O imortal que não vemos
* Por
Urariano Mota
Há uma crença não
escrita de que não se deve escrever bem, falar bem sobre poetas vivos. De que
os melhores poetas são mortos. De que, em palavras de Buffalo Bill ressurreto,
poeta bom é poeta morto. Às vezes, algum amigo, alguma caridosa alma concede, e
admite, e fala, e propaga que aquele sujeito que comete uns poeminhas é até um
bom poeta. Concede e fica a esperar o supremo agradecimento, do poetinha. Mas a
melhor homenagem sempre se deixa, sempre será feita depois do poeta morto.
Então ele será único, inesquecível, rival dos deuses.
Isto não é novo. É tão
velho e humano, desumano, que se repete em todas as latitudes. Alguém concebia
Lorca em vida com os olhos que souberam depois do seu fuzilamento? Alguém
alcançava o gênio de Baudelaire com os olhos que o vêem depois do seu fogo e
sofrimento? E Cruz e Sousa, no Brasil, o genial poeta negro, sempre lembrado
com esse adjetivo, negro, para fazê-lo um gênio menor, como a dizer "para
negro foi um gênio muito grande"? Em Cruz e Sousa difícil é saber o que é
maior, se o seu talento, se o seu sofrimento, a sua luta heróica para se fazer
um homem.
Nelson Cavaquinho, num
samba antológico, já pedia que "me dêem as flores em vida, o carinho, a
mão amiga, para aliviar meus ais". Bem dito. O comum da gente já mata os
artistas, os poetas, de descaso ou de fome. Quando não, das duas maneiras.
Descaso? Sim, até quando os aceita. Por exemplo, contenham o riso pois o que
vou dizer não é anedota: a um escritor eu vi e ouvi dizerem: "você é
poeta! então sabe as palavras certas para a coroa de flores para um defunto
amigo. Que palavras escrevo? ", e senti, ouvi-o responder baixinho:
"Escreva: Vá para o inferno". A outro, eu já ouvi pedirem, melhor
dizendo, exigirem: "você que é poeta, improvise agora - vamos, se é poeta,
improvise...". O comum da gente tem da poesia e dos poetas a mais funda e
desprezível e desprezadora ignorância. Dizem de alguém que vive nas nuvens, "é
um poeta". E aqui e ali, os mais letrados, acrescentam, "é um
filósofo". Vêem no poeta um alambicado, afeminado, emasculado. Ou um
homem, quando concedem, que lhe basta viver de brisa, para assim melhor comer
poesia.
Compreendam, por favor:
o escrito até aqui não é um nariz-de-cera. É uma introdução ao poeta Alberto da
Cunha Melo.
Se aqui irrompesse o
breve, de espírito, de magoado sem lágrima a correr, seco, que se molha a
conhaque e se queima a cigarro, até atingir um câncer flor verdade, então eu
escreveria:
Moro
tão longe, que as serpentes
morrem
no meio do caminho.
Moro
bem longe: quem me alcança
para
sempre me alcançará.
Não
há estradas coletivas
com
seus vetores, suas setas
indicando
o lugar perdido
onde
meu sonho se instalou.
Há
tão somente o mesmo túnel
de
brasas que antes percorri,
e
que à medida que avançava,
foi-se
fechando atrás de mim.
É
preciso ser companheiro
do
Tempo e mergulhar na Terra,
e
segurar a minha mão
e
não ter medo de perder.
Nada
será fácil: as escadas
não
serão o fim da viagem:
mas
darão o duro direito
de,
subindo-as, permanecermos.
Mas isto apenas consigo
como uma cópia, porque são versos de Alberto, no poema Um Cartão de Visita.
"Moro tão longe que as serpentes morrem no caminho...". Todos os dias
eu o encontro no ônibus. Somos quase vizinhos. Que sorte a minha, que
infelicidade a sua, de ter uma cascavel com o meu veneno alcançando-o . Com o
chocalho da minha voz, chamo-o . Ele vem e senta ao meu lado. "Como vai a
saúde, Alberto?", pergunto, porque vejo em seus olhos uma sombra.
"Boa, para a minha idade", responde. E conversamos. Melhor dizendo,
escuto-o . Melhor, aprendo. Porque Alberto, alheio à assistência do ônibus que
se enche, sem medo da zombaria ou do motejo da gente, põe-se a falar sobre
poesia, com a mais pura sinceridade e desarmamento. E me fala da estupidez da
distinção entre rimas ricas e rimas pobres. E me abre os olhos para os versos
belíssimos de Camões cheios de rimas "pobres". E me ensina, quase me
grita:
- O Camões ruim está muito acima da
média da poesia em língua portuguesa.
