segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 9 anos, sete meses e vinte e oito dias de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – A necessidade de um projeto.

Coluna Em Verso e Prosa – Núbia Araujo Nonato do Amaral, poema, “Do nada”.

Coluna Lira de Sete Cordas – Talis Andrade, poema, “Um anjo bêbado”

Coluna Pássaros da mesma gaiola – Daniel Santos, conto, “Medo maior”.

Coluna Porta Aberta – Fabiana Bórgia, crônica, “Tudo é transitório”.

Coluna Porta Aberta – Luís Augusto Cassas, poema, “Banda de asa”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas” Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer” – Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

A necessidade de um projeto



Qualquer empreendimento – não importa se a construção de uma casa ou de algum  outro objeto, ou a redação de um livro, por exemplo – para ser viável e, portanto, bem-sucedido, requer, antes e acima de tudo, que o empreendedor saiba com exatidão o que de fato quer. Isso vale, claro, também para o estudo e, principalmente, para pesquisa, notadamente da filosofia. Há outros tantos requisitos a considerar, mas este que citei é absolutamente essencial e imprescindível. Ou seja, é indispensável que haja um “projeto” prévio, logicamente factível, para viabilizar tais empreendimentos O norueguês Jostein Gaarder deixa isso claro no livro “O mundo de Sofia”, ao tratar das teses levantadas pelos filósofos da Antiguidade grega, nos primórdios da Filosofia, na tentativa de explicar os fenômenos da natureza.

O escritor explicita, a certa na altura do seu romance – que simultaneamente é uma aula de filosofia – ao se referir às instruções dadas à jovem adolescente, personagem do seu livro, desafiada a responder à questão: “pode algo surgir do nada?”, referindo-se á origem do universo: “ (...) Como a maior parte dos filósofos viveram em outra época – e talvez numa cultura completamente diferente da nossa – é importante nos determos um pouco no que seria o ‘projeto’ de determinado filósofo. Isso quer dizer que devemos procurar entender exatamente o que aquele filósofo tentava descobrir. Um filósofo podia estar investigando o surgimento das plantas e dos animais. Outro queria saber se existe um Deus ou se os homens possuem uma alma imortal (...)”.

Faz todo o sentido, não é mesmo? Por mais genial que o sujeito fosse, precisaria saber o que pretendia pesquisar especificamente. Buscar explicações pára a “origem” e funcionamento de TUDO seria o mesmo que não querer sair do lugar e não explicar coisíssima alguma. Jostein, na pele do até então ainda misterioso personagem, o mestre – do qual Sofia Amudsen, aliás, não conhecia nada e que jamais vira e nem ouvira sua voz, mas apenas recebera mensagens dele pelo correio, e  que se propusera a lhe ensinar princípios de Filosofia – explica dessa forma a necessidade do estabelecimento de um tema definido, de uma estratégia de raciocínio específica para seguir: “(...) Quando finalmente conseguimos definir qual o projeto de determinado filósofo, torna-se mais fácil acompanhar a sua linha de pensamento. Porque nenhum filósofo se preocupa em responder a rodas as questões filosóficas (...)”. Reitero: nem poderia! Se tentasse, certamente daria com os burros n’água. Não chegaria a lugar algum.

E o misterioso mestre prossegue, no texto de um extenso calhamaço que havia enviado pela manhã, pelo correio, em um envelope pardo, á estupefata e intrigada adolescente de 14 anos, às vésperas de completar 15: “(...) Não vou passar lição de casa para você – muito menos vou lhe ensinar fórmulas matemáticas  complicadas. Como se conjugam os verbos, também está muito distante do meu interesse. Mas de vez em quando vou lhe pedir que faça um pequeno exercício. Se você aceitar estas condições podemos continuar (...)”. Certamente, o ainda misterioso mestre presumiu que a menina aceitaria a tarefa que disse que lhe passaria. Porquanto, de imediato, passou a se referir a um grupo específico de filósofos, com uma linha de pensamento definida.

Gaarder, sempre travestido do personagem, escreve: “(...) Os primeiros filósofos gregos costumam ser chamados de filósofos da natureza, porque foram eles que primeiro se interessaram pela natureza e pelos processos naturais. Já nos indagamos de onde vêm todas as coisas. Muitas pessoas acreditam hoje que, num determinado momento do passado, as coisas surgiram do nada. Esse pensamento não era muito difundido entre os gregos. De uma maneira ou de outra eles acreditavam que ‘alguma coisa’ sempre existiu. Como tudo podia surgir a partir do nada não era a pergunta mais importante, aliás. Os gregos frequentemente se intrigavam com o fato de peixes poderem viver na água e com o fato de árvores imensas e flores multicoloridas nascerem da terra sem vida. Para não mencionar o fato de um pequeno bebê surgir para o mundo de dentro da mãe (...)”.

