Trilha de contradições
* Por
Lya Luft
“Convencidos de que
pensar dói e de que mudar é negativo, tateamos sozinhos no escuro, manada
confusa subindo a escada rolante pelo lado errado”
“Viver é subir uma
escada rolante pelo lado que desce.” Já escrevi sobre essa frase. Sim, repito
alguns temas, que são parte do meu repertório, pois todo escritor, todo pintor,
tem seus temas recorrentes. No alto dessa escada nos seduzem novidades e nos
angustia o excesso de ofertas. Para baixo nos convocam a futilidade, o
desalento ou o esquecimento nas drogas. Na dura obrigação de ser “felizes”,
embora ninguém saiba o que isso significa, nossos enganos nos dirigem com mão
firme numa trilha de contradições.
Apregoa-se a liberdade,
mas somos escravos de mil deveres. Oferecem-nos múltiplos bens, mas queremos
mais. Em toda esquina novas atrações, e continuamos insatisfeitos. Desejamos
permanência, e nos empenhamos em destruir. Nós nos consideramos modernos, mas
sufocamos debaixo dos preconceitos, pois esta nossa sociedade, que se diz
libertária, é um corredor com janelinhas de cela onde aprisionamos corpo e
alma. A gente se imagina moderno, mas veste a camisa de força da ignorância e
da alienação, na obrigação do “ter de”: ter de ser bonito, rico, famoso,
animadíssimo, ter de aparecer – que canseira.
Como ficcionista, meu
trabalho é inventar histórias; como colunista, é observar a realidade, ver o
que fazemos e como somos. A maior parte de nós nasce e morre sem pensar em
nenhuma das questões de que falei acima, ou sem jamais ouvir falar nelas.
Questionar dá trabalho, é sem graça, e não adianta nada, pensamos. Tudo parece
se resumir em nascer, trabalhar, arcar com dívidas financeiras e emocionais,
lutar para se enquadrar em modelos absurdos que nos são impostos. Às vezes, pode-se
produzir algo de positivo, como uma lavoura, uma família, uma refeição, um
negócio honesto, uma cura, um bem para a comunidade, um gesto amigo.
Mas cadê tempo e
disposição, se o tumulto bate à nossa porta, os desastres se acumulam – a crise
e as crises, pouca trégua e nenhuma misericórdia. Angústias da nossa
contraditória cultura: nunca cozinhar foi tão chique, nunca houve tantas
delícias, mas comer é proibido, pois engorda ou aumenta o colesterol. Nunca se
falou tanto em sexo, mas estamos desinteressados, exaustos demais, com medo de
doenças. O jeito seria parar e refletir, reformular algumas coisas, deletar
outras – criar novas, também. Mas, nessa corrida, parar para pensar é um luxo,
um susto, uma excentricidade, quando devia ser coisa cotidiana como o café e o
pão. Para alguns, a maioria talvez, refletir dá melancolia, ficar quieto é como
estar doente, é incômodo, é chato: “Parar para pensar? Nem pensar! Se fizer
isso eu desmorono”. Para que questionar a desordem e os males todos, para que
sair da rotina e querer descobrir um sentido para a vida, até mesmo curtir o
belo e o bom, que talvez existam? Pois, se for ilusão, a gente perdeu um
precioso tempo com essa bobajada, e aí o ônibus passou, o bar fechou, a festa
acabou, a mulher fugiu, o marido se matou, o filho… nem falar.
Então vamos ao nosso
grande recurso: a bolsinha de medicamentos. A pílula para dormir e a outra para
acordar, a pílula contra depressão (que nos tira a libido) e a outra para
compensar isso (que nos rouba a naturalidade), e aquela que ninguém sabe para
que serve, mas que todo mundo toma. Fingindo não estar nem aí, parecemos
modernos e espertos, e queremos o máximo: que para alguns é enganar os outros;
para estes, é grana e poder, beleza e prestígio; para aqueles, é delírio e
esquecimento.
Para uns poucos, é
realizar alguma coisa útil, ser honrado, apreciar a natureza, sentir o calor
humano e partilhar afeto. Mas, em geral medicados, padronizados, desesperados,
medíocres ou heroicos, amorosos ou perversos, nos achando o máximo ou nos
sentindo um lixo, carregamos a mala da culpa e a mochila da ansiedade.
Refletindo, veríamos que somos apenas humanos, e que nisso existe alguma
grandeza. Mas, convencidos de que pensar dói e de que mudar é negativo,
tateamos sozinhos no escuro, manada confusa subindo a escada rolante pelo lado
errado.
* Lya Luft é escritora,
professora, tradutora e colunista da Revista Veja. Texto publicado na edição
2119 de 1º de julho de 2009.
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