quinta-feira, 31 de julho de 2014

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 8 anos e quatro meses de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Tradição e modernidade.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica, “Amanhã que nunca chega”.

Coluna Contradições e paradoxos – Marcelo Sguassábia, conto, “Um homem e uma mulher 70 anos depois”

Coluna Do fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, conto, “A dívida”.

Coluna Porta Aberta – Anair Weirich, poema “Mensagem”.

Coluna Porta Aberta – Leonardo Boff, artigo, “Ainda a mística e a espiritualidade para jogadores de futebol”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso” Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer” – Fernando Yanmar Narciso.
 “Cronos e Narciso” Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br



Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação. 
Tradição e modernidade


O cientista social Walter Benjamin definiu da seguinte forma a tarefa dos intelectuais do seu século, o XIX (aí incluídos, claro, os escritores): “Desbravar regiões, nas quais até agora vicejava a loucura. Avançar com o machado afiado da razão, sem olhar para a direita e nem para a esquerda, para não ser vítima do horror que atrai do fundo da mata virgem. Todo chão teve que ser desbravado alguma vez pela razão. Limpo do emaranhado, da ilusão e do mito. Esta é a nossa tarefa para o chão do século XIX”.

E a nossa tarefa, neste século XXI, é diferente? Afinal, qual é? O século XX foi, como destacou o escritor russo Aleksandr Soljenytsin, caracterizado pela busca frenética do “novo”. Não importou muito se para instalar as novidades, valores eternos tiveram que ser postos de lado. A procura por mudanças foi, e ainda é, maníaca. Transformou-se em obsessão!

Através dos tempos, as várias civilizações sempre procuraram encontrar a dosagem ideal entre tradição e modernidade para nortear seu rumo. A dose podia variar, mas os dois conceitos sempre estavam presentes, quer na vida cultural, quer no procedimento político e social.

Hoje, a coisa já não é bem assim, embora não se possa (e nem se deva) generalizar. O pseudomodernismo domina a maior parte das cabeças pensantes. Surgiram a metalinguagem, o concretismo, o surrealismo e outros tantos rótulos para designar coisas que são, na verdade, velhas, muito velhas. Velhíssimas!

Depois de 13 mil anos de civilização, é virtualmente impossível alguém ser original, em termos de idéias e de ações. Tudo o que pensamos ou fazemos, alguém já pensou ou fez, embora a linguagem utilizada e a mensagem transmitida tivessem aspectos diferentes, nuances próprias. Isso mesmo, apenas nuances!

O cineasta Hector Babenco acentuou, certa feita, em entrevista: “Querer ser moderno já é uma atitude velha”. Aquilo que hoje recebe esse rótulo, amanhã, certamente, estará envelhecido, defasado, ultrapassado, se o fator tradição se fizer ausente.

O filósofo francês, Jean Baudrillard, observou: “A idéia de universalização do mundo está esgotada. O Planeta está tomado, então, por uma tendência ao revisionismo, por uma renúncia às formas da modernidade, por um arrependimento. Não é por acaso que os conflitos étnicos, as guerras religiosas, a fragmentação estão retornando. A modernidade se torna insuportável. Mas nada disso é solução”.

A tarefa dos intelectuais (e, por conseqüência, dos escritores)  para este século, portanto, será redobrada. Eles terão que reconstruir, primeiro, o que foi destruído, com o abandono da tradição. Depois, retomar o que Walter Benjamin previa para o seu tempo e para a sua geração. Ou seja, “desbravar regiões, nas quais até agora a loucura viceja”.

Baudrillard sustenta: “Para mim, o mundo, a natureza, o cosmos, não importa como você preferir chamar, está em metamorfose, em regulação. Mas essa regulação não é jurídica, contratual, abstrata. Há elementos irredutíveis na natureza que não podem ser simbolizados em contrato. É uma paranóia achar que o homem vai ajudar o mundo a sobreviver. O homem destruiu, mas não sabe, nem pode, reconstruir”. Poderíamos, pelo menos, preservar as conquistas da arte e da cultura, notadamente das letras, em nossa cidade? É um desafio que se impõe a todos nós.

A cultura é, em geral, mal-interpretada, até pelos que se alimentam e vivem dela. Trata-se do conjunto de criações, vivências e conhecimentos, em todas as áreas de atividades,  frutos da experiência e da racionalidade, precioso patrimônio dos povos, que se acumula, e é aumentado, com o passar dos anos, através das sucessivas gerações. É a herança maior que recebemos dos antepassados, ampliamos (ou temos o dever moral de ampliar), dando a nossa contribuição para o avanço da civilização, e transmitimos aos nossos descendentes, que por sua parte deverão agir de idêntica forma.

O escritor George Simenon, em carta escrita em 9 de novembro de 1976 ao cineasta italiano Federico Fellini (reproduzida no caderno "Mais!" do jornal "Folha de S. Paulo" em 14 de fevereiro de 1999), constatou: "Nós somos um pouco como as esponjas que sugam a vida sem o saber e a devolvem em seguida, transformada, sem conhecer o trabalho de alquimia que se produziu em nós".

A cultura, portanto, é o "suco", a essência, a alma, a parte nobre da vida. Daí a importância da ação de pessoas e/ou instituições que atuem no sentido da sua ampliação ou, na pior das hipóteses, da sua preservação. Por isso, a relevância e o significado da ação das várias academias, de letras, de ciências, de cinema, etc.etc.etc. Elas são (ou deveriam ser) as legítimas guardiãs da tradição das respectivas atividades.

