Dorival Caymmi no seu aniversário
* Por
Urariano Mota
Em 30 de agosto de 2014
deveria haver festa, o azul mais bonito no céu, uma fraternidade de
civilização, um almoço coletivo em todo o Brasil. Imaginem por quê, Dorival
Caymmi faz 100 anos.
Nascido em 30 de abril
de 1914… – vocês já vêem a dificuldade em saudar um artista de gênio sem cair
no ridículo, porque começamos com a prosa mais insossa, “nascido em 30 de
abril…”. Por isso peço licença, até dos ouvidos, para falar de um Caymmi nosso,
privado, falsamente privado, porque sempre julgamos que a melhor música é
assunto íntimo, quando ela é assunto íntimo de toda a gente.
Acredito, mas não sei a
razão, que as músicas, as composições de que mais gostamos, trazem e traçam um
destino prévio para o nosso ser, para a nossa conformação de espírito. Digo
mais, se não me internam em um hospício, se prometem que com isto eu não
receberei um atestado de louco, digo mais, como um doido varrido de pedra:
acredito que as músicas, as composições de que mais gostamos, traçam até mesmo
um destino, elas fazem o nosso destino. Nós gostamos delas sem saber que esse
afeto vai nos marcar indelével por toda a vida. Nós amamos essas humanas sem
saber que elas são proféticas. Digo isto, escrevo isto, e cá dentro há um ser
agitado, convulso entre a dor e o riso, como naquelas máscaras antigas do
teatro. Pois com abalos no fígado, no ventre e no peito, quero apenas dizer:
Ai,
que saudade eu tenho da Bahia
Ai,
se eu escutasse o que mamãe dizia
‘Bem,
não vá deixar a sua mãe aflita
A
gente faz o que o coração dita
Mas
esse mundo é feito de maldade e ilusão’
Ai,
se eu escutasse hoje não sofria
Ai,
esta saudade dentro do meu peito
Ai,
se ter saudade é ter algum defeito
Eu
pelo menos mereço o direito
De
ter alguém com quem eu possa me confessar
Ponha-se
no meu lugar
E
vejam como sofre um homem infeliz
Que
teve que desabafar
Dizendo
a todo mundo o que ninguém diz
Vejam
que situação
E
vejam como sofre um pobre coração
Pobre
de quem acredita
Na
glória e no dinheiro para ser feliz
Sem comentário,
deveríamos passar para uma linha adiante. Mas não, voltamos, porque como burro
teimoso não arredamos do canto. Por que essa composição nos toca tanto? Há
nela, é certo, uma lembrança antiga, de infância, em que a cantávamos sem nunca
ter ido à Bahia, sem compreender mesmo o sentido de saudade. Cantávamos pela
música, pela melodia, deveríamos dizer. Ou porque, talvez, as crianças
compreendam sem saber a razão. (Às vezes, mal conseguimos falar, e já cantamos
coisas tristes, bem tristes, de um mal e desengano do qual ainda não possuímos
a experiência. Cantamos como papagaios? Não, até onde lembramos, cantamos com
sentimento, e sentimos um desejo imenso de solidão, quando ainda mal possuímos
o sentido disso.)
Sim, poderia ser dito,
cantávamos pela melodia, nada a ver com a letra. (Há uma cor nessa melodia,
sentimos, que vem como réstia de raio do sol amarela.) Depois, aí sim, com as
perdas que começamos a somar, melhor, a integrar nos músculos que ganhamos,
compreendemos a letra, pensamos. Ai se eu escutasse o que mamãe dizia! Deve
então ser isto, pensamos. É a falta dela que nos faz dizer, ai, se eu escutasse
aquela que não tenho ao meu lado. Mas não podemos, por mais memória que
tenhamos, não podemos viver sempre assim. Viver sob o signo da perda é o
próprio sentido da maldição. Mas Caymmi resiste, enquanto avançamos. Então
chega ao ponto de ser a canção profética, que cantamos com voz dura, como homem
de fato, durão, grosso, estúpido e burro, quando temos o peito mole, feito em
pedaços: “que teve que desabafar, dizendo a todo o mundo o que ninguém diz”.