É preciso levar em conta que naquele remotíssimo passado não havia o mínimo vestígio disso que hoje denominamos de “ciência”. As tentativas das pessoas de explicarem os fenômenos mais triviais da natureza, que hoje uma criança semi-alfabetizada é capaz de entender sem grandes dificuldades, eram todas baseadas em mitos, atribuídas a exóticos deuses, entendidas como “magia” e, claro, tudo não passava de um conjunto de superstições, que hoje nos pasrece risível. Jostein Gaarder prossegue: “(...) Os filósofos testemunhavam com seus próprios olhos como ocorriam constantemente as transformações na natureza. Mas como essas transformações eram possíveis? Como uma substância poderia evoluir de uma coisa para algo totalmente diferente – uma forma de vida, por exemplo? Os primeiros filósofos concordavam que deveria haver uma ‘substância primordial’ por trás de todas as transformações. Como chegaram a essa conclusão não é fácil explicar. Nós sabemos apenas que existia a noção de que deveria haver ‘algo’ que a tudo originava e para onde tudo se voltaria (...)”. Descobrir essa ‘coisa’, então sumamente misteriosa, todavia, era o grande projeto desses filósofos da natureza. Voltarei a tratar dele.

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk           


      
Do nada


* Por Núbia Araujo Nonato do Amaral


E assim do nada me deu
um puta nó na garganta.
Tenho flores que não plantei.
Árvores que teimosamente
passaram de mão em mão.
A velha tesoura de poda
sumiu de minha vista.
Respiro fundo tantas vezes
que a lágrima encruou.
Resgato um pouco da dignidade
que sobra celebrando às borboletas.

 * Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário


Um anjo bêbado


* Por Talis Andrade


Atravessando a enluarada
ponte Príncipe Nassau
um arlequim
A música dos suaves guizos
repercute como sinos de vento
na solidão da madrugada
O arlequim
anjo arcanjo dos bêbados
e suicidas
O arlequim
visagem alada
de Djalma Tavares

* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).


Medo maior


* Por Daniel Santos


Da primeira vez que perdeu o controle, sentiu uma força assustadora injetar fúria no sangue e nos músculos – uma força que incitava à destruição. Mas, antes de se alterar por completo, a mulher escapuliu.

Sim, conseguiu se safar, mas com grande dificuldade, e a rigor ignora até hoje como se esquivou daquela ordem irracional que propunha a ruína, e não apenas de si mesma, mas igualmente dos seus!

Pois acabara de chegar do trabalho cheia de contas a pagar, o cachorro urinando na sala, o sapato mordendo-lhe o calcanhar e os filhos (ah, os dois pestinhas!) esgoelando-se até enlouquecê-la de verdade.

Também ela gritou e gritou que se calassem. Aí, o berreiro aumentou, enquanto a janta queimava no fogão, o cachorro rosnava feito um insano e os garotos puxavam-lhe a saia até enervá-la ao máximo.

A raiva evoluiu à fúria ... e ela desejou intensamente atirar as crianças pela janela. Morressem, ela teria paz, enfim. Mas trancou-se a tempo no banheiro para chorar. Chorar de medo de si mesma.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
  
Tudo é transitório


* Por Fabiana Bórgia


Pode parecer triste, mas não é. Simplesmente, tudo na vida é passageiro. Vivemos de momentos, instantes que nunca mais voltam.

Não consigo enxergar tristeza neste fato. Somos seres substituíveis, o que não significa que somos descartáveis. Temos um ciclo. Seja no trabalho, seja nos relacionamentos, seja no nosso próprio corpo.

A sabedoria da vida não está apenas em fazer aquilo que se gosta, nem em gostar daquilo que se faz, mas sim em fazer o que deve ser feito, gostando ou não, e sem reclamar. A falta de reclamação aqui toma um sentido mais profundo. Assume o sentido de que é preciso enxergar o lado bom das coisas e aproveitar a chance para amadurecer.

