Avesso
do avesso
* Por Pedro J. Bondaczuk
A apregoada modernidade agravou um problema social
que já era gravíssimo, e que agora adquire dimensões caóticas, embora a
questão, por ser incômoda, raramente venha a público. Trata-se da multidão de
pessoas sem-teto – conhecidas no mundo todo pela expressão inglesa “homeless”,
já que o fenômeno é típico, em maior ou menor grau, da maioria das grandes
cidades mundiais – que vegeta, sem perspectivas ou esperanças, pelas ruas das
metrópoles brasileiras (e, de uns tempos para cá, até de cidadezinhas do
interior), dando graças a Deus a cada dia que sobrevive.
A revista “Dignitas Salutis”, do Sindicato dos
Hospitais, Clínicas, Casas de Saúde, Laboratórios de Pesquisas e Análises
Clínicas, Instituições Beneficentes, Religiosas e Filantrópicas do Estado de
São Paulo, em sua edição dezembro de 1992/janeiro de 1993 (o órgão era bimestral), trouxe uma reportagem
contundente sobre essa gente, intitulada “Vira-lata humano”, que muito me
sensibilizou. E de lá até hoje pouca coisa, ou quase nada, mudou no que diz
respeito à exclusão social no País, a despeito dos esforços dos governos de lá
para cá.
O título da matéria, sumamente objetiva, foi
extraído de um poema de um desses seres abandonados pelo mundo. Nosso
personagem costumava dormir nas calçadas da Avenida do Estado, em São Paulo (nem sei se
ainda está vivo, provavelmente não está) e que se autodenominava Anjo Dias,
nome fictício de alguém que, oficialmente, sequer existia, pois não dispunha de
documentos, e que diz:
“Todos os dias acordo sem saber que dia é.
Tenho que comer,
fazer xixi,
arrumar outro lugar para dormir.
Acho que é só.
Desisti de tentar não causar medo, nojo.
Diante de Deus não sou nojento.
Diante de tudo, sou corajoso,
mas quem liga pra isso?
Tô nas ruas feito um bicho.
Sou vira-lata humano.
Quem liga pra isso?”.
Não se trata, como muitos querem dar a entender, de
um caso isolado. É impossível apurar com exatidão quantos são os “homeless”
apenas em São Paulo. Há
quem estime em cem mil. Outros arriscam-se a contabilizar meio milhão de
pessoas. Quem sabe? E a quantidade importa? Um único ser humano que seja,
vivendo nestas condições, já é motivo de vergonha para toda a comunidade. E não
somente isto.
Para que existem as instituições oficiais de amparo
social? Onde tais entidades aplicam suas verbas, se um indivíduo, como no caso
de Anjo Dias, quando se vê desempregado, fica na dependência da comida que
encontra na lata do lixo para sobreviver? “Quem liga pra isso?”, pergunta o
sem-teto.
Certamente, os que estão gastando rios de dinheiro, num
insensível consumismo e numa estúpida ostentação, não ligam. Nem os políticos,
que usam o tema miséria para discursos carregados de retórica, em vésperas de
campanha eleitoral, mas que certamente jamais viram cara a cara um “homeless”
urbano.
Na referida matéria, a socióloga Cristina Maria
Costa Jorge, diretora-geral da Escola de Sociologia e Política de São Paulo,
constatou: “Desde a última década, o perfil do sem-teto vem mudando com uma
intensidade muito grande. Até então, ele era aquele indivíduo sem inserção na
sociedade que as metrópoles mantinham como uma massa de subempregados. Com o
acirramento da crise econômica, o próprio trabalhador, que recebia um ou dois
salários-mínimos, foi expulso do seu barraco e passou a se abrigar debaixo dos
viadutos”. Recorde-se que a matéria foi escrita em 1992. Hoje, a situação não
mudou muito, embora ninguém mais tenha feito qualquer reportagem a respeito.
Para quê?! Ninguém se importa mesmo!
Apesar de trágica, há quem extraia poesia dessa
situação, a mostrar que o homem, mesmo desprotegido e alijado da sua dignidade,
não abre mão da sua percepção. Bom exemplo são estes versos de um sem-teto
anônimo:
“E quem vem de outro sonho
feliz de cidade
aprende depressa a chamar-te
de realidade
porque és o avesso do avesso
do avesso do avesso...”
E o autor destes versos está errado? Antes
estivesse...
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio
Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor
do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico
de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos
livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos),
além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
Twitter:@bondaczuk
Estes últimos são versos de "Sampa", de Caetano Veloso. O preço dos alugueis expulsaram as pessoas para rua. Ações do Governo continuam tímidas demais, diante da enormidade do problema.
ResponderExcluir