Miguel Jorge: Veias e vinhos
* Por
Nilto Maciel
O primeiro romance de
Miguel Jorge, Caixote, é livro de um personagem sofrido, constituído de
recordações entremeadas de diálogos do presente. Todo o passado ora está
contado por um narrador onisciente, ora pelo protagonista-narrador. O presente,
tão ou mais povoado de mistérios e sonhos que o seu passado mais rico, não é
narrado: são diálogos teatrais, onde os dois personagens conversam, perguntam e
respondem, dizem ou tentam adivinhar o exterior do pequeno quarto onde estão
confinados. Obra densa, como uma tragédia. Ou uma escultura, uma sonata.
Nas peças O Visitante e
Os Angélicos, reunidos num só volume, Miguel Jorge faz reaparecer as
personagens sofridas do romance Caixote, em briga de morte com seus pesadelos,
seus sonhos, suas mesquinharias, suas covardias. A primeira peça poderia ter
sido escrita por Sartre. Não há nela o homem goiano, não estão nela os
diamantes nem o monchão. Estão o Anjo, o Demônio, o estranho visitante, o
esperado visitante, o príncipe encantado dos loucos, dos perdidos na escuridão
da Esperança. A outra peça e bem diferente desta. Já não são duas personagens
perdidas num mundo de alucinações e esperas. A técnica de diálogo já não é a
mesma de antes. Sobressaem a loucura construída pelo crime dos enriquecidos, a
leviandade dos novos ricos, a estreiteza mental e moral dos herdeiros, a
hipocrisia. Numa das cenas o pai conta para o criado o crime que cometeu há
muitos anos. Como na linguagem cinematográfica, a narração se transforma em
cena.
O tema da loucura
também é fundamental no romance Veias e Vinhos. Em “Psiquiatria e
Subdesenvolvimento” (Revista O Saco nº 2, junho, 1976, Fortaleza, Ceará), José
Jackson Coelho Sampaio afirmou: “Nós somos, apenas, receitadores de
psicotrópicos do CEME, prescrevedores de eletrochoques, dependências e
solitarizações”.
Quando profissionais da
medicina se reconhecem “receitadores de psicotrópicos”, da mesma forma como o
foram os missionários europeus em sua relação com os povos nativos de outras
partes do mundo, apenas desmitificam suas próprias funções.
Sendo a doença mental
conseqüência da miséria social, ao diagnosticá-la, ao medicar o paciente e
determinar sua internação, o psiquiatra alimenta as causas dela, doença mental,
enlouquece de vez o doente, já fisicamente enfraquecido pelo trabalho
exaustivo, pela fome, pela inacessibilidade ao lazer. José Jackson escreveu
mais: “Caso nosso grupo social permaneça como está, daqui a pouco a mais
lucrativa indústria será a da loucura”.E conclui o ensaio: “Ou acabamos com as
raízes da loucura, agindo de uma maneira objetiva e revolucionária, ou a
loucura acabará por nos transformar num mundo de alucinações e delírios, paixão
e morte, som e fúria, choro e ranger de dentes – espectro de mundo”.
Porém a psiquiatria não
pode ser confundida com determinada prática psiquiátrica. Falamos daqueles
médicos que, em conluio com a direção da empresa, a pretexto de curar o
alcoolismo, por exemplo, receitam drogas ao paciente e terminam fazendo
desenvolver nele doenças mentais incuráveis. Livra-se, assim, o patrão do
trabalhador de baixa produtividade, espécie de animal de carga já sem préstimo.
Ganha a previdência estatal mais um dependente.
E onde fica o técnico
da psiquiatria? Recebe o pagamento pelo serviço prestado. Mas, se tem
consciência da mesquinhez de sua função, pode perfeitamente abandoná-la, sem
renunciar à sua ciência.
Aos padres, para se
redimirem de seus crimes, cabia cuspir na coroa do rei, queimar a batina,
pintar-se de urucu e desferir flechas sobre a soldadesca branca. Ou nem
precisavam desnudar-se, como o fazem alguns deles.
A polícia, instituição
repressora por excelência, ostenta o emblema de guardiã da segurança pública,
mas aos seus servidores não resta outra opção senão abandoná-la, se não quiserem
continuar exercendo a função de carrasco.
