continuo ardendo.

* Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário






Ah, o maldito cálice da insanidade

* Por Eduardo Murta

Os tipos da máquina de escrever manual, tinta preta, remetem para logo ali, as primeiras franjas dos anos 1960. E vão se sobrepondo em velocidade de contentamento ao longo do papel amarelado. Tricotam desfecho feliz. Mal sabe Amador o enredo de tragédia que se erguerá na esteira daqueles textos. Ponto final, revisão minuciosa, e os originais seguiriam ao editor que lhe prometera uma chance.
Viriam seis noites sem dormir – o relógio desnudando todos seus segredos – e o chamado às pressas ao posto telefônico. Era fim de tarde, e o acharam ajeitando os filós antipernilongos. Largou tudo por armar e chegou esbaforido ao bocal do aparelho. Pronunciou um alô tuberculoso, que na outra ponta julgavam falar com um cadáver.
A cada frase, as pernas lhe bambeavam. Chorava, lembrando um menino, porque iriam publicar seu romance. Aos 40 anos, contabilizava ao menos 35 lustrando o sonho de um dia poder falar ao mundo pelas letras. Produzira 243 páginas datilografadas, em 12 capítulos. Um crítico talvez enxergasse temperos de Kafka em seu estilo.
Foi com zelo de quem põe um filho para adormecer que organizou o volume no envelope mostarda e se dirigiu ao ponto da estrada em que, três em três dias, o ônibus se anunciava no poeirão. Subiu, deu recomendação expressa, repetiu, reiterou, sublinhou. Que fosse entregue ao agente dos correios na rodoviária da capital. Uma semana e meia de angústia, e brindou ao recebimento da encomenda.
Logo pôde fazer planos. O dezembro dali a quatro meses, e teria livro com nome, assinatura de autor e capa vitrines afora. Começou a gastar por conta, ao sinal de que o primeiro cheque aportaria em breve. Bebidas, mulheres, a sorte no carteado, um anel a Jurema, um colar a Isaura. Foi que, no novembro, a comunicação, súbito, se partiu.
Sobreveio um silêncio longo, asfixiante. Roera tanto as unhas que o sangue se avizinhava. Ancorou-se no posto telefônico e só saiu horas depois, completada a ligação. Em meio à chuva de ruídos, o choque: o editor adoecera, causa grave. Mandasse rezar missa, aviar promessa. Duas semanas mais, e viria o pior. Morrera.
Rumou à metrópole, desembestado. Contava os minutos. Não pensava mais em livro, mas em resgatar as 243 páginas em papel encardido, de cujos originais não fizera cópias. Burro, burro, burro!!! Se punha em descompasso à simples hipótese de terem se extraviado com o espólio do morto. A secretária gaguejou, relutou, fez rodeios, e sob uma atmosfera que em já se punha doente terminou por contar a Amador o resumo trágico.
Como pedira em testamento, o sujeito fora sepultado com todo o seu acervo literário – de Machado de Assis aos inéditos. Ao assombro da revelação, baixou no cemitério. Enxada e pá operando, ele era uma fração mórbida àquele contraluz de fim de tarde. Os jornais da época contam mais sobre o episódio. Do homem tresloucado, preso como profanador de túmulos, uivando ao delegado, sem ser compreendido, que ali estava enterrada sua história.
E, do manicômio – lá se vão sete anos –, descrevem que ainda hoje rabisca as paredes, jurando que reescreve um romance. Passou das 200 páginas. E morrerá de novo, quando revelarem que o pavilhão tem data próxima para ser demolido. Desconjuntando palavra por palavra. Pondo abaixo todos os sentidos. E definitivamente o condenando a se afogar no maldito cálice da insanidade.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.






Um homem no mundo

* Por Talis Andrade

A Francisco Bandeira de Mello

Na tarde avulsa
no longo hoje de cada dia
o franciscano Francisco
Bandeira de Mello
serenamente caminha

Andanças no mundo
com Josué de Castro
andanças no Recife
com João Cabral de Melo Neto

Andanças de cavaleiro andante
desejoso de viver o seu tempo
enchendo-o de coisas
Andanças de retirante
com a fome endêmica de sua gente
fome de sonhos precisamente

Andanças de menestrel
que pretende imortalizar
os viventes dos alpendres e ruas
preferencialmente os que possuem
o amargo sol do nordeste

Andanças de construtor
No Parque das Esculturas
deu vestes de pedra
aos habitantes do deserto
E no longo hoje de cada dia
possível ver
cantadores e violeiros
beatos e benzedeiras
cangaceiros e mulheres rendeiras
nos ermos da terra agreste


* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).






A Commons e nossa cultura

* Por Raul Longo

Bernardo Gutiérrez é mais um que fala em defesa do Commons como garantia de liberdade de expressão via internet, mas não dá a menor explicação do porque. Em que a quebra do contrato do governo brasileiro ou de qualquer país com a Commons, poderia promover ou impedir o que o espanhol Gutiérrez chama de brazilianrevolution em analogia à spanishrevolution, como ele também prefere?
Me dá a impressão de que por algum motivo inconfesso o Gutiérrez fez aí um Samba do Criolo Doido, ainda mais doido do que os que ele acusa de estarem confundindo as manifestações de Espanha com as do mundo Árabe.
Nisso ele tem razão: a Primavera Árabe é contra sistemas totalitários de governo. Na Espanha não. Ali a revolta é contra o sistema em geral. Não estão brigando contra um governo específico, mas contra a representatividade do poder ou a falta de representatividade popular no poder.
Aos árabes falta um sistema democrático, aos espanhóis o sistema democrático já não é satisfatório. Mas não insuficiente porque queiram mais partidos ou mais eleições. Querem é que se encontre uma forma de agilizar a concretização dos anseios populares.
Vai além da insatisfação com a atual situação da economia espanhola, sim, mas o que ocorre foi provocado por esta situação. Pelo que conversei com amigos de Espanha que estão lá e outros que estão aqui, entendem que a atual situação não é culpa do atual governo e entendem que se está fazendo o que tem de ser feito. Mas querem discutir a forma que está sendo feito. Querem ter poder de inferir mais sobre as decisões de governo para que não ocorram mais situações como essa e para que não sejam os únicos penalizados pelos erros de governos anteriores.
Se há alguma relação que se possa fazer entre esse momento da Espanha e o Brasil, talvez seja com as palavras de Lula: “Não faço o que faço porque quero, mas porque a sociedade diz o que tem de ser feito”
O próprio Instituto Miguel de Cervantes, aqui em Florianópolis, é um exemplo do que acontece: em razão da crise econômica uma série de medidas estão sendo tomadas e entre elas a contenção de despesas de todas as entidades mantidas pelo governo espanhol, inclusive o Instituto Miguel de Cervantes que decidiu pelo fechamento de algumas unidades espalhadas pelo mundo. E assim a dirigente do Instituto, lá na Espanha, decidiu que no Brasil se fechasse a de mais recente início de atividades. Exatamente a de Florianópolis.
Isso revolta, e muito, os funcionários brasileiros e espanhóis do Instituto na capital catarinense, pois embora seja a mais recente no Brasil, é mais ativa do que outras unidades que mesmo sendo mais antigas no país têm menos alunos em seus cursos e menos cursos oferecidos, menor interatividade com as comunidades das cidades onde se instalam, além de demandarem maiores custos. Considerando que Florianópolis é considerada como portal turístico do Mercosul e Santa Catarina o estado brasileiro que mais recebe turistas de língua espanhola, aqui mais se justifica a manutenção desta única entidade de Espanha na região.
Meus amigos espanhóis reagiram e os ajudei a redigir uma carta bastante dura que endereçaram a diversos Ministérios do governo espanhol, inclusive ao Zapatero, com cópia para o Itamarati e o Secretario de Turismo de Santa Catarina; mas propositalmente sem cópia à dirigente do Instituto na Espanha e ao seu diretor no Brasil.
Torcem para que o governo espanhol exija explicações da dirigente em Espanha, mas eles mesmos não acreditam que isso aconteça pois, como me comentaram, o governo espanhol mantém mentalidade monarquista e decisões hierárquicas, por mais que se evidencie desacordos da maioria subalterna ou que a decisão se demonstre equivocada, jamais são revistas.
A julgar por estes comentários de cidadãos tão espanhóis quanto o Gutiérrez e talvez com maior presença na atualidade hispânica, a consolidação democrática que ele afirma apresenta aspectos discutíveis. Verdade que Franco se foi nos anos 70, mas se não a monarquia o franquismo deixou heranças nos políticos de lá. Mesmo não sentindo falta de novos partidos nem desejando derrubar governos como os árabes, o que os espanhóis querem é mais direta influência nas decisões de governo. Como em todo o mundo, o povo espanhol percebe a insuficiência da representatividade popular pelo sistema político partidário e questiona, nas praças e nas ruas, por uma saída.
É possível que a inspiração à forma desse questionamento tenha vindo da Primavera Árabe, mas realmente tem pouco ou nada a ver com as revoltas árabes que anseiam pelo fim de decanas ditaduras. Mas se nada com árabes, muito menos com a Commons!
O que escreve Gutiérrez é uma nítida forçazão de um assunto no contexto de outro sem qualquer relação. Tanto que não explica coisa alguma e só suscita questões de impossíveis respostas: A juventude espanhola se revolta graças ao Commons? Se não houvesse o Commons não se revoltaria?
O que a Ana Buarque tem a ver com isso tudo? Por que quebrando o contrato com a Commons, Ana estaria desrespeitando a cultura livre do governo Lula? No governo Lula a cultura só foi livre porque Gil manteve contrato com a Commons? Em que a quebra de contrato com a Commons torna o governo menos transparente?