O poeta português Fernando Pessoa, em lúcido texto publicado na década de 1920, intitulado "Presença da cultura grega", assim se manifestou: "Tem duas formas, ou modos, o que chamamos cultura. Não é a cultura senão o aperfeiçoamento subjetivo da vida. Esse aperfeiçoamento é direto ou indireto. Ao primeiro se chama arte, ciência ao segundo. Pela arte nos aperfeiçoamos a nós, pela ciência aperfeiçoamos em nós o conceito ou ilusão do mundo". E as academias, reitero, são lídimas guardiãs das tradições das suas respectivas atividades.

Porém, se temos por missão sermos tradicionais, em termos de idéias e preservação daqueles valores testados e aprovados pelo tempo, podemos e devemos ser ousados quanto aos meios empregados para a consecução dos nossos objetivos. O objetivo, óbvio, de todo escritor é o de ser lido e pelo número máximo de pessoas que o seu texto possa atingir. E, por conseqüência, o nosso, claro, também é este. Mas temos o dever de oferecer-lhes o melhor, da forma mais acessível e universal possível. Pense nisso. Voltarei ao tema.

Boa leitura.

O Editor.


Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk 
Amanhã que nunca chega

* Por Pedro J. Bondaczuk


A vida consciente e civilizada – não a animal e instintiva, que nada analisa e percebe –  consiste em saber aquilo que se quer e sair em busca desse objetivo a cada dia, tornando aproveitável o nosso maior capital: o tempo. Cada segundo é importante. E, mais do que isso, é decisivo. Ninguém nos garante que não seja o último.

Tenho reiterado essa afirmação até para que eu mesmo me conscientize dessa verdade e deixe de ser dispersivo, perdulário ou indolente. Não estou recomendando a ninguém que acalente pensamentos e sentimentos mórbidos, ou a idéia fixa de que um dia irá morrer. Mas pensar nessa possibilidade de vez em quando nos repõe na realidade. É, sobretudo, um exercício de humildade que nos impede de acharmos que somos mais do que os outros.

A atitude mais comum da maioria das pessoas é a de adiar seus projetos para um amanhã que nunca chega. Adiam trabalhos, estudos, tratamentos de saúde e até manifestações de sentimentos, positivos ou não. Agem como se tivessem pela frente todo o tempo do mundo, a própria eternidade, quando, obviamente, não têm.

Vivem empurrando soluções com a barriga para um vago depois. Isto vale, também, para governos e instituições. Quem trabalha com planejamento sabe quantos planos, que custaram horas e horas de trabalho de equipes inteiras, acabam ficando esquecidos em arquivos ou gavetas, inúteis, à espera de execução. Quando finalmente alguém se propõe a desengavetá-los, já é tarde. Ficaram defasados quanto à oportunidade. E todo o esforço acaba indo por água abaixo. Resulta em absoluta perda de tempo.

Quantos livros não deixam de ser escritos apenas porque o escritor reluta em começar? Quantos quadros não deixam de ser pintados pela mesma razão? Ou quantas músicas não deixam de ser compostas? Ou quantas soluções não deixam de ser encontradas porque a análise de problemas é adiada para mais tarde, para um amanhã que nunca chega, para a semana, o mês, o ano seguintes, na verdade para o nunca? Somos, estranhamente, educados para adiar o próprio ato de viver.

O escritor Stephen Leacock observa, com propriedade, a esse propósito: "Quão estranha essa procissão da vida! A criança diz: quando eu crescer. Mas que significa isso? Já crescido, o menino diz: quando eu for moço. E depois de moço, diz: quando eu me casar. Mas, afinal de contas, que significa, nesse caso, o matrimônio? A idéia muda para: quando eu me aposentar. E, por fim, quando chega a aposentadoria, ele olha para trás, para o trajeto percorrido; um vento frio parece varrer o terreno; sem saber como, ele o perde de vista e tudo se vai. Muito tarde aprendemos que a vida consiste em viver, na substância de cada dia e de cada hora". Convenhamos, não é o que fazemos.

Chegamos tarde demais a essa conclusão. Ou pensamos que o seja. Ninguém sabe (felizmente) quanto tempo lhe resta. Há quem tente reverter o que deixou de fazer no passado e comece, com 70, 75 ou 80 anos, a perseguir seus sonhos.

Recentemente, um homem de 82 anos formou-se em medicina na Alemanha. Após anos de adiamento desse projeto de ser médico, sob pretextos vários, válidos ou não (se quisermos sempre arranjaremos uma desculpa para tudo), concluiu que não teria nada a perder tentando. E se deu bem. Como qualquer um de nós pode se dar, se quiser de verdade.

A ousadia para fazer o que achamos adequado vale também para os sentimentos. Muitas pessoas são infelizes e solitárias porque temem se expor. Secretamente, acalentam projetos de relacionamento. Mas vão adiando sua execução, na medida do seu medo. Nesse aspecto, não há fórmulas milagrosas e nem respostas definitivas.

Para saber se a convivência com uma companheira vai dar certo ou não, não existe outro caminho senão tentar. E, como tudo na vida, essa tentativa envolve riscos de fracasso. Mas tem, também, possibilidades de êxito.