A discussão que emerge
da leitura do romance Veias e Vinhos, todavia, não chega a ser esta. O livro
não trata dessa desmitificação, tema mais ideológico do que político. Não vai
tão a fundo, permanecendo na crítica à prática da ideologia da repressão. Não
condena a polícia enquanto instituição ideologicamente repressiva, mas enquanto
instituição afastada de sua função principal. Não aborda a questão essencial,
ou seja, a de que esse afastamento não é ocasional ou característica desse ou
daquele país. A polícia, se comete erros, se pratica injustiças, se encarcera e
tortura inocentes, se escamoteia os crimes praticados por seus servidores, não
o faz apenas aqui e ali, dependendo do grau de corrupção de seus quadros, mas
por sua própria natureza. A segurança por ela perseguida é a que garante a
sobrevivência do sistema.
Assim, cometida a
chacina que dizimou a família de Matheus, com exceção da pequenina Ana, à
polícia cabia encontrar o criminoso e entregá-lo à Justiça, sobretudo porque o
crime alertou a população. Para que o mito não se desfizesse, urgia capturar o
criminoso. Contudo, como fazê-lo, se o facínora é policial de alto escalão?
Surge, então, a necessidade de se encontrar um bode expiatório.
Tenha se servido Miguel
Jorge de fato verídico, para a partir dele elaborar a história, tenha imaginado
tudo, não interessa nem ao leitor nem ao crítico. Na verdade, a clássica figura
do bode expiatório escamoteia a verdadeira face da polícia e da Justiça.
Ao escrever Veias e
Vinhos, o romancista seguramente pisou nos calos da instituição polícia. No
entanto, terá despertado o leitor para o subterrâneo da repressão, tal como o
fez aquele filme do cidadão acima de qualquer suspeita? Aliás, o próprio título
tocava a chaga encoberta, o mito.
O grande mérito do
romance de Miguel Jorge está na sua elaboração, na caracterização dos
personagens, do ambiente, do tempo em que é narrada a história. A figura de
Ana, por exemplo, aparece como uma das mais exuberantes de toda a literatura de
personagens infantis, sobretudo porque criança de berço, sem vocabulário ainda.
O romancista consegue transformá-la em personagem significativa, de força,
utilizando o monólogo interior, numa descoberta excepcional para a literatura. Ana
e Mário, seu irmão adolescente, se mostram como os personagens mais firmemente
criados por Miguel Jorge. Além deles, as figuras de Matheus, Antonia, Pedro e
Altino da Cruz aparecem nitidamente no enredo.
Veias e Vinhos é,
assim, realmente um retrato brasileiro, pois elaborado a partir de personagens
e ambientes brasileiros. Nesse aspecto, um romance de combate também. Seria,
porém, ufanismo às avessas chamá-lo de retrato brasileiro, apenas por narrar a
história de um crime hediondo e suas conseqüências.
A figura do capitão,
grotescamente pintada em alguns capítulos, não deixa de ser semelhante à de
qualquer policial, por sua truculência, sua imponência, seu poder. Sendo
caricatura, talvez por isso deixe de ser o personagem principal que é.
Encarnação do diabo, causador de toda a trama infernal que levou à morte, à
prisão, à tortura, à loucura tanta gente, aparece sem alma, sem a aura de sua
função. Ao leitor, apresenta-se como um personagem satânico. Esse satanismo,
entretanto, não é representado como conditio sine qua de sua função, como se o
inferno fosse obra de um satanás. Na verdade, o inferno mitológico existe não
por obra de diabos. Pelo contrário, estes se criam para povoar aquele. Da mesma
forma, a Terra não existe porque existe o Homem. Pelo contrário, este é produto
dela.
Por silogismo,
dir-se-ia: Miguel Jorge inverteu os papéis. Um capitão do diabo teria sujado de
sangue o nome da polícia e da Justiça, quando, na verdade, simplesmente se
excedeu na prática da repressão. Insultado – e é crime insultar um policial,
sobretudo o de alto escalão – restava punir o insultante, o criminoso Matheus.
E o puniu como lhe pareceu melhor. Puniu como policial. Sem cometer crime
algum, segundo sua compreensão do mundo.
* Escritor
cearense
Nenhum comentário:
Postar um comentário