A similaridade entre o texto do Gutiérrez e o Brasil só existe com a mesma conversa mole e inconsistente da nossa mídia!
E mais uma vez se ressalta a enormidade de interesses suscitados pelo Commons. Tão grande ao ponto de se sugerir que esse rompimento com o sistema justifique uma manifestação revolucionária: “O Brasil, apesar do crescimento econômico, tem alguns motivos para uma #brazilianrevolution: uma nova ministra de Cultura, Ana Buarque de Holanda.”
Como?!!!! Por que a quebra de contrato com a Commons é motivo para um movimento como o de Espanha?!!!! Por qual interesse? Por interesse de quem? Do señor Gutiérrez? Então que exponha onde está sendo tão lesado! Ou a arte, a cultura, as tradições, o povo brasileiro!
Na medida em que afirma que isso seria “um movimento que lute pela liberdade, pela transparência e pela democracia” sem nenhuma explicação de onde a liberdade e a democracia estejam sendo lesadas, está nitidamente estimulando uma mobilização popular por interesses escusos.
Somente quando finaliza com estes parágrafos:
“Não serei eu, um estrangeiro, quem vai inventar uma #brazilianrevolution, um movimento além das esquerdas e direitas...
Isso corresponde ao meu querido povo brasileiro.” me suscita uma certeza: a de que se um brasileiro os publicasse em Espanha procurando desestabilizar qualquer ministério daquele governo, seria extraditado de volta ao Brasil sob a acusação de ser agente provocador de subversão da ordem e da segurança do processo democrático que elegeu uma presidente para que indique e mantenha seu ministério de acordo com o próprio discernimento dos interesses do seu povo.
Ainda não descobri como se fez dinheiro com a Commons, mas nesse texto Gutiérrez dá a impressão de ter sido uma cornucópia. Talvez nem tanto, pois geralmente os testas de ferro se contentam apenas com migalhas do grande bolo arrecadado pelos que os comissionam. Mas na verdade valores nem importam muito. Importante seria descobrir como o sistema Commons comissionava esses que para defendê-lo só faltam sugerir um bombardeio do Ministério da Educação como o da Líbia.
Não falta muito para isso, pois revolução à espanhola já aí está.