Há os que temem se expor. Sobre estes, Carol Lewis escreve, em seu livro "Quatro Amores": "Se você quer ter a certeza de conservá-lo intacto, não deve dar seu coração a ninguém, nem mesmo a um animal. Evite quaisquer ligações, encerre-o em segurança no cofre do seu egoísmo. Mas nesse cofre – seguro, escuro, imóvel e sem ar – ele se modificará. Não se partirá; tornar-se-á inquebrantável, impenetrável, irremissível".

É dessa forma que determinadas pessoas agem, sem que sequer se deem conta. Têm medo de se expor, mas não admitem. Temem tentar conquistar seus sonhos. E para não ter que admitir esse gesto de covardia, adiam tudo para um amanhã, que teima em não chegar. E a morte acaba chegando antes...

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk  



Foto célebre de casal se beijando em Times Square em 14/08/1945, quando foi oficializada a rendição japonesa, que marcou o final da Segunda Guerra Mundial. Ele, um marinheiro. Ela, uma enfermeira. Não se conheciam. Consta que, após o beijo, cada um seguiu seu rumo e nunca mais se viram.

Fotógrafo: Alfred Eisenstaedt


Um homem e uma mulher 70 anos depois*

** Por Marcelo Sguassábia



- Você é o neto do marinheiro?
- Sim. E você deve ser a neta da enfermeira, certo? Vamos entrar. Sente-se.
- Como é que você me descobriu?
- Isso não vem ao caso. O que eu posso te dizer é que foram anos de investigações, pistas falsas, tempo perdido e até detetives envolvidos.
- Nossa...
- Indo direto ao que interessa: a foto dos nossos avós corre mundo afora em milhares de sites, jornais, revistas e o diabo a quatro. E olha que lá se vão quase 70 anos do clique histórico.
- Sim, mas e daí?
- E daí que em praticamente todas as enquetes mundiais sobre as fotos mais célebres de todos os tempos o registro dos nossos avós está sempre lá, encabeçando as listas. O retrato é tão famoso e reproduzido quanto o Chê de boina preta e o Einstein mostrando a língua. Percebe agora aonde quero chegar?
- O que eu sei é que vovó falava raramente sobre isso. Quando a foto começou a se espalhar, ela se reconheceu mas adotou uma postura discreta sobre o assunto.
- Vovô também. Mesmo porque já era casado na época, e a sorte dele é que os dois rostos, pela posição, não são facilmente reconhecíveis.
- Quando é que eles iam imaginar que a foto deles ia ganhar essa projeção toda? O tal de Alfred, o fotógrafo, eu não sei se ganhou dinheiro com isso. Mas com certeza nossos avós não levaram nenhum tostão. Vovó morreu devendo, coitadinha.
- Pois é este exatamente o ponto. Proponho que a gente entre com uma ação judicial conjunta, pra que possamos cobrar os direitos de uso de imagem daqui pra frente e requerer todos os atrasados por utilização indevida, ou seja, sem autorização dos fotografados. Os nossos avós, no caso. Em 2015, o final da Segunda Guerra completa sete décadas, e a foto será reproduzida à exaustão. Se tivermos os direitos sobre ela, podemos ficar ricos. E torrar o dinheiro juntos, se você quiser...
- Sei. Você está se saindo mais afoito que seu vovozinho marinheiro.
- Vovô tinha muito bom gosto e não beijaria qualquer baranga que passasse à sua frente. Sua avó devia ser um pedaço de mau caminho. Aliás, beleza parece ser de família. Você é linda, sabia? Que tal um revival? Netinho e netinha, repetindo a façanha 70 anos depois...
- Gosto dos ataques sem rodeios. Vem e me tasca logo um de língua.

O morador do apartamento vizinho aumenta o volume do rádio:“Rússia dispara míssil sobre território ucraniano e provoca reação imediata dos Estados Unidos. Especialistas em conflitos bélicos afirmam que pode ter início hoje a terceira guerra mundial.”

*Esta é uma peça de ficção

* * Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).


A dívida

* Por Gustavo do Carmo

Fazia semanas que Reginaldo queria falar com a esposa, Alice, mas não tinha coragem. Em um dia claro e quente de verão ele abriu o jogo assim que chegaram da praia.  
— Amor, eu preciso falar com você.
— O que foi, meu querido? Agora eu fiquei preocupada. 
— É um assunto muito sério.
— Fala logo, Regi! O que foi? É alguma doença?
— Ainda não. Mas preciso deixar a minha consciência limpa.
— Credo, Reginaldo! O que foi que você fez? Matou alguém?
— Não!
— Tem outra mulher?

Reginaldo ficou em silêncio. Não respondeu. Mas um minuto depois disparou:
— Eu quero agradecer por tudo o que você fez por mim. Eu paguei tudo o que te devo.
— Mas você não deve nada para mim! Para com essa brincadeira, amor!
— Não é brincadeira. É sério! Eu depositei um milhão de reais na sua conta. Aliás, depositei na nossa conta conjunta, que agora é toda sua.
— Você está louco, Reginaldo??? Eu algum dia te cobrei alguma coisa? Perguntou Alice, já alterada.
— Não cobrou, mas vai cobrar um dia.
— Você não confia em mim, né? Seu desgraçado! Ela diz batendo em seu peito. — Eu tenho certeza que tem outra mulher na parada! Eu vou descobrir! E se eu descobrir te ponho para fora e vou cobrar ainda mais!
— Quem não confia em mim é você! Está vendo porque que eu te paguei? É para o dia em que nos separarmos eu ficar com a consciência limpa. Eu te paguei em dinheiro por tudo o que você deu para mim: a sua fama de atriz que me abriu portas, o emprego para o qual você me indicou, a propaganda boca a boca que você fez dos meus livros, os seus jornalistas amigos que elogiaram os meus livros, as suas revisões que corrigiram as minhas desatenções gramaticais, os cursos de especialização que você pagou para mim, os filhos que você me deu... Agora que eu estou rico quero te pagar tudo.
— Eu não quero nada disso! Eu quero a sua companhia para sempre. Disse, já aos prantos e se abraçando.

