Os Três Mal-Amados
* Por
João Cabral de Melo neto
O amor comeu meu nome,
minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha
genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e
comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas
roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas.
O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de
meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de
meus cabelos.
O amor comeu meus
remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas,
minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de
urina.
O amor comeu na estante
todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em
verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou
os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete.
Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a
ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia
uma usina.
O amor comeu as frutas
postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de
propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam
cheios de água.
O amor voltou para
comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha
infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca
engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os
livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto
à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos,
sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado
e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os
mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana
cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo
trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de
maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas
em verso.
O amor comeu até os
dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de
meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro
grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da
terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz
e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu
silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
* Poeta
e diplomata, membro da Academia Brasileira de Letras
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