No meu caso, eu escolho plantar caminhos. E vou jogando sementes nestes vários caminhos, que se tornam verdadeiras plantações. Quando um acaba, sempre tenho outro a tomar. Existem alguns que eu ainda nem percorri. Talvez nem haja tempo ao longo de minha existência para isso, por ter plantado imensos latifúndios.

Só não sou muito boa com a colheita, que demanda uma paciência de Jó. Mas até isso tenho aprendido. E creio que a chuva vem no momento certo.

Há períodos de seca. Outros de dilúvio. Não me agrado com isso, mas entendo. Entendo, porque viver é saber entender que a vida segue seu curso, sem que você possa oferecer qualquer explicação.

O segredo é aceitar. A própria limitação e a infinitude da continuação, que talvez já não caiba mais a você, a mim, a nós.

Tudo na vida é transitório. Esta é a maior lição de humildade que aprendi.

•      Escritora por vocação e advogada por formação. Paulista por natureza e carioca por estado de espírito. Engenheira de sonhos: alguém em eterna construção. Autora do livro “Traços de Personalidade”


Banda de asa

* Por Luís Augusto Cassas


pomba do divino
asas do eterno
confessai aos sinos
barreira do inferno

dai coração novo
a todas as criaturas
livrai-as do fogo
noite mais escura

pousai sobre os mísseis
absolvei-lhe os destroços
tornai-os úteis fósseis
museu paleontológico

Do livro “A Poesia Sou Eu”, vol. 1.

* Poeta maranhense.


domingo, 29 de novembro de 2015

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 9 anos, sete meses e vinte e sete dias de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Reconhecimento posto que tardio.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica, “Lições do cotidiano”.

Coluna Direto do Arquivo – Sílvio Lancellotti, crônica, “O fim do Zé Índio”.

Coluna Clássicos – Humberto de Campos, trecho de livro, “Um amigo de infância”.

Coluna Porta Aberta – Paulo Melo Souza, poema, “Ariadne”.

Coluna Porta Aberta – Rui Paneiro, conto, “A mulher de Toninho Vaca Véia”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br



Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Reconhecimento posto que tardio


A história da Filosofia é incompleta quando ignora o papel das mulheres na sua gênese, evolução e consolidação. Todavia, são raros os livros a esse propósito que sequer mencionam, mesmo que de passagem, a imprescindível contribuição dada por tantas e tantas e tantas filósofas notáveis, que fizeram com que “a mãe de todas as ciências” fosse o que é hoje e, dessa forma, cumprisse seu papel na evolução humana, inclusive no aspecto material, muitas delas com o sacrifício da própria vida. Nesta série de comentários que me propus a fazer, que são como que um longo parêntese na análise do livro “O mundo de Sofia”, do norueguês Jostein Gaarder, mencionei 37 mulheres que se dedicaram à Filosofia, nas diversas eras históricas, das milhares, quiçá milhões que atuaram nessa área e de cuja existência sequer desconfiamos. Trata-se de pífia tentativa da minha parte de estimular o reconhecimento da importância das mulheres, mesmo que tardio. Adotei como base a enciclopédia eletrônica Wikipédia, uma das raras fontes que encontrei desse tipo de informação.

No que se refere a filósofas da Era Contemporânea – de meados do século XIX até nossos dias – citei, posto que, infelizmente, apenas de passagem, cinco mulheres cultas, eruditas, sábias e, sobretudo corajosas: Rosa de Luxemburgo, Lou Andréas-Salomé, Edith Stein, Maria Zambrano e Hannah Arendt. No entanto, esta série de comentários ficaria mais vazia e incompleta ainda do que já é se deixasse de citar a atuação das outras seis mulheres, relacionadas pela Wikipédia, que atuaram nesse período. Elas foram as pioneiras que abriram caminho para milhões de filósofas que se dedicam a essa indispensável atividade mundo afora na atualidade.

A francesa Simone de Beauvoir (Simone-Lucier-Ernestine Marie Bertrand de Beauvoir), que nasceu em 9 de janeiro de 1908 e morreu em 14 de abril de 1986, passou para a história como representante da corrente filosófica conhecida como Existencialismo. Sua linha de pensamento teve nítida influência de Jean-Paul Sartre, Friedrich Nietzsche e Karl Marx. Foi colaboradora da revista “Tempos Modernos”. Nas décadas de 50 e 60 do século passado viajou pelo mundo, divulgando e debatendo suas idéias filosóficas com os mais heterogêneos grupos políticos e feministas. Seu livro “Segundo sexo” tornou-se fonte obrigatória para o conhecimento da verdadeira condição feminina na época em que atuou e que serviu de inspiração para os mais sólidos movimentos feministas. Outros três livros dela, bastante importantes, entre tantos que publicou, são: “Por uma moral da ambigüidade”, “A força das coisas” e “Balanço final”.