Reginaldo a confortou e intensificou o abraço:
— Mas você terá. Só que eu estou pagando por tudo o que você me deu.
Alice se afastou e disse:
— Agora que você me pagou tudo, não precisa mais de mim. Vai embora desta casa, que é minha! Não quero mais te ver! Já estamos kits.
— Tudo bem.

Reginaldo arrumou as malas e foi morar num dos apartamentos de dois quartos que comprara para alugar. Perdeu uma boa renda, mas continuou ganhando dinheiro com as palestras que dava como escritor e as vendas de direitos autorais para teatro, cinema e TV. Continuou escrevendo e enriquecendo.

Alice se arrependeu de ter expulsado o marido de casa. Foi aconselhada pelas amigas, pelo irmão e a mãe a aceitá-lo de volta. A sogra de Reginaldo, que o odiava, passou a adorá-lo, pois um homem que paga as dívidas com a esposa, merece todo o crédito, mesmo que esteja largando-a para ficar com outra mulher.

Reataram o casamento, que durou mais quarenta anos. O casal de filhos que tiveram (Régis e Aurora) cresceu e lhes deu netos e bisnetos. Reginaldo morreu aos noventa anos, viúvo desde os setenta e com a consciência limpa de ter pago a dívida com Alice.  

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance Notícias que Marcam pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea Indecisos - Entre outros contos pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu  blog, Tudo cultural - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores




Mensagem

* Por Anair Weirich

São tantas coleções
de corações
flechados
pelo cupido
da melodia...
Haverá um dia
em que a música
fará as almas
dançarem
ao enlevo dos corações!
Então todas as nações
serão embaladas
pela poesia!

* Poetisa e escritora de Chapecó/SC


Ainda a mística e a espiritualidade para jogadores de futebol

* Por Leonardo Boff

Num artigo anterior abordei a necessidade de além do acompanhamento psicológico dos jogadores brasileiros da Copa Mundial de Futebol se recomendaria também um acompanhamento espiritual. Falava então de mística, num sentido não confessional mas como expressão da dimensão do profundo humano, um dado antropológico de base.

Quero abordar agora especificamente a espiritualidade, tão em voga hoje, até entre grandes nomes da ciência.  Não como monopólio das religiões mas como uma dimensão do humano com o mesmo direito de cidadania que a vontade, a inteligência, o poder e a libido.   

Entre as muitas formas de inteligência estudadas hoje, destacam-se particularmente três: a inteligência intelectual, a inteligência emocional e a inteligência espiritual. Todas elas são fundadas em sérias pesquisas científicas.

Pela inteligência intelectual (o famoso QI), organizamos nossos pensamentos, articulamos os vários saberes, especialmente a linguagem e as estratégias da ação. Ela está ligada àquela dimensão do cérebro chamado de neocórtex. Este no processo da antropogênese é relativamente novo. Não possui mais que 7-8 milhões de anos mas plenamente desenvolvido com o surgimento do homo sapies sapiensI há cerca de cem mil anos. A obra civilizatória com suas artes e ciências se deriva do neocórtex. Sem ela não entenderíamos o mundo de hoje, nem sobreviveríamos. Mas a inteligência intelectual sozinha não dá conta da vida humana.

Existe em nós a inteligência emocional, estudada particularmente  por Daniel Goleman, no seu famoso livro Inteligência emocional (Objetiva, 1995). Ela está vinculada ao cérebro límbico, que surgiu há mais de 130 milhões de anos, quando irromperam na evolução os mamíferos. Eles carregam a cria dentro de si. Nascida, cuidam-na, cercam-na de carinho e amor. Surgiu no universo conhecido algo absolutamente novo: a emoção, o afeto, o sentimento, a paixão, o amor e também os seus contrários. Nós, seres humanos, esquecemos que somos mamíferos intelectuais e racionais. As camadas mais profundas e decisivas de nossa vida possuem essa história milenar. Somos antes de mais nada seres de emoção e de sentimento.

Há 130 milhões de anos surgiu no universo conhecido a emoção, o afeto, o sentimento, a paixão, o amor e os seus contrários
Goleman mostrou que a primeira reação humana face a qualquer fenômeno não é intelectual/racional, mas emocional. Alguns momentos após, entra em ação a inteligência racional/intelectual. Alguns filósofos (Maffesoli, Cortina, Scheler, Muniz Sodré, Duarte Jr) a chamam tambén de “razão cordial, ou sensível”. Goleman critica a inflação da inteligência racional, que tornou as pessoas insensíveis, individualistas, competitivas e dadas à violência ao invés de serem  mais solidárias, compassivas e humanitárias. Sugere uma verdadeira “alfabetização emocional” a partir da escola, coisa que venho postulando já há 20 anos com os livros Saber cuidar e o Cuidado necessário (ambos da Vozes). Ele diminui a violência em todos os campos. Na inteligência emocional  reside o nicho dos valores, da ética, do amor e do que dá sentido à nossa vida.

