A navalha da morte
* Por
Anair Weirich
Largou a navalha e
observou a barba bem feita. Alisou os maxilares, observou os olhos encovados na
face, e concluiu que realmente estava velho. Perdido nos pensamentos, viu que
eram os sulcos profundos que dificultavam o andar da navalha. Esta só deslizava
com presteza nas bochechas cansadas de sol onde havia menos rugas. É... tinha
envelhecido, mas os sonhos continuavam lá, escondidos atrás do rosto cansado.
Já havia o barbeador elétrico, mas aquela navalha contava dos anos de luta, das
horas de parar um pouco com a lida da roça. Era bom tê-la junto nos fins de
semana. Era muito bom, concluiu ele. Até mesmo o pequeno espelho retangular de
moldura cor laranja diziam-lhe que tudo ali era antigo como ele. Um pequeno
mundo retangular refletindo os dias. A espuma produzida pelo sabonete
desvanecera-se na pequena bacia de alumínio que repousava sobre o aparador de
madeira, calçado por um apoio em forma de L, pregado na parede externa do
corredor da casa. Ali acontecia a higiene da família, desde lavar as mãos, a
louça, até fazer a barba. Secou bem as mãos com a toalha gasta e gastou o resto
dos minutos pensando no sabonete que estava novamente no fim. Pensou que
estavam no fim não só o sabonete, mas a farinha, o açúcar... o tempo também
estava no fim. Pensou no olhar súplice da esposa, que passava uma mensagem de
pedido de desculpas, pelos oito filhos em idade escolar. Eles precisavam de
mais comida na mesa e mais materiais de higiene. E mais material para atender o
pedido da diretora da escola. Ao redor do fogão e do tanque, a vida dela
acontecia. Sempre com um filho mais novo nos braços, a embalar a esperança num
amanhã melhor. Os anos 80 estavam ao meio, mas o tempo estava mesmo no fim.
Dali a alguns anos, ele também teria a palavra oitenta em sua vida. Nas costas,
para ser mais preciso. Mas até lá, os filhos, se Deus quisesse, estariam
encaminhados na vida. Por enquanto, a vida era carroça, roça, arado, geada, e
muita lenha lascada pelo machado de cabo também lascado pelo tempo. Levantava
com o primeiro cantar do galo e só ia dormir depois dos causos com o vizinho
mais próximo, quando colocavam as impressões do dia a dia embalados pela cuia
de chimarrão. Quando não podia ir era como se faltasse o arremate do dia.
Era o famoso serão ou
filó no lugar da televisão dos dias de hoje.
Nada era escrito, mal
viam um lápis na frente, mas tudo era muito bem registrado em suas memórias. Às
vezes, durante os causos, aconteciam as contradições, mas era um jeito de
passar o tempo. Que se danassem as datas precisas dos acontecimentos. Passavam
os invernos, vinham os verões, as novidades chegavam e iam embora; mas certas
coisas, como a navalha de barba, mantinham-se inalteradas ao longo dos anos. Não
havia por que trocar.
As galinhas no pátio é
que eram recicladas, cada uma com sua vez na velha panela de alumínio, já sem
cabo e gasta pelo tempo; entortada por mãos fortes que areavam tudo que vinha
pela frente. De fato, as mãos da esposa eram fortes. Tão fortes, que conseguiam
segurar a vida daquele lar repleto de dias, pela faina diária. E de esperança,
muita esperança, claro.
A junta de bois recebia
os laçassos do dono de acordo com o humor do dia. A mesma coisa com a esposa e
os filhos, no que se referia ao humor. Com eles, os laçassos vinham em forma de
palavras. A mesma coisa com a lida na terra. Ele dava um xingão ou uma palavra
mais amena. Tudo de acordo com o humor do dia. Mas o caráter íntegro o
denunciava, através dos negócios que fazia e do comportamento com a família.
Tudo tinha de andar por caminho reto, desde o comportamento das crianças
arteiras, até as notas no boletim dos mesmos.
Arqueado pelos seus 83
anos, já velho mesmo, o pulmão estourado pelos anos de cigarro, filhos já
grandes e encaminhados na vida como queria e sonhara, restava-lhe a lembrança
das manhãs de geada com a carroça rodando sobre ela. E a geada nos cabelos eram
o testemunho que estava mesmo no fim.
Já não tinha força para
tratar os porcos, nem surrar os bois preguiçosos na canga. Muito menos para
carnear o gado na invernada.
2008 engoliu seu último
suspiro, numa noite gelada de julho. Cortado pela navalha dos anos. Aparado
pela navalha da morte. Tal qual a navalha que lhe aparava a barba...
*
Escritora de Chapecó/SC
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