A norte-americana Angela Yvonne Davis, que nasceu em 26 de janeiro de 1944, está, aos 71 anos de idade, em plena atividade, atuando como filósofa e ativista política vinculada ao Partido Comunista dos Estados Unidos. Destacou-se por sua atuação no movimento “Black Power” dos anos 70 do século XX que, entre outras bandeiras, moveu implacável oposição à Guerra do Vietnã e batalhou para a conquista dos direitos civis da população negra em seu país. Sua obra e sua constante atuação pública debatem conceitos tais como liberdade e liberação e refletem sobre sexismo e racismo, além dos princípios de classe e de poder. Seus livros e tantos artigos na imprensa fundamentam-se num pensamento transformador como desafio para a reflexão filosófica deste nosso tempo.

A outra filósofa norte-americana de relevo, Suzanne Langer, seguiu linha bastante diversa da de Angela Davis. Essa mulher erudita nasceu em 20 de dezembro de 1895 e morreu, aos 90 anos, em 17 de julho de 1985. O foco da sua atividade foi a filosofia da arte, como seguidora do notável filósofo Ernest Cassirer. Tem várias obras traduzidas para o português, sendo que a mais conhecida é “Filosofia em nova chave”. Seus livros e tantos artigos enfocam o papel da arte no conhecimento humano. Suzanne Langer influenciou uma quantidade enorme de intelectuais e de artistas, mundo e tempo afora. Omitir sua importância na história da Filosofia seria, além de incompreensível injustiça, verdadeira heresia.

A filósofa, escritora, dramaturga e roteirista Ayn Rand (cujo nome de batismo era Alisa Zynovievna Rosenbaum) nasceu na cidade russa de São Petersburgo, em 2 de fevereiro de 1905, mas adotou a nacionalidade norte-americana, por viver a maior parte da sua vida, atuar e morrer (em 6 de março de 1982) nos Estados Unidos. Era de origem judia. Como filósofa, ficou conhecida pelo desenvolvimento do sistema filosófico que chamou de Objetivismo. Tanto sua filosofia, quanto sua ficção, enfatizam noções de individualismo, egoísmo racional e capitalismo.

A filósofa Sarah Kofman, que nasceu em 14 de setembro de 1934 e morreu em 15 de outubro de 1994, foi uma das mais significativas pensadoras da França no pós-guerra. Sua obra, vasta e eclética, consiste de mais de vinte livros publicados, com estudos sobre a mulher na psicanálise freudiana (considerada a mais completa análise da sexualidade feminina na visão de Freud), a contribuição das filósofas na filosofia ocidental e análises sobre o pensamento de Nietzsche, entre tantos temas a que se dedicou.

Finalmente, Júlia Kristeva, que nasceu na Bulgária, em 24 de junho de 1941, mas que vive e atua na França, além de filósofa, é, aos 74 anos de idade, escritora, psicanalista, crítica literária e ativíssima feminista. Essa mulher erudita e sumamente culta é autora de vários livros, com temas das mais diversas áreas do conhecimento, com ênfase nas artes, na lingüística, no feminismo e no pós-estruturalismo. Entre suas obras destacam-se “Introdução à semanálise”, “As novas doenças da alma” e “Estrangeiros para nós mesmos”.

Espero que, com esta série de comentários, mesmo que sumamente resumidos e incompletos, eu possa ter dado uma pequena e pálida contribuição para a divulgação do relevante papel das mulheres para o nascimento, evolução e consolidação da Filosofia, o que só agora começa a ser minimamente reconhecido, graças à inteligente, persistente e corajosa atuação de tantas e tantas filósofas que comprovaram, na prática, que inteligência e competência não são e nunca serão questões de sexo.

Boa leitura.


O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk                

Lições do cotidiano



* Por Pedro J. Bondaczuk


As pessoas deveriam prestar mais atenção nas pequenas coisas do cotidiano; atentar para os gestos espontâneos de gentileza (e até de amabilidade), que partem de estranhos, de completos desconhecidos, com os quais cruzamos casualmente e que mal são reparados; valorizar atitudes generosas, de solidariedade, com as quais somos agraciados todos os dias, sem que sequer reconheçamos ou atentemos; reconhecer a nobreza, a amizade, o talento, a generosidade e o real valor das coisas ao nosso redor e daqueles que nos cercam, ou com os quais nos encontremos, posto que por acaso.

