Mal traçadas
* Por
Marcelo Sguassábia
- Oi.
- Pode falar.
- Falar o quê?
- Ué, você botou o
travessão na frente. Travessão se usa quando a gente vai falar alguma coisa.
Vai, desembucha.
- Até aí estamos
quites, você também tá usando travessão.
- Usei pra responder.
Tava quieto no meu canto, por mim ficava mudo e escondido como um tratado de
química inorgânica numa biblioteca pública.
- É, você é mesmo de
poucas palavras. Nem uma linha quinta-feira passada, nosso aniversário de
namoro.
- Nem uma linha uma
vírgula! Te deixei uma citação inteira, grifada em vermelho, você é que não
reparou. Um trecho lindo da Adélia Prado. Admito que costumo falar pouco, mas
antes monossilábico que prolixo. Muita gente fala, fala e não diz coisa com
coisa.
- É uma indireta pra
mim?
- Você e suas deduções.
Entenda como quiser.
- Acho que está mais do
que na hora da gente discutir a redação. Ainda não consegui engolir a
exclamação que você soltou para aquela vogal saidinha.
- Caramba, isso foi lá
no segundo capítulo. Nem lembrava mais disso.
- E depois tem outras
coisas, que é bom que fiquem claras de uma vez por todas:
- Ih, Jesus amado,
colocou dois pontos. Agora o discurso vai longe. Me poupe, pula uns oito ou dez
parágrafos, esse texto eu já conheço. Vai direto pra última frase, vai.
- Ad commodum suum
quisquis callidus est.
- Pode poupar o seu
latim, não estou nem te escutando.
- Kalispera yassas den
kataleveno akrivo.
- Definitivamente, o
que você fala pra mim é grego.
- Olha, que tal parar
com evasivas e encarar a realidade? Vê se cresce...
- Meu amor, aquela
letra que você falou não faz meu tipo. Você sabe que eu prefiro as mais
encorpadas, corpo 18 ou 20, como você. Nós nascemos um pro outro, morzinho.
Vamos juntar os trapos e encher a casa de letrinhas de bula, heim?
- Casar com você? Tá
bom... deixa eu terminar meu tratamento anti-serifa que você vai ver só eu
desfilar lisinha por aí.
- Já sei, vai se
transformar numa verdadeira Helvética Light Condensed.
- Pra você, um legítimo
Bookman Old Style Extra Bold, eu tô de muito bom tamanho. Tá vendo o gato
daquele G? Um que parece o KK, ali na linha de baixo... então, dizem que tá
enrabichado por mim e que até fez um acróstico em minha homenagem.
- Não foi isso o que L
disse pro meu til. A versão que eu conheço é bem diferente.
- Tá com ciúme, bem?
Hã?
- O que me magoa é essa
sua ingratidão. Eu te tirei daquela vida gramaticalmente desregrada, te levei
pra morar numa obra decente, de autor famoso, com capa dura e nota de rodapé.
- Nem me fala, essa
página eu prefiro rasgar. Foi um erro tão crasso que até o Pasquale comentou na
coluna dele.
- Devia ter te deixado
lá, jogada às traças naquele sebo de subúrbio, no meio da pilha de gibis do
Bidu. Você renega a própria história.
- A história toda, não.
Só alguns capítulos muito mal-escritos...
- De novo sendo
reticente. Fala com todas as letras o que tem que dizer, poxa. Pra mim o que
você quer mesmo é voltar pro Epílogo, aquele seu caso que acabou terminando
mal, lembra?
- Lembro sim, foi no
tempo em que você saía com a Resenha, a venenosa que falava muitíssimo bem da
sua pessoa pra todo mundo.
- Agora chega. Com você
não tem diálogo.
*
Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).
Até entre letras, não é possível a paz. E que venha a guerra, e com muita graça.
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