Por fim, existe em nós a inteligência espiritual.  Nos últimos vinte anos, desenvolveu-se fortemente a neurociênica, a neurolinguística e outras afins, que estudam o cérebro humano. Nele há bilhões e bilhões de neurônios e trilhões de sinapses (conexões entre eles). Houve uma constatação surpreendente: sempre que alguma pessoa se ocupa existencialmente com visões globais das coisas, com o sentido da vida e com o sagrado e Deus, no lobo frontal, se verifica uma aceleração inusitada dos neurônios. Danah Zohar, uma cientista quântica, com seu marido psiquiatra, Ian Marshall, sumariaram as muitas pesquisas num livro que está em portugués: QS: A inteligência espiritual (Record, 2000). Os cientistas e não  os teólogos  deram a essa experiênica o nome de o Ponto Deus  no cérebro. Trata-se de uma vantagem evolutiva do ser humano: possuir um órgão interno pelo qual capta o Todo ligado por um Elo sagrado que tudo unifica. Assim como temos órgãos externos, olhos, nariz, ouvido etc, pelos quais captamos o mundo material, temos um órgão interno pelo qual captamos esse Elo, tido como a Suprema Realidade, que  tudo sustenta. Podemos chamá-la de mil nomes. Não importa. O mais simples é chamá-la de imagem de Deus (Deus mesmo é mais que o “Ponto Deus”). Essa dimensão está em cada pessoa e constitui a base biológica da inteligência espiritual. Ela se manifesta por mais sensibilidade face ao outro, por mais amor, mais compaixão, mais respeito e mais devoção. A nossa cultura materialista a cobriu de cinzas pelo seu consumismo e vontade de tudo dominar. Ativado o “Ponto Deus”, nos humanizamos e nos espiritualizamos. O fruto é uma profunda paz e serenidade, e o sentimento de estarmos inseridos num Todo maior que nos acolhe. Sentimo-nos repletos de “entusiasmo”: a presença do Deus interior.

Escrevi um livrinho com o título Meditação da Luz, o caminho da simplicidade (Vozes, 2010), onde tento traduzir a ativação do “Ponto Deus” servindo-me do caminho mais antigo do Oriente e do Ocidente, que é tomar a Luz como elemento despertador e ativador do “Ponto Deus”. Ouso uma sugestão:

Que tal se o treinador e os jogadores, além dos treinos e da indispensável psicologia, incorporassem um momento de meditação para ativar seu “Ponto Deus”? Seguramente, sentiriam muito mais paz e estariam mais aptos  para o jogo.

* Leonardo Boff é teólogo e autor de “Tempo de Transcendência: o ser humano como projeto infinito”, “Cuidar da Terra-Proteger a vida” (Record, 2010) e “A oração de São Francisco”, Vozes (2009 e 2010), entre outros tantos livros de sucesso. Escreveu, com Mark Hathway, “The Tao of Liberation exploring the ecology on transformation”, “Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz” (Vozes, 2009). Foi observador na COP-16, realizada recentemente em Cancun, no México.



quarta-feira, 30 de julho de 2014

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 8 anos, três meses e trinta e um dias de existência..

Leia nesta edição:

Editorial – É preciso paixão e responsabilidade.

Coluna De Corpo e Alma – Mara Narciso, crônica “O sol que nos recobre”..

Coluna Da terra do sol – Marco Albertim, conto “O negro Zildão”

Coluna A favor5 de tudo, contra todos – Fernando Yanmar Narciso, crônica, “Um Davi e centenas de Golias”.

Coluna Em verso e prosa – Núbia Araujo Nonato do Amaral, poema, “Fragmentos”..

Coluna Porta Aberta – Edir Araújo, poemas, “Poetrix”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” – José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas” – Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com 
“Aprendizagem pelo Avesso” – Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer” – Fernando Yanmar Narciso.
 “Cronos e Narciso” – Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.



É preciso paixão e responsabilidade


Exercer o jornalismo com paixão implica em disponibilidade, entusiasmo, desprendimento pessoal e garra. É colocar o interesse público acima de qualquer coisa. É nunca esperar nenhum tipo de vantagem do exercício dessa perigosa profissão (dezenas de jornalistas são assassinados, anualmente, no mundo todo, a mando de poderosos que se julgam prejudicados pelo seu trabalho), nem financeiro e nem de prestígio pessoal. É fazer as coisas porque elas precisam ser feitas.  É estar disposto, se necessário, a sacrificar descanso, lazer, família, amizades, posição social  e, em alguns casos, até a vida (“remember” Tim Lopes), no exercício dessa sagrada missão. 

Não se interprete, portanto, o termo "paixão" no sentido negativo que os dicionaristas também  lhe atribuem. Ou seja, o do sectarismo exacerbado, que leve a pessoa a se aferrar, cegamente, a determinada ideologia ou crença, seja de que natureza for, e ficar tão obcecada, a ponto de perder o senso crítico e a noção básica e elementar do certo e do errado, ou que a faça distorcer, posto que inconscientemente, os fatos com os quais trabalha.

Parodiando o pensador Jaime Balmés, o jornalista apaixonado pelo que faz, e verdadeiramente vocacionado, é aquele que tem "cabeça de gelo, coração de fogo e braços de ferro". Possui frieza no julgamento, paixão na concepção das matérias e força e audácia na sua concretização. É dotado de um amor ardente, irrestrito e incontido pelo que faz. Tem o mais vivo entusiasmo pela profissão, sequer encarando-a como tal, mas como missão de vida, como realização pessoal, como sacerdócio.    