A vida não é constituída, na maior parte, de ocorrências grandiosas, dramáticas, sensacionais ou marcantes. Tais eventos acontecem, mas costumam ser raros e tendem a mudar nosso destino (para melhor ou para pior). São exceções. Em regra, são as pequenas coisas, supostamente sem importância, que tornam os relacionamentos espontâneos, suaves e agradáveis. Ou, ao contrário...

Mas mesmo que os tornem azedos e rixentos, temos como mudar tal situação: desarmando o mal-educado, o pessimista ou o mal-intencionado, com gestos de simpatia e compreensão. Ou, quando estes forem de todo intratáveis, nos afastando deles. Agindo com empatia em relação a esse "próximo" infeliz e amargurado, temos alguma chance de mudá-lo. Como? Compreendendo suas falhas e deslizes e procurando ajudá-lo (mesmo que ele não peça ou nem queira ajuda). Nisto é que reside grande parte da sabedoria de viver.

Meu vizinho do lado, do qual pouco ou nada conheço, tem o saudável hábito de ler poesia em voz alta. Faz esse exercício todas manhãs, faça sol ou faça chuva, absolutamente todos os dias, inclusive nos feriados. A proximidade de nossas casas, (moro no Jardim Chapadão, em Campinas, logo atrás do prédio da Telesp), divididas por uma simples parede, propicia a que, mesmo que não queira, eu possa "bisbilhotar" o que se passa com sua família. E o que tenho ouvido neste tempo todo fez crescer seu prestígio aos meus olhos. Da minha parte, não sou tão expansivo, daí não termos feito (ainda) amizade.

No pouco tempo de vizinhança que temos (há um ano), embora raras vezes tivéssemos nos cumprimentado e nunca parássemos para dois dedos de prosa (mais por culpa minha do que dele, insisto), aprendi a admirá-lo. Agrada-me seu constante bom-humor, típico de quem já viveu muito e aprendeu, com os anos, a distinguir o que realmente importa do que não tem tanta (ou nenhuma) importância e que, em nossa cegueira intelectual (ou moral, ou estética) achamos que é fundamental para nos fazer felizes. Mas não é. Esse senhor circunspecto, avô, profissional bem sucedido (parece-me que advogado) e agora aposentado, é um sábio!. E na verdadeira acepção da palavra.

Quantas vezes, angustiado face às dificuldades financeiras (rotina neste país em permanente crise), ou magoado por alguma desfeita dos filhos (os jovens raramente têm sensibilidade no trato com quem quer que seja, especialmente de pessoas que não pertençam à sua geração), ou frustrado pela não valorização profissional, ou preocupado em elaborar um texto de suposta sabedoria (que nem mesmo sei se será lido ou apreciado), tenho subitamente caído na realidade, ao ouvir sua declamação vibrante e entusiástica de versos de Rilke, Rimbaud, Byron, Shelley, entre outros!

Tenho o sumo privilégio de embeber-me na beleza poética dos maiores gênios do gênero e absolutamente de graça! Basta, apenas, manter os ouvidos atentos, a mente aberta e o coração acessível às divinas mensagens. Bendito vizinho! Bendito acaso que nos aproximou! Mark Twain escreveu que "o nome do maior dos inventores é casualidade". Acabo de comprovar, pela milionésima vez, que é mesmo. Foi ele que colocou em meu caminho uma pessoa com tamanha cultura e sensibilidade. Nem todos, convenhamos, têm esse privilégio. Pelo contrário...

A rigor, as maiores amizades que consegui fazer (e que prezo tanto), foram frutos do acaso. Muitas eram de leitores que ligavam para a redação do jornal em que eu trabalhava, para fazerem alguma reclamação (nem sempre pertinente ou dirigida à pessoa apropriada). Procurava atendê-los sempre bem, mesmo que suas palavras, a princípio, não fossem exatamente gentis ou que meu humor não estivesse dos melhores. Tentava compreender suas motivações e era, em geral, muito feliz nesse aspecto. Às vezes, mesmo contando com escassez de tempo, dada a minha função de editor, prolongava a conversa mais do que deveria. Sintia, do outro lado da linha, em geral, a presença de uma pessoa angustiada, ou solitária, ou ambas as coisas. Não tenho vocação para santo, mas o sofrimento alheio me sensibiliza e comove. Talvez por me sentir muito feliz e não achar que seja merecedor dessa graça.