• Jornalista e escritor


A #spanishrevolution explicada a um brasileiro

• Por Bernardo Gutiérrez

Muitos amigos brasileiros estão me perguntando sobre a #spanishrevolution. A imprensa mainstream brasileira publicou pouco e entendeu quase nada. Por isso, vou fazer um exercício muito simples para entender a chamada #spanishrevolution.
Imagine que uma ministra de Cultura (Ana Buarque do Holanda, por exemplo) aprova uma lei sobre direitos autorais da Internet que despreza licenças como Creative Commons, corta liberdades civis na rede e faz o jogo da indústria audiovisual.
Um grupo de ativistas digitais cria uma plataforma #navoteneles, pedindo para castigar os partidos que aprovaram a lei (imaginemos aqui, PT, PSDB e PMDB).
O grupo, indignado com os casos de corrupção, começa fazer “wikimapas” feitos em redes com os candidatos corruptos. Depois, milhares de grupos que lutam por causas diferentes entram na luta pedindo uma “democracia real” mais participativa e transparente e outro sistema econômico alternativo ao liberalismo.
A revolução #democraciareal estoura quando a policia despeja um grupo de pessoas que estavam acampadas na principal praça da capital do país.
As redes sociais espalham rapidamente a #brazilianrevolution e os cidadãos, altamente conectados, descentralizados e organizados, invadem as praças do país inteiro e discutem, no asfalto e na Internet, uma nova sociedade.
A campanha política em andamento para as eleições regionais fica paralizada e o mundo começa olhar para uma nova revolução digital de consequências imprevisíveis.
Entendeu agora o que aconteceu na Espanha e as ideias que se espalham pelo mundo?
Só falta temperar isso com uma crise econômica (internacional) e a explosão de uma gigantesca bolha imobiliária (espanhola) para completar a equação.
O fácil para a imprensa brasileira era falar que o alto desemprego da Espanha (por volta do 20%) provocou a revolta. É lógico: a crise e o desemprego influenciaram, mas o desemprego não foi o motivo principal, entre outras coisas porque ainda funciona o seguro desemprego.
O simples era comparar a #spanishrevolution às reviravoltas do mundo árabe. Só tem um ponto em comum, a importância das redes sociais no processo.
A Espanha tem democracia consolidada. As causas da revolta foram outras, várias, muitas. Os objetivos também são diferentes aos do mundo árabe.
92% dos jovens espanhóis usa Internet, doce pontos por cima do resto da Europa, segundo o próprio Estado. A Espanha lidera, também, o uso de banda larga nos celulares (19,5% da população, 6,9% na Europa). O cocktail se completa com uma elevadíssima porcentagem de jovens formados na universidade: 39% da população espanhola entre 25 e 34 anos tem formação superior (ano 2009), mais que a França ou outros países europeus. E muitos estão desempregados.
Chama minha atenção que a poderosa conta de @wikileaks no Twitter, a reportagem de Preseurop.
A revolta islandesa da Espanha, reparou na hora que um dos links mais importantes da #spanishrevolution vem do norte, da Islândia, o país que já teve o Índice de Desenvolvimento Humano (IDN) mais elevado do mundo e que afundou na tormentas dos mercados . De fato, uma das principais petições da #spanishrevolution é exigir do governo que não ajude mais ao sistema bancário que provocou a crise internacional. O link islandês-espanhol, a procura de alternativas a um mundo governado pelos mercados e as agências de rating, é tão claro que Hordur Torfason, o homem que fez o povo islandês reagir contra banqueiros e políticos, gravou um video para parabenizar o povo espanhol.
A juventude espanhola, é claro, admira o que aconteceu nos países árabes. Foi um exemplo para todos. Mas a #spanisrevolution é diferente. É um passo à frente. É claramente europeia. E sem pretendê-lo, se converteu na revolta digital mais avançada do mundo. Gerou o debate sobre a democracia. E pode ser fundamental para o mundo atingir um Sistema 2.0 verdadeiramente participativo. Um detalhe: a plataforma de ciberativismo Actuable.es, que nasceu no final de ano 2010, foi vital para evitar que o Governo despejasse a Puerta del Sol de Madri. Em menos de 24 horas, quando a Junta Elitoral proibiu o protesto, Actuable.es incentivou o envio de mais 150.000 mails para Alfredo Pérez Rubalcaba, ministro do Interior e evitou a represãao policial e um banho de sangue.
O suplemento do Estadão publicou na passada segunda-feira o melhor trabalho sobre o assunto na imprensa brasileira: Reiniciar o sistema. Esse é o foco. E nem todo o mundo entendeu.
As duas principais forças políticas espanholas, Partido Socialista Operário Espanhol (no poder) e o direitista Partido Popular (PP), depois das eleições regionais do passado domingo, fizeram de conta que nada aconteceu. Se a abstenção (pessoas que não votaram) fosse uma força política, teria sido a grande vencedora, com 33% dos votos.
O Partido Popular, que foi o grande ganhador, só foi votado por 24% do eleitorado. Por exemplo, em Madri, só 1 em cada 3 votantes deu a sua confiança ao Partido Popular, mas governará com maioria. Em Barcelona, o escândalo foi maior. 47% dos votantes ficou em casa (ou seja, muitos do gigantesco acampamento da Plaza de Catalunya, no centro de Barcelona). E a Convergència i Unió (CiU), nacionalistas conservadores, vão governar a cidade com um 14% dos votos.
A #spanishrevolution quer uma lei eleitoral mais justa, mais representativa. Quer uma lei de transparência das contas públicas. Quer criar um espaço para participação constante da política nacional, regional e local. Quer fazer um redesenho profundo da democracia. Mas, por enquanto, ninguém parece ter entendido o recado. E os protestos continuam. E as praças estão ainda cheias de pessoas. E já tem iniciativas, como “Madrid toma los barrios” para expandir o debate e participação nos bairros, praças e ruas das cidades.
Existem causas, motivos e condições para uma #brazilianrevolution? Os mesmos motivos que lá e , suponho, que outros.
O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da Espanha, apesar da crise, ainda é um dos mais elevados do mundo.
O Brasil, apesar do crescimento econômico, tem alguns motivos para uma #brazilianrevolution: uma nova ministra de Cultura, Ana Buarque de Holanda, que não respeitou a herança de cultura livre do Governo Lula; altos níveis de corrupção (muitos mais que lá); democracia pouco participativa; um rumo econômico focado no macro e não no micro (agronegócio, exportação, grandes obras); sérios problemas ambientais; inflação; uma especulação imobiliária crescente que vai rumo ao da bolha que estourou na Espanha; desigualdade; violência…
Além disso, o Brasil tem um ativismo admirável. Foi onde nasceu o Fórum Social Mundial e o orçamento participativo. Lá cresceu o apoio de governos ao software livre e licenças como o Creative Commons. O Brasil foi e é importantíssimo na luta pela cultura livre e os direitos civis na Internet, uma referência internacional. O ciberativismo brasileiro, até agora, era mais forte que o espanhol, que só estourou depois da crise, quando o país inteiro saiu da mordomia da prosperidade. Os brasileiros, conseguiram encaminhar uma lei de “ficha limpa”. O Brasil é dos países mais ativos em redes sociais e tem a terceira maior penetração de Twitter do mundo (23%).
Não serei eu, um estrangeiro, quem vai inventar uma #brazilianrevolution, um movimento além das esquerdas e direitas, um movimento que lute pela liberdade, pela transparência e pela democracia 2.0.
Isso corresponde ao meu querido povo brasileiro. Mas pense bem: Existiriam causas, motivos e condições para uma #brazilianrevolution?
Democracia Real Brasil no Facebook.

*Bernardo Gutiérrez é espanhol, jornalista, escritor e consultor de mídia. Mora em São Paulo. Seus trabalhos aparecem em La Vanguardia (Barcelona), Esquire (Madri), Expresso (Lisboa), Tage Spiegel (Berlim) ou National Geographic Brasil, entre muitos outros.

domingo, 29 de maio de 2011







Leia nesta edição:

Editorial – Humanista inspirador.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Voz da humanidade”.

Coluna Direto do Arquivo – Ruth Barros, crônica “Os desejáveis e os casáveis”.

Coluna Clássicos – Bernardo Elis, conto “Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá”.

Coluna Porta Aberta – Rubem Alves, crônica “Que pipoquem os experimentos!”.

Porta Aberta – Rubem Costa, crônica, “Alma preparada”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Humanista inspirador

