Grilhões psicológicos e a nossa servidão vida afora
* Por
Mara Narciso
Para se viver em
sociedade é preciso servir a algum senhor, ainda que sejam normas de bom
convívio social ou as leis de trânsito. A escravidão pode ser maior ou menor,
de acordo com o grau de dependência para com as outras pessoas. Pode ser
dependência escolhida ou imposta por quem exerce autoridade, ou mesmo por
conveniência.
Parte significativa dos
adultos trabalha pelo menos oito horas por dia durante 30 ou mais anos. O
trabalho aprisiona ou liberta? Após a aposentadoria alguns exercem trabalho
religioso não remunerado, geralmente à noite, e ainda outros fazem trabalho de
assistência social ou filantropia. Tais atividades podem ser gratificantes ou
escravizantes. Mesmo quando se é voluntário ao começar, na sequência, o
trabalho passa a ser obrigatório, mas nem tudo que se faz por obrigação
escraviza.
Sonhar, planejar,
fazer, criar, concretizar são ações vibrantes e de plenas realizações. Tragédia
pessoal é quando o tempo passa e a pessoa, por ter um dependente ou se sentir
dependente, percebe-se impedida, psicologicamente desarmada para vencer a
barreira real ou imaginária, e fazer algo grande. É um susto grande chegar
perto do fim sentindo-se nesta condição.
Recapitulando: para
cada fase da vida há um mandante. As decisões são todas dos outros, quando se é
pequeno. Quando os pais são democráticos e respeitam o pensamento da criança,
esta, quando adulta tende a ser mais segura e feliz. O adolescente, quando foi
criança mimada e sem limites, passa a ser um ditador, um crítico cruel, e para
ele, tudo o que os pais fazem é ridículo. Este tipo, que na juventude costuma
ser irresponsável, quando adulto pode melhorar, e vê que os pais não estavam
tão errados assim. Agora jovem, é o seu tempo de sofrer as primeiras decepções
amorosas. O amor é um ditador cruel, que se utiliza de algemas, correntes e
bolas de ferro nos pés. Aprisiona pelo menos uma vez na vida, com duração
variável, sem escolher idade. Aprendem-se muito com esses nãos e seus subsequentes
sofrimentos. É quando a pessoa que foi deixada de lado descobre o seu lugar no
mundo.
Quando não é obrigado a
trabalhar cedo, chega o tempo dos duros estudos da faculdade e um pouco depois,
pode-se deixar de fazer alguma coisa porque é preciso estudar, tem prova, TCC,
residência médica, pós-graduação, concursos, exame da OAB. Então vem o
casamento e a grande amarração, a escravidão física e psicológica maior de
todas: o filho pequeno, totalmente dependente.
O adulto vai sofrer sob as birras do reizinho e tentar fazer transformar
aquele ser adorado numa pessoa útil e feliz. Para muitos casais, ocorre mais de
uma experiência nessa área.
Muita vontade de que
cresça logo. Um dia isso acontece, e a escravidão muda: filho criado, mais
preocupação. O trabalho de um lado, filhos adultos de outro, pais idosos,
alguns gostos e até certas extravagâncias realizadas, mas a escravidão
psicológica permanece em certos momentos. Quem faz vínculos, tem perto de si
prisões. Quase todos, ou mesmo todos precisam de afetos. Poucos deles libertam.
Quando se tem mais
tempo e mais dinheiro, dá vontade de voar. Os filhos já cuidam de si mesmos.
Algumas vezes não se pode sair em viagem, por exemplo, devido aos pais, por
vezes doentes. E para que a vida pessoal não acabe antes da hora é preciso
montar esquemas caros. Então, já começam as restrições individuais na
alimentação e o uso de medicamentos de forma contínua. Há quem chegue aos 60
anos, ou antes, com uma aflição, uma sensação de que o tempo útil está se
esgotando, que é preciso fazer algo, recuperar o tempo perdido, realizar aquilo
que teve vontade e não conseguiu, seja outra faculdade, uma determinada viagem,
reencontrar um amor do passado, ganhar dinheiro.
A vitalidade já não é a
mesma, a formosura, se é que existiu, vai se esgotando, e uma visita aos álbuns
de fotografias, especialmente quando os pais já se foram, para ver a imagem da
juventude pode ser triste. Quando a volta ao passado é de arrependimentos pelo
que não se fez, tem-se a impressão de que a vida foi inútil. Ah, se eu pudesse
voltar no tempo e fazer aquilo que não fiz por medo, por impedimento dos
filhos, marido ou pais, ou por comodismo ou covardia! Esta reflexão dolorosa
mostra como a escravidão pode ser deletéria para muitos, especialmente em se
tratando de mulher dominada por sentimentos castradores. Essas lamentações
destroem, acabando com o restante de vida antes da hora. Por isso se ouve, com
certa regularidade, que é preferível sofrer por ter errado a não ter tentado.
Sentimento ruim, por sentimento ruim, o de inutilidade é o pior deles, aqui e
agora.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Tem razão, Mara. Os grilhões se sucedem, e cada novo parece que aprisiona mais que o anterior. Sábias palavras!
ResponderExcluir