Tal exercício de empatia tem me rendido bons frutos. Anatole France escreveu que "o acaso é o pseudônimo de Deus quando Ele não quer assinar". Estou cada vez mais convencido disso! Dia a dia, meu círculo de amigos se expande e a solidão, característica de todo o ser humano nesta vida (não sei se existe outra) repleta (ou toda ela constituída) de mistérios, se torna menor. Ou, pelo menos, fica mais suportável. Do mundo não levamos nada... Deixamos: lembranças boas ou más, obras idem e só sobreviveremos no coração daqueles que soubermos cativar. É a nossa única chance de "imortalidade". O resto... é, como diria Eclesiastes, "vanitas vanitatis". Vaidade...nada mais do que vaidade...

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
          
O fim do Zé Índio


* Por Sílvio Lancellotti


José Raimundo, o Zé Índio, alagoano fugido de vários crimes na sua juventude entre os jagunços da sua terra, lhe servia como porteiro já fazia três anos. Porteiro, limpador do cocô e do xixi dos seus cachorros, manobrista dos carros da sua ruazinha, um acompanhante eventual do filho nas baladas dos sábados à noite. Era rústico, mas era confiável, apesar da ficha longa que o seu patrão havia levantado na polícia. A princípio, o patrão imaginou que não seria legítimo empregar alguém tão complicado no passado. Tratava-se, porém, de um passado melífluo. Zé Indio ostentava apenas vinte anos, uma índole dócil, um sorriso cativante, e lhe confessara os seus dilemas: nas suas plagas, não dispunha de alternativa: obedecia ao coronelato, ou morria.

Optara por sobreviver – e fugira no rumo da megalometrópole. Vagara como vagabundo de rua, até que o patrão, penalizado, o acolhera. Tinha se transformado em um outro tipo de assecla, agora brando, solícito, gentil. Tanto que, sem saber que atravessaria um teste sutil de caráter e de fidelidade, quando o patrão lhe propôs uma missão bem diferente do convencional, a de assustar um rapazote que assediava a sua pimpolha caçula, se recusou: “Eu não faço mais isso, não, doutor. Agora, eu sou um homem só do bem”.

O patrão gostou da resposta. Até mesmo aumentou o salário do Zé Índio e lhe permitiu que dormisse na sua garagem, numa cama de armar, que usasse o banheiro da edícula, para se banhar. Comprou-lhe até roupas novas, pagou a auto-escola para que o alagoano tirasse a sua carta de motorista. Registrou, inclusive, o seu documento de trabalho. Transcorreu, então, uma convivência confortável entre o chefe e o funcionário oficial – até que, certa noite, um dos vizinhos do patrão o alertou: soubera que o Zé Índio cobrava pedágio das prostitutas do bairro, recebia uma comissão por cada transa das garotas.

Convidou o funcionário a comer uma pizza num restaurante da região. Permitiu-lhe que tomasse dois chopes. E tentou arrancar dele a verdade. Pela hesitação do Zé Índio, imediatamente intuiu que o alagoano escondia o real. Advertiu-o para o perigo que corria, se envolver com gente ruim. Zé Indio abaixou a cabeça e acenou que entendia. Tarde demais. Numa manhã de domingo, ao sair para o seu passeio tradicional com os seus cães, o patrão deparou com o corpo do Zé Índio, ensangüentado, num canto do seu muro. Recebera dois tiros pelas costas, certamente de um cafetão incomodado.
       
A polícia não conseguiu descobrir quem o matara. Mas, afortunadamente, por um longo tempo, as prostitutas desapareceram dos seus arredores...

* Diplomou-se em Arquitetura. Trabalhou na revista “Veja” de 1967 até 1976, onde se tornou editor de “Artes & Espetáculos”. Passou por “Vogue”, agências de publicidade, foi redator-chefe de “Istoé”, colunista da “Folha” e do “Estadão”, fez programas de gastronomia em várias emissoras de TV, virou comentarista de esportes da Band, Manchete e Record, até se fixar, em 2003, na ESPN. Trabalha, além da ESPN, na Reuters, na “Flash”, no portal Ig e na “Viva São Paulo” e é sócio da filha e do genro na Lancellotti Pizza Delivery – site de Internet www.lancellotti.com.br.
  