Sir Bertrand Arthur William Russell, terceiro Conde de Russell, foi uma das personalidades que me inspiraram na juventude, naquela fase da vida em que eu exsudava idealismo por todos os poros e sonhava em fazer algo para melhorar a condição humana, ideal que se perdeu, em parte, pelos caminhos do tempo, contaminado pelo desânimo. Foi uma figura imponente, não no aspecto físico (que é o que menos importa), mas no aspecto moral e no de uma inteligência muito além da média, posta a serviço da humanidade.
Viveu quase um século (faltaram apenas dois anos para atingir a marca centenária, pois morreu com 98 anos, em 2 de fevereiro de 1970), levando uma vida ativa, produtiva e exemplar até, praticamente, o último suspiro. Poucas pessoas, mesmo os raros gênios (como foi o caso), têm tamanha energia, sobretudo espiritual. Tudo o que fez (e fez muito), foi bem feito.
Bertrand Russell foi, por exemplo, um dos mais brilhantes matemáticos dos séculos XIX e XX. Devo-lhe, em grande parte, meu fascínio por essa disciplina, apreciada por poucos, mas sumamente fascinante, quando devidamente compreendida. Só isso lhe bastaria para assegurar a glória. Mas esse genial pensador foi além. Marcou seu nome na filosofia contemporânea, por seu pensamento lúcido, claro e, acima de tudo lógico. Todavia, Bertrand Russell, ao contrário do que os desinformados possam pensar, não foi daqueles intelectuais de nariz empinado, que se julgam acima do bem e do mal e consideram a maioria das pessoas como rematada cretina. Longe disso.
A despeito de ostentar um título de nobreza, descendente de longa linhagem de condes, foi vigoroso e assíduo ativista político (mas não político de carreira), protestando contra injustiças, corrupções e decisões cínicas e oportunistas de vários governos, sem fazer proselitismo e sem defender, especificamente, nenhuma das ideologias vigentes. Condenava, sem reservas, a corrida armamentista nuclear, por ver nas armas atômicas a potencial fonte de destruição da humanidade, risco que ainda existe, embora alguns achem que não.
Já nonagenário, participou de passeatas não somente contra o armamentismo, patrocinado pela ultrapoderosa indústria de armas, mas contra, por exemplo, a guerra do Vietnã e, por extensão, contra todas as guerras, nas quais não via nenhum sentido (pois não há algum, de fato). Revoltei-me inúmeras vezes ao ver esse gênio, de cabelos brancos e porte curvado pela idade, que deveria ser reverenciado por toda a humanidade, sendo agredido a cassetete por brucutus broncos, travestidos de policiais, nas inúmeras passeatas de que participou.
O que mais me revoltava, nessas ocasiões, era ouvir, invariavelmente, comentários jocosos, de pessoas que viam essas cenas na televisão, do tipo “bem feito, esses arruaceiros merecem mesmo isso”. É por opiniões como essa, de estúpidos, acomodados, alienados e covardes, que tiranos, travestidos de democratas (e há uma profusão deles em todos os países, sem exceção) pintam e bordam, corrompem e são corrompidos e perpetuam injustiças e mazelas de toda a sorte que desgraçam a humanidade.
A esta altura, é possível que algum leitor mais chato torça o nariz e murmure com seus botões: “Muito bem, o sujeito foi um gênio, um matemático brilhante, um filósofo de renome e grande ativista, mas o que tudo isso tem a ver com literatura, o foco deste espaço?”. Apresso-me em responder, mesmo antes de alguém fazer esse questionamento: “Tem tudo a ver”. E por que? Porque, se Bertrand Russell não foi romancista, contista ou poeta, foi brilhante ensaísta (e o ensaio é um dos mais nobres gêneros literários), com dezenas de livros (talvez, até, uma centena) publicados. E mais, conquistou, com amplos méritos, um Prêmio Nobel de Literatura, no caso, o de 1950.
Quem já leu algum de seus livros, entende a razão da premiação. Posto que sumamente erudito, seu texto é claro, simples, objetivo, didático e por isso atrativo. Também nesse aspecto, portanto, Bertrand Russell é meu ídolo, um dos parâmetros de conduta que tenho na vida. Seus detratores – e estes existem e não são poucos – apontam, entre seus defeitos as desventuras conjugais e aventuras extraconjugais pelas quais passou. Ele casou-se e divorciou-se diversas vezes. Não vejo no que isso prejudique sua imagem. Até porque, é praticamente impossível julgar com isenção esse comportamento, por desconhecer os verdadeiros motivos por trás de tantas rupturas de casamentos.
Por que esses fofoqueiros de plantão não enfatizam que Bertrand Russell virtualmente salvou a humanidade da extinção pelas armas nucleares? E não exagero. Ele foi o mediador da crise dos mísseis de 1962, convencendo o governo cubano a suspender a instalação dessas armas na ilha, o líder soviético, Nikita Krushev, a recolher de volta essas mortíferas engenhocas e o presidente norte-americano, John Kennedy a dar o caso por encerrado. E olhem que fez isso numa idade em que a maioria acha que já cumpriu sua missão na Terra e se afasta de todas atividades públicas e/ou privadas: aos 90 anos!
Faço minhas (posto sem ter sequer 0,001% da importância desse gênio) as paixões que o moveram em seus 98 anos de vida que confessou, certa ocasião, numa entrevista, que eram três, expostas nestes termos: “Três paixões governam minha vida: o desejo de amar, a busca do conhecimento e uma compaixão pelo sofrimento da humanidade”.

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk






Voz da humanidade

* Por Pedro J. Bondaczuk

A vida é como as águas de um rio. Nunca é a mesma de segundos atrás. Consiste de ganhos e de perdas contínuos, e não raro ilógicos. É uma sucessão de encontros e de desencontros, quase sempre incontroláveis e sem explicação. O acaso, que muitos chamam de “destino”, reúne pessoas, as separa, proporciona fortunas e ocasiona ruínas a todo o instante, sem aviso e de maneira aleatória. Quase nunca pensamos nisso. E muito menos na possibilidade, e mais do que isso, na certeza (inexorável) da nossa extinção.

Lá um belo dia, não se sabe como e nem porque, sem qualquer planejamento prévio, subitamente nos damos conta dessa infernal gangorra, desse jogo de perde e ganha. Fazemos, então, a nossa “contabilidade” e, quase sempre (salvo raras exceções), as conclusões são muito deprimentes, quando não sumamente dolorosas.

Concluímos, acabrunhados, que perdemos muito, muitíssimo mais do que logramos ganhar. Que desperdiçamos, sobretudo, o nosso tempo, que é o maior capital com que podemos contar, com coisas que são absolutamente sem importância, mas que julgamos “importantíssimas”, como riqueza, fama e poder. E esse erro de avaliação tem um preço alto demais, diria proibitivo.

Dia desses, remexendo velhos papéis que trago comigo há décadas – a maioria sem qualquer utilidade, desses que a gente nem sabe porque guarda, mas que teima em guardar, consistentes, entre outras tantas coisas, de convites para festas diversas (casamentos, formaturas, aniversários, batizados, etc.), de notas fiscais antigas e de recados anotados às pressas em pedaços de papel – localizei um poema, intitulado “Pela Rua”, que escrevi em 30 de novembro de 1963. Há quase 48 anos, portanto. Uma vida! Estava escrito em um maço de cigarros “Lincoln”, marca há muito fora de circulação.

“Bobagem”, pensei de cara. E o impulso inicial foi o mais racional possível. Ou seja, foi o de jogá-lo fora. O de fazer, portanto, o que estava fazendo com outras tantas tralhas e velharias inúteis, já que a intenção era a de desocupar uma gaveta (até então inutilizada por esses papéis amarelados, que nunca usei) da escrivaninha.

Todavia, talvez por curiosidade, ou até por mero acaso (destino?), resolvi ler o conteúdo. De início, nem me lembrava de tê-lo escrito. Mas era a minha letra, sem dúvida. E era, também, o meu estilo inconfundível, verborrágico, copioso e muitas vezes exagerado. E, subitamente, todo um período da minha vida e um outro “eu” que custei a reconhecer, se desenharam diante de mim. O poema, frise-se, não é nenhuma obra-prima, mas não deixa de ter lá seus encantos. Já li coisas bem piores.
Diz:


“Pela rua vai vagando
em vago, vagamundo vagabundear.
Vaga para onde, vago destino,
em vagaroso, vago caminhar?

Máquinas zunem, maquinalmente,
ruidosas, fumarentas, apressadas,
reflexo do sol, luz iridiscente
incide nas latarias estilizadas.

Vago, vagando, pela rua apinhada,
o poeta, vagamundo, vagabundeia
à procura de si, à procura de nada,
ao calor do sol, que o ar incendeia,
na vaga humana, vaga, sem feição,
anônima (sombras entre sombras)
amorfa, em caótica movimentação.