A ação – fundamentada na disciplina, no conhecimento de causa e na perseverança – é o maior, senão o único antídoto contra as crises que assolam pessoas ou povos. Só se caminha para frente quando há disposição e coragem e quando se persiste na persistência. É mais fácil, embora improdutivo, cruzar os braços diante das dificuldades e limitar-se a criticar ou a lamentar.

Difícil, posto que necessário, é acreditar, é construir, é manter, é curar, é ensinar, é alegrar, é conservar, é transmitir e é sobretudo agir. "Só é útil o conhecimento que nos faz melhores", teria dito Sócrates, de acordo com o testemunho de seu discípulo Platão. Esta é a filosofia que norteia o jornalista que acredita no que faz.

É trazer ao público o "outro lado" da realidade, que por incompreensível distorção de alguns meios de comunicação, é quase sempre relegado ao esquecimento ou a um plano secundário. Ou seja, o dos que constroem, que sustentam, que criam, que curam, que ensinam, que legislam, que garantem segurança, que ministram a justiça e que mantêm o mundo funcionando dentro da normalidade. Muitos editores garantem que notícias positivas não vendem jornais e revistas. Estão errados! São derrotistas! São sensacionalistas! Fazem antijornalismo! A realidade tem múltiplas faces. Enfatizar para o público apenas um desses lados, o negativo e escabroso, é também uma forma de alienação. É desonestidade profissional. É desinformação!

O jornalista honesto e apaixonado pela profissão, ao mesmo tempo em que retrata as distorções e aberrações do convívio social, focaliza a ação e a motivação, por exemplo, do médico, do gari, do professor, do caminhoneiro, do comerciante, do jardineiro, do pesquisador, do feirante, do ator, do operário, do engenheiro, do músico, do próprio jornalista, da enfermeira, do físico nuclear, do pedreiro, do político etc. Enfatiza a atuação daqueles profissionais (não importa o status de que gozem), cuja presença quase nunca é notada, tamanha a assiduidade da sua ação, mas sem os quais a vida se tornaria difícil, senão impossível. É isento, justo, correto, preciso e determinado. Exerce, sobretudo, "o jornalismo que crê".

Ellen Hume, diretora do Centro de Mídia e Sociedade da Universidade de Massachusetts, em Boston, escreveu, no artigo “Liberdade de Imprensa”: “Informação é poder. Para uma nação desfrutar das vantagens políticas e econômicas oferecidas pelo Estado de Direito, as instituições que detêm poder devem ser abertas ao escrutínio da população. Para que a tecnologia e a ciência avancem, as idéias devem ser compartilhadas abertamente”.

A mídia independente desempenha quatro papéis vitais em uma democracia. Primeiro, vigia os poderosos, fazendo com que prestem contas dos seus atos à população. Segundo, dá destaque às questões que pedem atenção e que, se não forem levantadas em público, tendem a cair no esquecimento e deixarem de ser resolvidas. Terceiro, informa os cidadãos, para que eles possam fazer escolhas políticas. E, finalmente, quanto, conecta as pessoas, ajudando a criar a “cola” social que une a sociedade civil.

O saudoso papa João Paulo II, em discurso que proferiu em 25 de setembro de 1980, na abertura do XII Congresso Mundial da União Católica de Imprensa, em Roma, observou: “Graças à imprensa, e cada vez mais, não são apenas as elites reduzidas, mas grupos cada vez mais extensos, na maior parte dos países, os que vêem aparecer novas formas de conhecimento da realidade, relações de um tipo novo entre os indivíduos e as sociedades, por meio deste instrumento que, de algum modo, prolonga o pensar e o sentimento de cada um”.

Já David Hoffman, fundador da Internews, agência internacional não-governamental que ajuda na capacitação e no desenvolvimento da mídia independente em 50 países, advertiu: “Liberdade de expressão e troca de informações não são apenas luxos, são a moeda da qual o comércio, a política e a cultura globais dependem cada vez mais”.

Prova de que ele está certo é a conclusão do Banco Mundial, no seu “Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 2002”, que analisou o que ocorria em 97 países e concluiu que os que tinham meios de comunicação privados e independentes apresentavam níveis de educação e saúde mais altos, menor índice de corrupção e economias transparentes.

Thomas Jefferson, principal redator da Declaração de Independência dos Estados Unidos, escreveu, em 1787: “Se me fosse dado decidir se deveríamos ter um governo sem jornais ou jornais sem um governo, não hesitaria um momento sequer em preferir o último”. Por nutrir essa convicção, foi ele que insistiu que fossem incluídos na Constituição norte-americana os direitos da sociedade civil de reunião, liberdade de expressão e liberdade de imprensa. 

O que os jornalistas precisam é “surpreender” os leitores (ou ouvintes ou telespectadores). Mas com surpresas positivas, através de matérias bem levantadas, rigorosamente exatas, zelosamente checadas, sem que o repórter tome qualquer partido, mas se limite a exercer seu papel: o de “reportar”. Ou seja, o de ser uma espécie de “gravador humano”, que registre tudo o que vê e que ouve e reproduza tudo isso com absoluta fidelidade, “com todos os pingos nos is e todos os tils”.

Além disso, é indispensável que todas as partes envolvidas no acontecimento noticiado sejam sempre ouvidas. Só assim os fatos relatados se transformarão em documentos rigorosamente corretos, verídicos e imparciais. Nisso, os jornais e revistas poderão levar nítida vantagem sobre o rádio e a televisão, exatamente por disporem do tempo que os veículos eletrônicos não têm.  Outro ponto que poderão explorar é a opinião.