Vejam que situação. Que
vergonha. Foder-se calado parece mais varonil e másculo. Então que se fodam os
varonis, que vá à merda o homem que nega o sentimento. Porque “pobre de quem
acredita na glória e no dinheiro para ser feliz”. Sim, tomamos isso para nós,
quando nem temos a glória nem o dinheiro, mas acreditamos nisso, como se o
tivéssemos. E sentimos assim porque sabemos, agora, de viva experiência, que o
fundamental mesmo é o indispensável: sempre estranho à gorda conta bancária, ao
bom restaurante, ao carro do ano. Pobre de quem acredita nesse ouro. Pobre de
quem só tem esse ouro. Vejam que situação.
Então chegamos ao
específico, ao profético da canção, que cantávamos quando de nada sabíamos, há
muito tempo, e pelo que nos ocorreu depois, dizemo-nos.
Ponha-se
no meu lugar
E
vejam como sofre um homem infeliz
Que
teve que desabafar
Dizendo
a todo mundo o que ninguém diz
Vejam
que situação
E
vejam como sofre um pobre coração
Isso foi, era e é o meu
destino, dizemo-nos. É por isso que eu cantava, desde a infância. Sim, foi
isso, sim… Mas, acordamos, será mesmo uma profecia pessoal, uma antecipação do
destino só meu e de mais ninguém? Ou será, mais propriamente, uma antecipação
de toda a gente, um fiel a marcar a esperança e desesperança de toda uma
humanidade? Nisto não estará mesmo a vitória da arte, o de falar a uma só
pessoa, quando fala a todas as pessoas? Isto me ocorre, porque agora vejo que
todo homem tem um menino dentro, que deve ter sido feliz algum dia. Até mesmo
em meio ao maior desassossego, alguma breve felicidade o menino teve. Todo
homem. Daí que a gente, com esse exclusivismo besta, fica a pensar que Caymmi é
o mestre, o menestrel somente da gente, e de mais ninguém. Marina.
“Marina,
morena
Marina,
você se pintou
Marina,
você faça tudo
Mas
faça um favor
Não
pinte esse rosto que eu gosto
Que
eu gosto e que é só meu
Marina,
você já é bonita
Com
o que Deus lhe deu
Me
aborreci, me zanguei
Já
não posso falar
E
quando eu me zango, Marina
Não
sei perdoar
Eu
já desculpei muita coisa
Você
não arranjava outra igual
Desculpe,
Marina, morena
Mas
eu tô de mal
De
mal com você
De
mal com você”.
A música de Caymmi
lembra para nós o que é fundamental, cheiro, cheiro como beijo, cheiro também
de aroma, primário e sofisticado que ele é a um só tempo. Agora mesmo, chove na
rua, em pleno verão, e esta chuva lembra Caymmi, porque há um cheiro de água a
molhar a terra quente, que remete a cuscuz no fogo, de manhã. E vem com ela um
cheiro de mar, de vento no mar, que ele cantou como ninguém. Coisas
fundamentais, que ouro nenhum compra, pobre de quem acredita.
Há, certo, um outro
Caymmi, que todo o mundo estrangeiro conheceu no estilo Carmen Miranda, cheia
de bananas na cabeça, turbante, olhinhos virados e saracoteios. Mas esse é
melhor deixar para as citações exóticas em filmes de Woody Allen. De “O que é
que a baiana tem?” guardamos tão só os versos que cantamos baixinho, quando a
moça bonita passa na praia, bem baixinho, cá íntimo:
“Quando você se requebrar,
caia por cima de mim, caia por cima de mim…”.
Isso bem baixinho, sem
ninguém ver. Em voz alta podemos cantar, acompanhando aquela voz retumbante de
Nana Caymmi. Salve, gênio do Brasil. Salve, salve, Caymmi. Desde que nos
entendemos de gente, nós gostamos muito de você. Desde quando tínhamos saudade
da Bahia, sem conhecer a Bahia, porque pensávamos que a Bahia fosse a nossa
mãe. Só louco.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife” e
“Dicionário amoroso de Recife”. Tem
inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
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