Vaga, poeta vagamundo, vadeando
caudalosas torrentes de solidão,
sem saber onde, como e quando
ouviu aquela estranha, vaga canção
de sons desarmoniosos, ritmos
selvagens, batuques do coração.

Vaga, vagaroso, vagotonicamente
à procura de alguém, à procura do nada,
distraído, vaga, displicentemente
em busca de etérea, de vaga amada.

Reflete idéias, palavras, versos,
rumina coplas de inspiração sua,
filosofias, artes, pensamentos travessos,
vagando, vago, vagaroso pela rua...”.

Ao concluir a leitura, me perguntei, melancólico: em que parte do caminho se perdeu aquele garoto idealista, que escreveu estes versos ingênuos, e que acreditava tanto poder salvar o mundo apenas com a força das suas convicções? Onde os sonhos, onde os projetos altruísticos, onde as tantas utopias? Restaram esquecidos em algum segmento do tempo, em um passado já tão velho, tão distante, tão remoto...E, no entanto, sobrevive dentro de mim, reprimido, sufocado, amarrado a tolas convenções, mas vivo.

Entendi (ou pelo menos julguei entender) a mensagem procedente de uma época já tão remota, embora pareça somente ontem. Compreendi o que havia por trás de cada verso, cada metáfora, cada estrofe. Pois, como escreveu Theodor Adorno, “só entende aquilo que o poema diz quem escuta em sua solidão a voz da humanidade”. E eu a escuto, aflita e desesperada, a cada segundo, minuto, hora e dia e a cada passo da minha vida que, célere, se escoa, sem nada poder fazer para ajudar.

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk






Diário da Perua

Os desejáveis e os casáveis


* Por Ruth Barros


Anabel acordou no frio de domingo com um telefonema às 10h. Depois de ter conseguido abrir caminho entre fartas camadas de cobertores para atender, dei de cara, ou melhor, de orelha, com uma amiga querida, que mora em Brasília. Ela apresentou uma dúvida tão angustiada que conseguiu colocar meus parcos neurônios para funcionar mesmo em baixa temperatura. Como estou convencida de que a humanidade tem lá uma meia dúzia de uns oito ou dez problemas, sempre os mesmos, que se repetem sob diversos disfarces, vou compartilhar com meus amados leitores a conversa, que foi das mais instrutivas.

Minha amiga tem dois pretendentes, coisa que à primeira vista não configura problema, seria antes solução nesse mundo em que a maioria se queixa, não sem razão, de falta de homem. Acontece que um é um sedutor, daqueles que preparam jantares fantásticos, manda flores, transa divinamente, jura que não consegue viver sem ela, que amanhã a festa continua etc. etc. e some. O outro é romântico, beija mal, quer relação séria, colocar os filhos respectivos em contato, fazer programa família etc. etc. sempre dá assistência e cumpre o prometido quando diz que vai telefonar e aparecer.

Qual é a dúvida de minha amiga? Os mais atilados já devem ter adivinhado. Ela está louca para dispensar o bonzinho e quer amarrar para todo sempre o gostosão. Detalhe: ele some e ela fica na dela. Daí alguns dias reaparece o bofe como nada tivesse acontecido, dizendo que “foi obrigado a engolir o orgulho para procurá-la, que ela faz gato e sapato dele etc. etc. etc”.

Em que pese o grande número de etcs dessas mal traçadas linhas, fui obrigada a reconhecer: estamos diante de um profissional. Ele joga o jogo dele, aparece quando quer e aparentemente o mérito fica sendo dela, ou seja, como se ela decidisse quando e se vai vê-lo. Devo confessar que fiquei fã do cara, sempre gostei de bons profissionais seja lá em que área atuem – médicos, carpinteiros, políticos, todos os que sabem funcionar bem são gente que faz. Só que, como expliquei para a aflita, profissional de sedução não é tipo mais indicado para casar.

Primeiro, se ele tivesse intenções de continuidade, apareceria e cumpriria os combinados, ninguém investe em uma relação séria sumindo e mandando flores exóticas daí alguns dias. Depois, esses sujeitos tão bem dotados (sem trocadilho), tão encantadores, tão cheios de lábia, gostam de espalhar seus dons pelo mundo, ou seja, entre a mulherada, até para testar se continuam funcionando. Isso configura uma porta de entrada para o desassossego e o aluguel – vamos e venhamos, é duro aturar homem galinha.

Agora, jogar a toalha e amarrar um choco que não dá tesão, também não é rima nem solução. Depois de ponderar esses pontos todos com minha amiga, chegamos à conclusão que o melhor é ficar com o sedutor profissional e esquecer a idéia de casamento, pelo menos com ele. E nada de ir atrás, de ficar telefonando, que o cara pelo menos tome a iniciativa, quando nada para continuar inflando o ego dela. Já que a transa toda rola tão bem, para que transformá-la em posse? O usufruto, nesses casos, é bem melhor. E tem o mérito de não deixá-la carente, segurando bem a onda até o dia que algum príncipe que conjugue sedução e seriedade em doses certas apareça.

Anabel Serranegra acha que um grande amor continua sendo ideal de quase toda a humanidade, apesar de a maior parte continuar dando com os burros n’água


* Maria Ruth de Moraes e Barros, formada em Jornalismo pela UFMG, começou carreira em Paris, em 1983, como correspondente do Estado de Minas, enquanto estudava Literatura Francesa. De volta ao Brasil trabalhou em São Paulo na Folha, no Estado, TV Globo, TV Bandeirantes e Jornal da Tarde. Foi assessora de imprensa do Teatro Municipal e autora da coluna Diário da Perua, publicada pelo Estado de Minas e pela revista Flash, com o pseudônimo de Anabel Serranegra.






Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá


* Por Bernardo Élis

Fio, fais um zóio de boi lá fora pra nóis.

— O menino saiu do rancho com um baixeiro na cabeça, e no terreiro, debaixo da chuva miúda e continuada, enfincou o calcanhar na lama, rodou sobre ele o pé, riscando com o dedão uma circunferência no chão mole — outra e mais outra. Três círculos entrelaçados, cujos centros formavam um triângulo eqüilátero.

Isto era simpatia para fazer estiar. E o menino voltou:

— Pronto, vó.

— O rio já encheu mais? — perguntou ela.

— Chi, tá um mar d'água! Qué vê, espia, — e apontou com o dedo para fora do rancho. A velha foi até a porta e lançou a vista. Para todo lado havia água. Somente para o sul, para a várzea, é que estava mais enxuto, pois o braço do rio aí era pequeno. A velha voltou para dentro, arrastando-se pelo chão, feito um cachorro, cadela, aliás: era entrevada. Havia vinte anos apanhara um "ar de estupor" e desde então nunca mais se valera das pernas, que murcharam e se estorceram.

Começou a escurecer nevroticamente. Uma noite que vinha vagarosamente, irremediavelmente, como o progresso de uma doença fatal.

O Quelemente, filho da velha, entrou. Estava ensopadinho da silva. Dependurou numa forquilha a caroça, — que é a maneira mais analfabeta de se esconder da chuva, — tirou a camisa molhada do corpo e se agachou na beira da fornalha.

— Mãe, o vau tá que tá sumino a gente. Este ano mesmo, se Deus ajudá, nóis se muda.

Onde ele se agachou, estava agora uma lagoa, da água escorrida da calça de algodão grosso.