Mas não a de pseudogurus, que se colocam na condição de “sabe tudo”, de donos da verdade, quando na maioria das vezes sabem até menos do que o mais bronco dos leitores e não passam de intelectuais bitolados e dogmáticos. É necessário que os jornais se tornem cada vez mais interativos, abrindo espaços crescentes para a manifestação popular. E que acatem, com o devido respeito, estas opiniões, principalmente quando conflitarem com as da direção da empresa. A isso se chama de “democracia”. Afinal, o jornal dispõe de local próprio para marcar sua posição: os editoriais.

Desse debate sadio de idéias (que hoje, virtualmente, não existe em lugar algum), certamente, surgirão soluções efetivas e práticas para os mais graves problemas, sejam políticos, econômicos, sociais ou comportamentais.  O julgamento sobre quem está certo ou errado,  nos assuntos controversos, deve caber sempre, e unicamente, àqueles sem os quais  nenhum órgão de comunicação teria razão de existir: os leitores (ou ouvintes, ou telespectadores ou os que navegam na Internet).
    
O mesmo meio com o qual se pode despertar a consciência das pessoas, se mal empregado, tende a alienar os cidadãos, principalmente quando se trata da televisão. Esse veículo, pela sua instantaneidade, é virtualmente imbatível em termos de ser o primeiro a dar a notícia. Se mal utilizado, porém, tende a causar males enormes, quiçá irreversíveis.

Boa leitura.


O Editor

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O sol que nos recobre

* Por Mara Narciso

Os humanos do século XXI estão se tornando inválidos. Têm as juntas emperradas, a musculatura fraca, as forças adormecidas e uma dominante preguiça de se mover. As crianças de hoje, ainda que maiores e mais pesadas, caso fossem colocadas num cabo de guerra, dez de cada lado, contra as crianças que foram os seus avós, perderiam feio. Seriam jogadas ao chão. Estes mesmos avós podem ter sido mais desnutridos, tido mais vermes, porém, andavam e corriam. A regra hoje é ficar sentado comendo, apertando botões ou tocando em telas. Ninguém dá mais que dois passos, não lava uma roupa, nem abre portão ou vidro de carro, nem anda para atender telefone, nem para mudar o canal de televisão. Daí a fraqueza reinante e a necessidade de ir à academia.

Quando surge um convite para caminhar, seja na praia, seja nos campos e montanhas, o natural é a pessoa recusar, se dizendo essencialmente urbana e motorizada. Desconhecem a expressão “fazer ginástica”. Falam “malhar”. Dentro de casa, sob luz artificial, gastando uma energia elétrica que não está sobrando, jovens desenvolvem doenças de velhos como obesidade, diabetes, hipertensão arterial, e índices baixos de vitamina D, indispensável para a calcificação óssea. Sugere-se exercitar e tomar contato com o sol. Dez minutos ao meio dia são suficientes para melhorar o teor desse hormônio. Mas quem quer largar o sofá? Estamos impregnados de medo de câncer de pele e de caminhar.

Um fim de semana na roça faz diferença. Que tal deixar a parafernália eletrônica e fazer uma “expedição” caminhos afora para conhecer o outro lado da vida? Não vale dizer que não quer sujar os pés. Sob a proteção de chapéus, a caminhada em busca de ar livre cai bem. Pode-se fazer um pacote completo, aproveitando-se um período de festas, reunindo-se com amigos e a família, visitando pontos curiosos da zona rural.

Tendo como referência o Sítio Vale das Nascentes, do meu tio Petronilho Narciso, em Santa Rosa de Lima, saímos em excursão atrás de uma pequena cachoeira na serra. Éramos oito pessoas, que seguíamos numa trilha, morro acima, enquanto tirávamos fotos e nos sensibilizávamos com a seca que castiga o norte de Minas há anos. Nas baixas há água perene, enfeitando a mata seca com seu verde improvável, salpicado daqui e dali. A vereda tinha, como lhe é habitual, vários coqueiros de coco macaúba, e pasmem, encontramos um deles, que fora abatido para arrancarem um cacho de cocos.

Protegidos por altas perneiras, para evitar picada de cobra jararaca, fomos até a pequena queda d’água, da qual corria o precioso líquido numa quantidade superior a expectativa, considerando-se a sequidão reinante. Abaixo dela, um laguinho de águas azuladas e gélidas. É natural ter vontade de mergulhar na água, coisa que só os muito corajosos conseguem. Meu tio Petronilho fez isso. Os demais trataram de posar para as fotos.

No dia seguinte, outra expedição, mais longa e de caminho mais acidentado. Nesta, apenas quatro pessoas foram à gruta, na mesma serra. Esta atração, mais difícil de ser atingida, deu mais prazer alcançar. Transpusemos a vereda, os pastos, um pequeno bosque com riacho, e após uma subida íngreme, chegamos. Tinha uma entrada medianamente ampla, de terreno acidentado, com buracos traiçoeiros. Após estar dentro dela, via-se que tinha um grande salão, de teto alto, e um córrego que entrava por uma porta aberta na pedra, ao fundo. O chão era todo de areia escura e grossa. Não havia lixo, porque meu tio fora antes e o coletou. Tínhamos duas fontes de luz: uma lanterna e um lampião. Ainda assim, foram insuficientes para tirar boas fotos. Uma larga e linda estalactite, em formato de cogumelo atômico invertido, do lado esquerdo do teto da entrada trazia em seu bojo um letreiro de propaganda azul escuro, que naturalmente nos incomodou. Do outro lado, podiam-se ver outras pichações. Rastro de imbecis. Falei que o lugar, distante uma hora de Montes Claros, está na zona de terremoto, e sentir um deles lá dentro, além de perigoso, seria muitas vezes mais barulhento.