No ônibus, as pessoas
me olham. Quem é o interlocutor? Eu, covardemente, quase lhes imploro: eu não
tenho culpa. E me dá vontade de lhes dizer: esse homem com a idade de 62 anos,
que vocês ouvem com a voz gasta por milhares de cigarros, esse Alberto da Cunha
Melo no ônibus de Casa Caiada, às sete horas da manhã, esse homem em que não
enxergo roupas, corpo, cabelos, só os seus olhos com uma névoa, esse homem é um
clássico da nossa poesia. Vocês duvidam?
QUESTIONÁRIO
Cai
um silêncio de ondas longas
e
sucessivas como a chuva.
E
que silêncio será esse
que
cai assim antes de mim?
Fauna
marinha, gestos lentos
de
anjos calados golpeando
um
polvo em fúria que me espera
(sob
os sonhos). Há quanto tempo?
Poucos
amigos, tudo salvo,
ainda
temos nossas raivas
e
uma esperança ilimitada
nos
setembros. Mas, até quando?
Caem
livros silenciosos
das
prateleiras: baixa a luz
morna
e abundante sobre as capas.
Que
foi feito de tanta noite?
A
esperança nova se agarra
entre
as barreiras e as ossadas
de
nossos morros. E por que
morremos
antes de salvá-la?
Este Alberto que me
fala enquanto o motorista estronda a música no rádio, num brega infernal, esse
Alberto que me fez interromper, bem, a leitura de As Flores do Mal, é o poeta
que não se dá conta do aperto de gente em volta, porque a essa altura faz uma
mesura, com um pedido de desculpa aos parnasianos, que estão há quilômetros
deste coletivo:
- Olavo Bilac tinha razão ao dizer que
a rima pode revelar um verso novo, que antes não sabíamos. Eu descobri isso, na
prática.
Ele não precisa repetir
essa verdade em versos de memória (a sua não é de caminhos trilhados, mas de
caminhos que virão):
AVE ANO 2000
Só
agora sabemos, quando
outro
século bate à porta:
tudo
tocado pelo Homem
tem
o cheiro de coisa morta,
e
o som do réquiem, som da nênia
dos
morteiros sobre a Chechênia,
e
dos vagidos africanos
sobre
as favelas tropicais,
som
de escopeta de dois canos,
anunciando-nos,
com susto,
que
ainda impera César Augusto.
Os versos brancos não
são uma invenção moderna, nem sempre a poesia teve rima, ele me diz. Então eu,
como um novo Burguês Fidalgo, lhe pergunto: Então os clássicos antigos faziam
poesia sem rima? (Me dá vontade de perguntar se existe poesia em prosa, mas me
calo):
- Não. A rima vem da Idade Média, com a
grande influência árabe, talvez.
Então ele se levanta,
para descer do ônibus. Além do fato de ser um falante esquisito, as pessoas não
o vêem, sinto. O poeta não vêem. De O Homem Invisível de Wells me lembro. O
poeta é o homem invisível. E penso, sem mais vontade nenhuma de voltar a Flores
do Mal, que essa ignorância vai além do círculo de trabalhadores que viajam
neste ônibus. Alcança o próprio poder público. O poeta Alberto da Cunha Melo,
aos 62 anos, recebe a graça, a condescendência, a generosidade dos governantes
que lhe permitem trabalhar em uma biblioteca pública. O pagamento para tão alta
distinção não chega a dois salários mínimos. Este é o prêmio para a sua poesia.
Então me lembro, vendo-o assim partir para o trabalho doado, óbolo
governamental, me lembro do que um dia escreveu, antes desta viagem em 2004.
RELÓGIO DE PONTO
Tudo
que levamos a sério
torna-se
amargo. Assim os jogos,
a
poesia, todos os pássaros,
mais
do que tudo: todo o amor.
De
quando em quando faltaremos
a
algum compromisso na Terra,
e
atravessaremos os córregos
cheios
de areia, após as chuvas.
Se
alguma súbita alegria
retardar
o nosso regresso,
um
inesperado companheiro
marcará
o nosso cartão.
Tudo
que levamos a sério
torna-se
amargo. Assim as faixas
da
vitória, a própria vitória,
mais
do que tudo: o próprio Céu.
De
quando em quando faltaremos
a
algum compromisso na Terra,
e
lavaremos as pupilas
cegas,
com o verniz das estrelas.
Obrigado, poeta. Eu
também, à minha maneira, sigo para o meu relógio de ponto. E compreendo bem,
como compreendo, que tudo que levamos a sério torna-se amargo. Até a poesia, e
mais precisamente o amor. Mas isto só saberei dizer em prosa.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife” e
“Dicionário amoroso de Recife”. Tem
inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
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