A velha trouxe-lhe um prato de folha e ele começou a tirar, com a colher de pau, o feijão quente da panela de barro. Era um feijão brancacento, cascudo, cozido sem gordura. Derrubou farinha de mandioca em cima, mexeu e pôs-se a fazer grandes capitães com a mão, com que entrouxava a bocarra.

Agora a gente só ouvia o ronco do rio lá embaixo — ronco confuso, rouco, ora mais forte, ora mais fraco, como se fosse um zunzum subterrâneo.

A calça de algodão cru do roceiro fumegava ante o calor da fornalha, como se pegasse fogo.


Já tinha pra mais de oitenta anos que os dos Anjos moravam ali na foz do Capivari no Corumbá. O rancho se erguia num morrote a cavaleiro de terrenos baixos e paludosos. A casa ficava num triângulo. de que dois lados eram formados por rios, e o terceiro, por uma vargem de buritis. Nos tempos de cheias os habitantes ficavam ilhados, mas a passagem da várzea era rasa e podia-se vadear perfeitamente.

No tempo da guerra do Lopes. ou antes ainda. o avô de Quelemente veio de Minas e montou ali sua fazenda de gado, pois a formação geográfica construíra um excelente apartador. O gado, porém, quando o velho morreu, já estava quase extinto pelas ervas daninhas. Daí para cá foi a decadência. No lugar da casa de telhas, que ruiu, ergueram um rancho de palhas. A erva se incumbiu de arrasar o resto do gado e as febres as pessoas.

"— Este ano, se Deus ajudá, nóis se muda." Há quarenta anos a velha Nhola vinha ouvindo aquela conversa fiada. A princípio fora seu marido: "— Nóis precisa de mudá, pruquê senão a água leva nóis". Ele morreu de maleita e os outros continuaram no lugar. Depois era o filho que falava assim, mas nunca se mudara. Casara-se ali: tivera um filho; a mulher dele, nora de Nhola, morreu de maleita. E ainda continuaram no mesmo lugar a velha Nhola, o filho Quelemente e o neto, um biruzinho sempre perrengado.

A chuva caía meticulosamente, sem pressa de cessar. A palha do rancho porejava água, fedia a podre, derrubando dentro da casa uma infinidade de bichos que a sua podridão gerava. Ratos, sapos, baratas, grilos, aranhas,¬o diabo refugiava-se ali dentro, fugindo à inundação, que aos poucos ia galgando a perambeira do morrote.

Quelemente saiu ao terreiro e olhou a noite. Não havia céu, não havia horizonte — era aquela coisa confusa, translúcida e pegajosa. Clareava as trevas o branco leitoso das águas que cercavam o rancho. Ali pras bandas da vargem é que ainda se divisava o vulto negro e mal recortado do mato. Nem uma estrela. Nem um pirilampo. Nem um relâmpago. A noite era feito um grande cadáver, de olhos abertos e embaciados. Os gritos friorentos das marrecas povoavam de terror o ronco medonho da cheia.

No canto escuro do quarto, o pito da velha Nhola acendia-se e apagava-se sinistramente, alumiando seu rosto macilento e fuxicado.

— Ocê bota a gente hoje em riba do jirau, viu? — pediu ela ao filho. — Com essa chuveira de dilúvio, tudo quanto é mundice entra pro rancho e eu num quero drumi no chão não.

Ela receava a baita cascavel que inda agorinha atravessara a cozinha numa intimidade pachorrenta.

Quelemente sentiu um frio ruim no lombo. Ele dormia com a roupa ensopada, mas aquele frio que estava sentindo era diferente. Foi puxar o baixeiro e nisto esbarrou com água. Pulou do jirau no chão e a água subiu-lhe ao umbigo. Sentiu um aperto no coração e uma tonteira enjoada. O rancho estava viscosamente iluminado pelo reflexo do líquido. Uma luz cansada e incômoda, que não permitia divisar os contornos das coisas. Dirigiu-se ao jirau da velha. Ela estava agachada sobre ele, com um brilho aziago no olhar.

Lá fora o barulhão confuso, subterrâneo, sublinhado pelo uivo de um cachorro.

— Adonde será que tá o chulinho?

Foi quando uma parede do rancho começou a desmoronar. Os torrões de barro do pau-a-pique se desprendiam dos amarrilhos de embiras e caíam nágua com um barulhinho brincalhão — tchibungue — tibungue. De repente, foi-se todo o pano de parede. As águas agitadas vieram banhar as pernas inúteis de mãe Nhola:

— Nossa Senhora d'Abadia do Muquém!

— Meu Divino Padre Eterno!

O menino chorava aos berros, tratando de subir pelos ombros da estuporada e alcançar o teto. Dentro da casa, boiavam pedaços de madeira. cuias. coités, trapos e a superfície do líquido tinha umas contorções diabólicas de espasmos epiléticos, entre as espumas alvas.

— Cá, nego, cá, nego — Nhola chamou o chulinho que vinha nadando pelo quarto, soprando a água. O animal subiu ao jirau e sacudiu o pelo molhado, tremulo, e começou a lamber a cara do menino.

O teto agora começava a desabar, estralando, arriando as palhas no rio, com um vagar irritante, com uma calma perversa de suplício. Pelo vão da parede desconjuntada podia-se ver o lençol branco. — que se diluía na cortina diáfana. leitosa do espaço repleto de chuva. — e que arrastava as palhas, as taquaras da parede. os detritos da habitação. Tudo isso descia em longa fila, aos mansos boléus das ondas, ora valsando em torvelinhos, ora parando nos remansos enganadores. A porta do rancho também ia descendo. Era feita de paus de buritis amarrados por embiras.

Quelemente nadou. apanhou-a, colocou em cima a mãe e o filho, tirou do teto uma ripa mais comprida para servir de varejão, e lá se foram derivando, nessa jangada improvisada.

— E o chulinho? — perguntou o menino, mas a única resposta foi mesmo o uivo do cachorro.

Quelemente tentava atirar a jangada para a vargem. a fim de alcançar as árvores. A embarcação mantinha-se a coisa de dois dedos acima da superfície das águas, mas sustinha satisfatoriamente a carga. O que era preciso era alcançar a vargem, agarrar-se aos galhos das árvores. sair por esse único ponto mais próximo e mais seguro. Daí em diante o rio pegava a estreitar-se entre barrancos atacados, até cair na cachoeira. Era preciso evitar essa passagem, fugir dela. Ainda se se tivesse certeza de que a enchente houvesse passado acima do barranco e extravasado pela campina adjacente a ele, podia-se salvar por ali. Do contrário, depois de cair no canal, o jeito era mesmo espatifar-se na cachoeira.

— É o mato? — perguntou engasgadamente Nhola, cujos olhos de pua furavam o breu da noite.

Sim. O mato se aproximava. discerniam-se sobre o líquido grandes manchas, sonambulicamente pesadas, emergindo do insondável— deviam ser as copas das árvores. De súbito. porém. a sirga não alcançou mais o fundo. A correnteza pegou a jangada de chofre, fê-la tornear rapidamente e arrebatou-a no lombo espumarento. As três pessoas agarraram-se freneticamente aos buritis. mas um tronco de árvore que derivava chocou-se com a embarcação, que agora corria na garupa da correnteza.