Um amigo de infância


* Por Humberto de Campos


No dia seguinte ao da mudança para a nossa pequena casa dos Campos, em Parnaíba, em 1896, toda ela cheirando ainda a cal, a tinta e a barro fresco, ofereceu-me a Natureza, ali, um amigo. Entrava eu no banheiro tosco, próximo ao poço, quando os meus olhos descobriram no chão, no interstício das pedras grosseiras que o calçavam, uma castanha de caju que acabava de rebentar, inchada, no desejo vegetal de ser árvore. Dobrado sobre si mesmo, o caule parecia mais um verme, um caramujo a carregar a sua casca, do que uma planta em eclosão. A castanha guardava, ainda, as duas primeiras folhas unidas e avermelhadas, as quais eram como duas jóias flexíveis que tentassem fugir do seu cofre.

- Mamãe, olhe o que eu achei! - gritei, contente, sustendo na concha das mãos curtas e ásperas o mostrengo que ainda sonhava com o sol e com a vida.

- Planta, meu filho... Vai plantar... Planta no fundo do quintal, longe da cerca...

Precipito-me, feliz, com a minha castanha viva. A trinta ou quarenta metros da casa, estaco. Faço com as mãos uma pequena cova, enterro aí o projeto de árvore, cerco-o de pedaços de tijolo e telha. Rego-o. Protejo-o contra a fome dos pintos e a irreverência das galinhas. Todas as manhãs, ao lavar o rosto, é sobre ele que tomba a água dessa ablução alegre. Acompanho com afeto a multiplicação das suas folhas tenras. Vejo-as mudar de cor, na evolução natural da clorofila. E cada uma, estirada e limpa, é como uma língua verde e móbil, a agradecer-me o cuidado que lhe dispenso, o carinho que lhe voto, a água gostosa que lhe dou.

O meu cajueiro sobe, desenvolve-se, prospera. Eu cresço, mas ele cresce mais rapidamente do que eu. Passado um ano, estamos do mesmo tamanho. Perfilamo-nos um junto do outro, para ver qual é mais alto. É uma árvore adolescente, elegante, graciosa. Quando eu completo doze anos, ele já me sustenta nos seus primeiros galhos. Mais uns meses e vou subindo, experimentando a sua resistência. Ele se balança comigo como um gigante jovem que embalasse nos braços o seu irmãos de leite. Até que, um dia, seguro da sua rijeza hercúlea, não o deixo mais. Promovo-o a mastro do meu navio e, todas as tardes, lhe subo ao galho mais empinado, onde, com o braço esquerdo cingindo o caule forte, de pé, solto, alto e sonoro, o canto melancólico da "Chegança", que é, por esse tempo, a festa popular mais famosa de Parnaíba:

Assobe, assobe, gajeiro,
Naquele tope real...
Para ver se tu avistas,
Otolina,
Areias de Portugal!

Mão direita aberta sobre os olhos, como quem devassa o horizonte equóreo, mas devassando, na verdade, apenas os quintas vizinhos, as vacas do curral de Dona Páscoa e os jumentos do sr. Antônio Santeiro, eu próprio respondo, com minha voz gritada, que a ventania arrasta para longe, rasgando-a, como uma camisa de som, nas palmas dos coqueiros e nas estacas das cercas velhas, enfeitadas de melão-são-caetano:

Alvíssaras meu capitão,
Meu capitão-general!
Que avistei terras de Espanha.
Otolina,
Areias de Portugal!

A memória fresca, e límpida, reproduz, uma a uma, fielmente, todas as passagens épicas, todas as canções melancólicas e singelas da velha lenda marítima com que o majestoso mulato Benedito Guariba, uma vez por ano, à frente dos seus caboclos improvisados em marujos portugueses, alvoroça as ruas arenosas de Parnaíba. O vento forte, vindo das bandas da Amarração, dá-me a impressão de brisa do oceano largo. O meu camisão branco, de menino da roça, paneja, estalando, como uma bandeira solta. O cajueiro novo, oscilando comigo, dá-me a sensação de um mastro erguido rolando diante de mim, na curva do horizonte, onde o céu e o mar se beijam e misturam, as terras claras de Espanha, e areias de Portugal.