O esforço culminou com o prazer da aventura concretizada e do sol na pele. Senti-me bem por voltar às origens, escalar, sujar os pés, suar, sentir calor, sentir frio, e conviver com tios e primos por três dias numa mesma casa. Um passeio para guardar e para contar. Por isso eu contei.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


O negro Zildão

* Por Marco Albertim


Por toda a extensão da orla, as escavadeiras deixaram um sulco comprido. À medida que a escavação avançava, sacos de náilon, vazios, se sobrepunham. Em seguida, o tubo alongado de borracha, acoplado à torneira da betoneira na parte de trás do caminhão, despejava a mistura de concreto ainda mole, numa abertura em cada saco, cujo diâmetro coincidia com o do tubo. Cheios, os sacos tornavam-se colchões bojudos de cimento; um em cima do outro, logo se mostravam semelhantes a arquibancadas de estádios. Primeiro a escavadeira abria o caminho, não importando se encontrasse pela frente muros residenciais, bares à beira-mar ou mesmo uma singela peixaria onde a vizinhança de classe média se provia de prateadas carapebas, de róseas ciobas.

O negro Zildão há trinta anos estabelecera seu negócio de pescados na beira da praia. Tornou-se conhecido pelo torso largo, o rosto com salientes bochechas de comum acordo com os peitos largos, acolchoados de músculos. Chegara aos sessenta anos e não perdera a robustez, inda que com a gota corroendo-lhe os dois tornozelos, forçando-o a cobrir as feridas chaguentas com rodilhas de algodão sob panos finos.

Com a marcha ininterrupta das escavadeiras, Zildão deu conta de abespinhamento no juízo. A gota formigando nos pés, nas pernas, juntou-se ao ruído importuno da betoneira girando. Confessou, então...
- Ninguém vai me tirar daqui. Meu pai nunca foi preso. Quando a polícia corria atrás dele, ele se virava num toco de pau. A polícia ficava zonza, sem saber onde ele tinha se metido.

A gorda com quem se amigara assentia com o juízo entregue ao negro de quadris ameaçadores, sêmen espesso.
- Com quantos anos ele morreu? – quis saber a vizinha, também com negócios de peixes nos fundos da peixaria do negro.
- Com oitenta anos.

A vizinha, com tumescência na barriga e palidez no rosto, punha-se servil, aduladora, rendida ao tronco lustroso, negro, de Zildão.
- Pois você não vai morrer antes dessa idade. É a herança que seu pai deixou.

Choveu na mesma noite. O barco de Zildão foi ancorado pouco antes da meia-noite. Mimo, único filho da confiança do negro, e mestre do barco a motor, despejou junto com dois ajudantes, proeiros, a caixa de isopor cheia de carapebas, ciobas, dentões, albacoras e garajubas. Os peixes, depois de pesados, foram depositados nos dois freezers da peixaria.
- Pai, na entrada do maceió, a maré já derrubou a barreira de cimento da obra.
- Essa obra não tem futuro. Ninguém pode com o mar. Só Deus.
- E amanhã? – perguntou súbito o filho.
- Amanhã à noite vai ser de maré baixa. Traga o povo para fazer a cerimônia.

Na manhã seguinte, os peixes foram vendidos. O frescor do pescado recém-capturado chamara a atenção da vizinhança, já acostumada aos horários de saída e retorno do barco de Zildão. A gorda, no começo da noite, quis soltar rojões na frente do boteco de sua propriedade, junto à peixaria. Os dois dormiam num quarto atrás da parede do boteco; ali coitavam, ali a gorda fazia reparos nas feridas do macho.
- Não, agora não. Quando começar a cerimônia.

À meia-noite a negrada paramentada de branco deu conta do propósito de homenagens a iemanjá.

O babalorixá, tão bojudo quanto Zildão, agitou na mão direita um sino de ruído agudo. Deu a permissão para que os ajudantes entrassem na água carregando o vaso de barro com oferendas. Mimo, segurando o leme do barco, acolheu-os sem esconder o suor do rosto, a vermelhidão nos olhos depois do sorvo da liamba. Zildão ficou na beira da água. Convencido de que gozava de proteção da iabá, jogou um monte de moedas na água.

A tia, irmã do pai do negro, atestou os poderes transformistas da família.
- Não se preocupe, meu filho. Com a força de iemanjá e o sangue de seu pai, ninguém vai lhe tirar daqui.
- Tenho fé em Deu, tia.

A gorda,ouvindo, ordenou a detonação dos rojões.

Choveu toda a madrugada, choveu de a água socar com bordoadas o teto de zinco do negro Zildão. A gorda acoitou-se sem medo nos músculos dos ombros do parelho.

O dia mostrou os sulcos abertos pelas escavadeiras cobertos de água, da mesma areia removida para cima e para baixo da beira do mar. A escavadeira, a do pelotão de frente, mirando a peixaria do negro, atolou-se no charco. O coqueiro na frente caíra com a tempestade; o olho com palhas e cachos de cocos, destroçara a cabine do operador da escavadeira.

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.