Quelemente viu a velha cair nágua, com o choque, mas não pôde nem mover-se: procurava, por milhares de cálculos, escapar à cachoeira. cujo rugido se aproximava de uma maneira desesperadora. Investigava a treva, tentado enxergar os barrancos altos daquele ponto do curso. Esforçava-se para identificar o local e atinar com um meio capaz de os salvar daquele estrugir encapetado da cachoeira.

A velha debatia-se, presa ainda à jangada por uma mão, despendendo esforços impossíveis por subir novamente para os buritis. Nisso Quelemente notou que a jangada já não suportava três pessoas. O choque com o tronco de árvore havia arrebentado os atilhos e metade dos buritis havia-se desligado e rodado. A velha não podia subir. sob pena de irem todos para o fundo. Ali já não cabia ninguém. Era o rio que reclamava uma vítima.

As águas roncavam e cambalhotavam espumejantes na noite escura que cegava os olhos, varrida de um vento frio e sibilante. A nado, não havia força capaz de romper a correnteza nesse ponto. Mas a velha tentava energicamente trepar novamente para os buritis. arrastando as pernas mortas que as águas metiam por baixo da jangada. Quelemente notou que aquele esforço da velha estava fazendo a embarcação perder a estabilidade. Ela já estava quase abaixo das águas. A velha não podia subir. Não podia. Era a morte que chegava. abraçando Quelemente com o manto líquido das águas sem fim. Tapando a sua respiração. tapando seus ouvidos. seus olhos. enchendo sua boca de água, sufocando-o, sufocando-o, apertando sua garganta. Matando seu filho que era perrengue e estava grudado nele.

Quelemente segurou-se bem aos buritis e atirou um coice valente na cara aflissurada da velha Nhola. Ela afundou-se para tornar a aparecer, presa ainda à borda da jangada, os olhos fuzilando numa expressão de incompreensão e terror espantado. Novo coice melhor aplicado e um tufo d' água espirrou no escuro. Aquele último coice, entretanto. desequilibrou a jangada. que fugiu das mãos de Quelemente, desamparando-o no meio do rio.

Ao cair. porém, sem querer. ele sentiu sob seus pés o chão seguro. Ali era um lugar raso. Devia ser a campina adjacente ao barranco. Era raso. O diabo da correnteza, porém, o arrastava. de tão forte. A mãe. se tivesse pernas vivas. certamente teria tomado pé, estaria salva. Suas pernas. entretanto, eram uns molambos sem governo. um estorvo.

Ah! se ele soubesse que aquilo era raso. não teria dado dois coices na cara da velha. não teria matado uma entrevada que queria subir para a jangada num lugar raso, onde ninguém se afogaria se a jangada afundasse...

Mas quem sabe ela estava ali, com as unhas metidas no chão. as pernas escorrendo ao longo do rio?

Quem sabe ela não tinha rodado? Não tinha caído na cachoeira. Cujo ronco escurecia mais ainda atreva?

— Mãe. Ô. mãe!

— Mãe, a senhora tá aí?

E as águas escachoantes, rugindo, espumejando. refletindo cinicamente a treva do céu parado. do céu defunto. do céu entrevado, estuporado.

— Mãe, ô, mãe! Eu num sabia que era raso.

— Espera aí, mãe!

O barulho do rio ora crescia, ora morria e Quelemente foi-se metendo por ele a dentro. A água barrenta e furiosa tinha vozes de pesadelo, resmungo de fantasmas, timbres de mãe ninando filhos doentes, uivos ásperos de cães danados. Abriam-se estranhas gargantas resfolegantes nos torvelinhos malucos e as espumas de noivado ficavam boiando por cima, como flores sobre túmulos.

— Mãe! — lá se foi Quelemente, gritando dentro da noite, até que a água lhe encheu a boca aberta, lhe tapou o nariz, lhe encheu os olhos arregalados, lhe entupiu os ouvidos abertos à voz da mãe que não respondia, e foi deixá-lo, empazinado, nalgum perau distante, abaixo da cachoeira.


Texto acima extraído do livro “Caminhos das Gerais”, Editora Civilização Brasileira – Rio de Janeiro, 1975.

* Bernardo Élis Fleury de Campos Curado (1915 – 1977), nasceu em Corumbá de Goiás (GO). Advogado, professor, poeta, contista e romancista. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, sucedendo a Ivan Lins na Cadeira nº 1, em 23 de outubro de 1975. Auytor de livros como “A terra e as carabinas” (romance em folhetim publicado no jornal " Estado de Goiás) “Primeira chuva”, poesia (1955), “Ermos e gerais”, contos (1944) e “O tronco”, romance (1956), entre outros.






Que pipoquem experimentos!

* Por Rubem Alves

A vida me ensinou que não existe nada mais inútil que projeções futurológicas: o final é sempre outro… Mas pediram que eu me aventurasse… Assim, o que vou fazer é indicar algumas das tendências “escolares” que vejo no presente e imaginar seu destino futuro.
Em primeiro lugar há “escola tradicional”. A “escola tradicional” se caracteriza por ser baseada em “programas” em que os saberes, organizados numa determinada ordem, são estabelecidos por autoridades burocráticas superiores ausentes. Os professores sabem o programa e o ensinam. Os alunos não sabem e devem aprender.
Os alunos são agrupados em turmas independentes que não se comunicam umas com as outras. A atividade de pensar é fragmentada em unidades de tempo chamadas aulas, que também não se relacionam umas com as outras. Livros-texto garantem a uniformidade do ensino. A aprendizagem é avaliada numericamente por meio de testes.
As “escolas tradicionais”, como todas as instituições, são dotadas de mecanismos para impedir as mudanças. Muitas das “escolas tradicionais” são estatais, o que significa garantia de segurança, por meio de um emprego vitalício. Mas, como se sabe, a segurança põe a inteligência a dormir.
Prevejo que, daqui a 25 anos, essas escolas estarão do mesmo jeito, talvez pintadas com cores mais alegres.
Mas, de repente, os saberes começaram a pulular fora dos limites da “escola tradicional”. Circulam livres no ar — sem depender de turmas, salas, aulas, programas, professores, livros-texto —, dotados do poder divino da onipresença: o aprendiz aperta um botão e viaja instantaneamente pelo espaço.
O aprendiz se descobre diante de um mundo imenso, onde não há caminhos predeterminados por autoridades exteriores. Viaja ao sabor da sua curiosidade, quer explorar, experimenta a surpresa, o inesperado, a possibilidade de comunicação com outros aprendizes companheiros de viagem.
Mas o fato é que ele se encontra diante de uma tela de computador. É um mundo virtual. Trata-se apenas de um meio. E é somente isso, essa alienação da realidade vital, que torna possível a sua imensidão potencialmente infinita. Mas, como disse McLuhan, “o meio é a mensagem”. E a “massagem”…
Há o perigo de que os fins, a vida, sejam trocados pelo fascínio dos meios — mais seguros e mais extensos. Fascinante esse novo espaço educativo. Não é preciso ser profeta para prever que ele irá se expandir além daquilo que podemos imaginar, especialmente em se considerando a sua ligação com interesses econômicos gigantescos. Mas é preciso perguntar: “Qual é o sentido desses meios para os milhões de pobres que não têm o que comer? E quais serão as consequências do seu fascínio virtual?”.
Há, finalmente, um florescimento de experimentos educacionais alternativos.
Por oposição ao conhecimento virtual, essas experiências de aprendizagem se constroem a partir dos problemas vitais com que os alunos se defrontam no seu cotidiano, no seu lugar, na sua particularidade. Não há programas universais definidos por uma burocracia ausente porque a vida não é programável.
Os desafios que enfrentam as crianças nas praias de Alagoas, nas favelas do Rio, nas matas da Amazônia e nas montanhas de Minas não são os mesmos. Além dos saberes que porventura venham a ser aprendidos, esses experimentos buscam o desenvolvimento da capacidade de ver, de maravilhar-se diante do mundo, de fazer perguntas e de pensar.
Tenho a esperança de que esses experimentos continuarão a pipocar, porque é neles que o meu coração se sente esperançoso.