Pouco a pouco, a noite vem descendo. Um véu de cinza envolve docemente os coqueiros dos quintais próximos. Os bezerros de Dona Páscoa berram com mais tristeza. As vacas, apartadas deles, respondem com mais saudade. Os jumentos do sr. Antônio Santeiro zurram as cinco vogais e o estribilho "ípsilon", marcando sonoramente as seis horas. Os do sr. Antonio do Monte, ao longe, conferem e confirmam o zurro, o focinho para o alto, olhando o milho de ouro das primeiras estrelas. E eu, gajeiro de uma nau ancorada na terra, desço tristemente do folhudo mastro do meu cajueiro, sonhando com o oceano alto, invejando a vida tormentosa dos marinheiros perdidos, que não tinham, pelo menos, a obrigação de estudar, à luz de um lampião de querosene, a lição do dia seguinte...

Aos treze anos da minha idade, e três da sua, separamo-nos, o meu cajueiro e eu. Embarco para o Maranhão, e ele fica. Na hora, porém, de deixar a casa, vou levar-lhe o meu adeus. Abraçando-me ao seu tronco, aperto-o de encontro ao meu peito. A resina transparente e cheirosa corre-lhe do caule ferido. Na ponta dos ramos mais altos abotoam os primeiros cachos de flores miúdas e arroxeadas como pequeninas unhas de crianças com frio.

- Adeus, meu cajueiro! Até à volta!

Ele não diz nada, e eu me vou embora.

Da esquina da rua, olho ainda, por cima da cerca, a sua folha mais alta, pequenino lenço verde agitado em despedida. E estou em S. Luís, homem-menino, lutando pela vida, erijando o corpo no trabalho bruto e fortalecendo a alma no sofrimento, quando recebo uma comprida lata de folha acompanhando uma carta de minha mãe: "Receberás com esta uma pequena lata de doce de caju, em calda. São os primeiros cajus do teu cajueiro. São deliciosos, e ele te manda lembranças..."

Há, se bem me lembro, uns versos de Kipling, em que o Oceano, o Vento e a Floresta palestram e blasfemam. E o mais desgraçado dos três é a Floresta, porque, enquanto as ondas e as rajadas percorrem terras e costas, ela, agrilhoada ao solo com as raízes das árvores, braceja, grita, esgrime com os galhos furiosos, e não pode fugir, nem viajar... Recebendo a carta de minha mãe, choro, sozinho. Choro, pela delicadeza da sua idéia. E choro, sobretudo, com inveja do meu cajueiro. Por que não tivera eu, também, raízes como ele, para me não afastar nunca, jamais, da terra em que eu, ignorando que o era, havia sido feliz?

Volto, porém. O meu cajueiro estende, agora, os braços, na ânsia cristã de dar sombra a tudo. A resina corre-lhe do tronco, mas ele se embala, contente, à música dos mesmos ventos amigos. Os seus galhos mais baixos formam cadeiras que oferece às crianças. Tem flores para os insetos faiscantes e frutos de ouro pálido para as pipiras cinzentas. É um cajueiro moço, e robusto. Está em toda a força e em toda a glória ingênua da sua existência vegetal.

Um ano mais, e parto novamente. Outra despedida; outro adeus mais surdo, e mais triste:

-Adeus, meu cajueiro!

O mundo toma-me nos seus braços titânicos, arrepiados de espinhos. Diverte-se comigo como a filha do rei de Brobdingnag com a fragilidade do capitão Guliver. O monstro maltrata-me, fere-me, tortura-me. E eu, quase morto, regresso a Parnaíba, volto a ver minha casa, e a rever o meu amigo.

- Meu cajueiro, aqui estou!

Mas ele não me conhece mais. Eu estou homem; ele está velho. A enfermidade cava-me o rosto, altera-me a fisionomia, modifica-me o tom da voz. Ele está imenso e escuro. Os seus galhos abraçam coqueiros, afogam laranjeiras que noivam, ou ultrapassam a cerca e vão dar sombra, na rua, às cabras cansadas, aos mendigos sem pouso, às galinhas sem dono... Quero abraçá-lo, e já não posso. Em torno ao seu tronco fizeram um cercado estreito. No cercado imundo, mergulhado na lama, ressona um porco... Ao perfume suave da flor, ao cheiro agreste do fruto, sucederam, em baixo, a vasa e a podridão!

- Adeus, meu cajueiro!

(Memórias, 1933).


* Jornalista, crítico, contista e memorialista, membro da Academia Brasileira de Letras.
Ariadne


* Por Paulo Melo Souza


deglutia flores
amassadas na maionese
acionava os alarmes da aurora
despertava no país do sono
brincava de cabra-cega na beira dos precipícios
palitava os dentes
à espera do apocalipse

·         Poeta e jornalista maranhense, autor dos livros “Visagem” e “Oráculo de Lúcifer