• Rubem Alves é escritor, teólogo e educador.


Alma preparada


* Por Rubem Costa

Não, senhores, não foi no tempo das jardineiras. Naquele dia, o que eu estava esperando, ali parado, não era mais a geringonça que no meu tempo de menino circulava, carregando gente pelo Interior afora. Aqueles antigos armários motorizados de lados vazados e bancos paralelos se arrastando pelas estradas poeirentas já não mais existiam. Em verdade, domada pelo asfalto, nem mesmo poeira havia... O progresso chegara e com ele o ônibus fechado de janelas de vidro e poltronas macias.
A diferença, entanto, era só no conceito de conforto e forma da carroceria, porque, quanto aos horários, de acordo com a tradição, continuavam sempre fora do programa. Parece que disputavam com a “maria fumaça” da Mogiana para saber quem ganhava nos atrasos. Perto de mim, na agência de embarque da Cometa, o padre resmungava impaciente contra a demora. Olhava o relógio com ar de reprovação. — “Que fazer, disse-me afinal, para disfarçar a irritação, é preciso a gente ter calma e tolerância porque tudo acontece por obra de Deus.” Respirou fundo e continuou — “Ele aponta os caminhos. Veja o que aconteceu, semana passada, nesta mesma agência. Monsenhor João Batista estava aqui esperando a condução para São Paulo.
Quando o ônibus chegou, já com mais de uma hora de atraso, viu no momento do embarque que uma mulher aparentando estar muito doente, se arrastava para o único lugar vago no fundo do carro. Condoído, propôs imediatamente uma troca com ela que passou a ocupar a poltrona para ele reservada. Enquanto a doente se acomodava bem na frente, ele foi sentar-se feliz no fundo do carro. Depois da partida, não havia passado uma hora, chegou a notícia alarmante, o ônibus tombara na estrada, causando ferimentos em passageiros e uma vítima fatal: Monsenhor João, aquele que trocara de lugar com a doente.” — “Eis aí — arrematou padre Ângelo — os desígnios da Providência. Com certeza, Deus fez Monsenhor promover a barganha pelo lugar fatal, porque sabia que só ele — e não a pobre mulher — estava com a alma preparada para ocupar um posto no céu”. Assenti com a cabeça imaginado um seguro de vida para mim. Assim que pároco terminou de falar, chegou o nosso ônibus.
Preventivamente, na hipótese de um novo desastre, fui até ele que já se acomodara em sua poltrona numerada e lhe roguei esperançoso. — “Padre, não estou com a alma preparada, vamos trocar de lugar?” Primeiro, desconfiado, remexendo-se aflito, fez que não me ouviu. Repeti a proposta. “Diante da insistência, recolheu-se rapidinho na explicação estropiada: - “Han! Compreendo, mas infelizmente não posso, também ainda não estou preparado, só quando eu for Monsenhor”. Decepcionado, vi minha apólice securitária escorrer pelo ralo... Na hora do clister, o sacerdote tirava o corpo da seringa. Encolheu-se na blague sorrateira que mandava às favas a essência apostólica do dar de si — viver para salvação das almas.

O reverendo possuía o fervor da fé, mas na transição entre o conhecido e o desconhecido não tinha bem certeza como seria o paraíso. Nada de trocar o certo pelo duvidoso. Pensou lógico. Arriscar para quê? Mateus, primeiro os meus! Afinal, quem nasceu para ser tosquiado e virar churrasco foi a ovelha, não o pastor. Melhor era ficar por aqui, a pastorear com segurança, preparando a alma até chegar a cônego. Ou talvez, quem sabe, melhor fosse um pouco mais além, até à gloriosa idade de bispo jubilado. Precaução e caldo de galinha não fazem mal a ninguém. Assim pensado, assim feito. A generosa dádiva de si mesmo com expressão de amor é privilegio só dos santos. Assim mesmo, apenas dos verdadeiros, sem codificação política. Daqueles cuja santidade reflui sem necessidade da canonização... “Sans peur et sans reproche”.
Basta olhar para compreender Francisco de Assis se despojando das vestes e Catarina de Senna recolhendo ao colo a cabeça decepada de um condenado inocente. São porque são. Mas quem era ele (sacerdote em começo de carreira) para ser santo? Conformei-me. De lá para cá já decorreram cinqüenta anos e ainda estou esperando pacientemente um padre ou pastor evangélico de alma preparada que se disponha, a longo prazo, fazer a barganha: trocar comigo de lugar na hora que a parca estiver por chegar. Propus a transação (contrato de futuro, a longo prazo) a um diácono que se escandalizou, dizendo que sou um espírito empedernido, sem lastro para o negócio. Mas não me amofinei, não tenho pressa. Pela benfeitoria celestial posso esperar por uns trinta anos, quem sabe até um pouco mais, sem protestar. Nunca reclamei.
Quem se irritava com o atraso era o padre. Respeito a prudência. Se não quer trocar, paciência... Claro que é uma questão de medo, mas quem não o tem? Começamos a senti-lo ainda no ventre materno. Amalgamado na escuridão do útero, o ser sofre o primeiro choque ao ser expulso para a luz. O conforto a que se habituara é bruscamente interrompido provocando-lhe a surpresa que o leva a chorar. É o susto, preâmbulo da emoção que o acompanhará ao longo da existência. Está na raiz das religiões que dele fazem o sustentáculo da obediência aos deuses: “Terás temor de Jeová, teu Deus” (Deuteronômio, Cap. 10, vers. 20), diz a Bíblia. Tímido (o que tem temor) passa a ser daí então, em maior ou menor escala, o estado ou feição psíquica do homem. Entretanto, entre as causa geradoras do terror, a extinção da vida terrena é a que mais assusta, tanto que, compenetrada de sua inafastabilidade, a sabedoria popular sentencia que para tudo há remédio menos para morte. Daí resulta que na contrafação da existência, alarmado por não saber o que vem depois, o homem sente uma infinita fome de perenidade. Não quer partir.
O jovem padre, que se esquivou de permutar o lugar comigo no ônibus, sabia bem disso. Desconfiando que a batina sentada em minha poltrona despreparada poderia ser uma atração para a chamada divina, preferiu não se arriscar. Tivesse havido a barganha, também eu, se fosse supersticioso, ter-me-ia mijado inteiro antes de chegar ao fim da viagem. De medo. Com pavor do Deus de minha infância, torturador que me diziam “vinga a iniqüidade dos pais nos filhos”. Crueldade sádica que paradoxalmente nega ao ser (porque todos somos filhos) a faculdade de salvar-se pelos seus próprios atos. Assim, enquanto minha “jardineira” não chega, vou ficando por aqui, procurando entender a perplexidade do homem que, sonhando com o sem fim, morre de medo de perder a sua eternidade.

* Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.